Outubro é um mês oportuno para refletir sobre
a missão (ou missões, no plural). De início, convém relembrar que toda missão
tem mão dupla. Tocamos aqui em uma dimensão que, não raro, é dada por
descontada, ou pouco levada em conta. Que entendemos por “missão de mão dupla”?
Do ponto de vista da história do cristianismo, o binômio missão e evangelização
é indissociável. O que significa que, na visão cristã, todo missionário é por
natureza aquele que anuncia os valores do Evangelho, portanto, um
evangelizador.
1. Levar
o Evangelho?
A esta altura, no que se refere à ação
missionária, tropeçamos com um primeiro desafio. Muitas vezes confundimos a
noção de evangelizar com aquela de “levar o Evangelho”. Evangelho, porém, em
sua dinâmica viva e profunda, não se leva nem se traz, se vive! Sem dúvida, o
conceito de evangelizar comporta o anúncio explícito da Boa Nova de Jesus
Cristo. Mas não podemos esquecer que, mais do que as palavras, discursos e
documentos, é o testemunho exemplar que verdadeiramente evangeliza.
A isso vale acrescentar que, de acordo com os
princípios da Doutrina Social da Igreja, no coração de cada pessoa e no coração
de cada cultura existem sementes do Verbo Encarnado. Em outras palavras, os
valores evangélicos, implícita ou explicitamente, em maior ou menor grau, fazem
parte do patrimômnio cultural e religioso de cada povo, raça ou nação.
Conclui-se que, em lugar de “levar ou trazer”, evangelizar constitui antes a
tarefa de desvendar e reativar tais valores. Não poucas vezes, no processo
histórico da evangelização, os missionários entenderam mais conveniente (ou
foram forçados) a calar sobre o nome e a obra de Jesus Cristo, para redescobrir
seus valores, em plena ação, nas manifestações éticas e religiosas da população
“a ser evangelizada”.
2. Diálogo
evagelizador-evangelizando
Emerge, então, um segundo desafio.
Evangelizador não é aquele que possui um pretenso “depósito de verdades”,
digamos assim, encarregando-se de distribui-las a quem, pretensamente, se
encontra na ignorância. Pior ainda quando a civilização cristã, em parceria com
as forças do Estado, teve a pretensão de levar luz ao reino da barbárie! A
história registra uma série de equívocos (para não falar de agressões e mortes)
devido a essa concepção “bancária” da formação-educação em geral e da evangelização
em particular, utilizando a terminologia de Paulo Freire, em suas obras Educação como prática da liberdade ou Pedagogia do Oprimido.
Toda cultura, ainda que de forma
diferenciada, é permeada de luzes e sombras, de avanços e recuos. Em princípio,
ninguém se encontra completamente nas trevas ou na ignorância, da mesma forma
que ninguém tem o monopólio da verdade. Disso resulta a necessidade de
empenhar-se por uma “relação progressivamente dialógica” (ainda na expressão de
Paulo Freire), a qual, no fim das contas, enriquece ambas as partes em jogo. Em
termos mais concretos, ninguém é somente evangelizador e ninguém é somente
evangelizando. Todos temos algo a oferecer e algo a receber, o que quer dizer
que todos somos, ao mesmo tempo evangelizadores e evangelizandos. Instala-se um
processo de evangelização circular, dinâmico e dialético, que se integra, se entrelaça
e se complementa numa evolução e crescimento recíporcos e em forma espiral.
3. Evangelização
como encontro
E chegamos, assim, a um terceiro entrave.
Mais do que as pessoas, é o encontro que evangeliza. De um lado, o
evangelizador-evangelizando, a partir dos próprios valores, provoca o encontro;
de outro lado, por parte do evageliando-evangelizador, abre-se a oportunidade
de expressar-se e de comunicar suas tradições, confrontando igualmente os
próprios valores culturais e religiosos. Descortina-se, com isso, um diálogo
não tanto de palavras, e sim de sentimentos e emoções, de vida a vida, alma a
alma. O encontro revela-se o lugar teológico-espiritual de uma evangelização
verdadeira e profunda, não apenas formalmente catequética ou proselitista. Isso
tanto para o evangelizador quanto para o evangelizando, se é que, a essa
altura, ainda podemos distinguir um do outro.
Em tal processo, inútil procurar um lado
ativo, pretensamente iluminado, e um lado passivo, numa prtensa escuridão.
Ambos se tornam protagonistas de um único processo de evangelização, ambos têm
algo a dizer e a ouvir. Mais ainda, na medida em que o processo se aprofunda em
franqueza, limpidez e transparência, ambos são chamados a purificar a forma e
os conteúdos da própria cultura, superando-a de seus vícios ocultos
(contravalores) e reforçando os valores. O confronto, se e quando acompanhado
de um diálogo aberto e maduro, torna-se uma forma viva de depuração.
Desnecessário repetir que semelhante processo tem necessariamente mão dupla.
4. Jesus
e o poço
A “imagem do poço” ilustra bem esse desafio
do processo de evangelização. No poço, água e sede se encontram e se
complementam. No episódio sobre o encontro entre Jesus e a samaritana (capítulo
4 do quarto Evangelho), no início, o evangelizador revela sua sede, enquanto a
evangelizanda oferece água. No decorrer do diálogo, porém, a situação se
inverte: água e sede aparecem como símbolos de uma água e de uma sede mais
profundas. O dom de Deus que preenche a falta de sentido de quem se afasta de
sua face ou rejeita seu projeto de salvação. O autor do relato deixa simbolicamente
claro que ninguém é somente água e ninguém é somente sede. Da mesma forma,
ninguém se revela água o tempo todo e ninguém suporta o tempo todo o vazio da
sede. Do ponto de vista sócio-cultural, qualquer mistura que inclui
inevitavelmente água e sede, valores e contravalores, luzes e sombras,
fraquezas e potencialidades, sofrimento e esperança.
Disso resulta a necessidade do poço, do
encontro. Este, convém insistir, desencadeia a oportunidade do processo
evangelizador. Um rápido olhar às páginas dos quatro Evangelhos mostram a
“prática evangelizadora” de Jesus, se nos é lícito falar nestes termos. Seu
método é simples e claro: “percorre aldeias e cidades” (Mt 9,35-38), tratando
de abrir poços/encontros. Grande parte de tais poços/encontros , vale notar,
tinham um caráter proibitivo frente à rigidez das leis, as quais, ao longo do
tempo, se haviam tornado fossilizadas e excludentes. O profeta de Nazaré supera
os preconceitos e discriminações culturais e religiosas de sua época e vai
diretamente ao encontro da pessoa humana. A partir dela e do diálogo com seus
valores mais profundos, revela a Boa Nova do Pai que liberta, enriquece e
salva.
Roma, 02 de outubro de 2014
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