terça-feira, 7 de outubro de 2014

Amparo assistencial ao estrangeiro. Recurso com repercussão geral no STF.



Discutimos a possibilidade de concessão do benefício de amparo assistencial ao estrangeiro residente no país, posicionando as perspectivas para o cenário jurídico nacional com o julgamento a ser realizado pelo STF em recurso com efeito repetitivo.
INTRODUÇÃO
No campo da Assistência Social, a Constituição Federal, em seu Art. 203, V, previu a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.
Como se trata de dispositivo constitucional com eficácia limitada houve a necessidade de regulamentação para efetiva criação do benefício denominado Amparo Assistencial (cujo gênero se subdivide nas espécies: ao deficiente e ao idoso).
Em razão dessa redação, iniciou-se uma discussão acerca da possibilidade ou não da concessão do benefício Amparo Assistencial ao ‘estrangeiro residente no país’, ressaltando que o Art. 20, caput da LOAS[1], que trata especificamente desse benefício, estabeleceu os requisitos necessários para sua concessão sem mencionar essa questão, sendo fiel à diretriz da norma constitucional prevista no Art. 203, V da CF: a) ser idoso ou deficienteb) não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família.
Em razão da celeuma criada e diante de vários recursos abordando o tema de cunho constitucional, o STF reconheceu a repercussão geral (Art. 543 – B do CPC) no Recurso Extraordinário 587.970[2], donde se espera uma conclusão para as controvérsias.
Mas quais as fundamentações para as teses, qual direção deve ser seguida e quais as repercussões de ordem prática? É o que passaremos abordar.
1. DO CONCEITO DE CIDADÃO E DA PREVISÃO DO DECRETO 6.214/07. A TESE DA NEGATIVA.
Conforme redação do texto constitucional, a norma do Art. 203, V da CF/88 possui eficácia limitada, eis que remete à lei a regulamentação do benefício assistencial: conforme dispuser a lei.
Esse entendimento, dentre outros julgados[3] restou pacificado no STF mormente após o julgamento da ADI 1.232-DF, cuja decisão possui efeito erga omnes, e foi arrematada com o seguinte ementário:
CONSTITUCIONAL. IMPUGNA DISPOSITIVO DE LEI FEDERAL QUE ESTABELECE O CRITÉRIO PARA RECEBER O BENEFÍCIO DO INCISO V DO ART. 203 DA CF.
Inexiste restrição alegada em face ao próprio dispositivo constitucional que reporta à Lei para fixar os critérios de garantia do benefício de salário mínimo à pessoa portadora de deficiência física e ao idoso.
Esta lei traz hipótese objetiva de prestação assistencial do Estado. Ação julgada improcedente. (ADIn 1.232-DF, rel. Min. Ilmar Galvão, red. P/ acórdão Min. Nelson Jobim, 27.08.98)
E essa regulamentação foi feita através da edição da Lei nº 8.742/93 (Lei da Organização da Assistência Social), cuja redação de seu Art. 1º, garante ao ‘cidadão’ o direito à assistência social:
Art. 1º A assistência social, direito do cidadão e dever do Estado, é Política de Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas.
No dizer do mestre José Afonso da Silva[4]:

“No Direito Constitucional brasileiro vigente, os termos nacionalidade e cidadania, ou nacional e cidadão, têm sentido distinto. Nacional é o brasileiro nato ou naturalizado, ou seja, aquele que se vincula, por nascimento ou naturalização, ao território brasileiro. Cidadão qualifica o nacional no gozo dos direitos políticos e os participantes da vida do Estado (arts. 1º, II, e 14). Surgem, assim, três situações distintas: a do nacional (ou da nacionalidade), que pode ser nato ou naturalizado; a do cidadão (ou da cidadania) e a do estrangeiro, as quais envolvem, também, condições jurídicas distintas [...].”
Portanto, para que seja considerado ‘cidadão’, mister que a pessoa seja, primeiramente, brasileiro (nato ou naturalizado), eis que para o exercício dos direitos inerentes à cidadania, é fundamental desfrutar do status de nacional do Estado que confere tais direitos. Não possuindo o estrangeiro esse status, pode-se afirmar que o princípio da igualdade não pode ser invocado.
E é de ordem lógica esse entendimento. Exercício de direitos pressupõe a contrapartida no cumprimento de deveres. Não tendo o estrangeiro obrigação com todos os deveres impostos aos cidadãos brasileiros (dentre eles: o voto obrigatório, o alistamento militar, dentre outros compromissos com a pátria), a ele devem ser assegurados somente os direitos garantidos pela Constituição Federal e pela lei.
Nesta linha é que articula o artigo 95 da Lei nº 6.815/80: “O estrangeiro residente no Brasil goza de todos os direitos reconhecidos aos brasileiros, nos termos da Constituição e das leis.”.
E não se justifica o argumento que, agindo-se assim, estará havendo tratamento desigual aos estrangeiros. Isonomia é tratar igual os iguais, e desigualmente os desiguais. É assim que é pra ser. Não fosse essa assertiva, estaria a própria Constituição Federal, em típico caso de antinomia, agindo em desconformidade com o princípio da isonomia ao prever que o estrangeiro, p.ex.: não pode se alistar como eleitor; possui restrições ao exercício de cargos, empregos e funções públicas; possui exigências diferenciadas no processo de adoção, dentre outros.
Portanto, a exigência do Art. 1º da Lei 8.742/93, não pode ser taxada de inconstitucional.
E essa mesma restrição se observa no Decreto nº 6.214/07, que regulamenta a LOAS:
Art. 7o  É devido o Benefício de Prestação Continuada ao brasileiro, naturalizado ou nato, que comprove domicílio e residência no Brasil e atenda a todos os demais critérios estabelecidos neste Regulamento.

Como se vê, o estrangeiro só terá direito ao benefício assistencial se adquirir a nacionalidade brasileira, preenchendo os requisitos constitucionais para obtê-la (residência por quinze anos ininterruptos e sem condenação penal para os estrangeiros de qualquer nacionalidade, ou, um ano ininterrupto e idoneidade moral aos estrangeiros de países oriundos de língua portuguesa – artigo 12, inciso II, alíneas “a” e “b”, da CF).
Esse entendimento encontra guarida na jurisprudência pátria[5], cabendo por fim registrar outro óbice de cunho constitucional para o deferimento do amparo assistencial ao estrangeiro, qual seja a previsão do  Art. 195, § 5º da Constituição Federal, que determina que: “Nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total”, o que impede, por óbvio, que o judiciário se utilize de uma interpretação extensiva para concessão de benefício para o qual não haja previsão legal, muito menos fonte de custeio correspondente, sob pena de colocar em risco as contas públicas.
Esse é o argumento jurídico.
2. O RESPEITO A DIREITO FUNDAMENTAL PREVISTO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. A ANTÍTESE QUE DEFENDE A CONCESSÃO.
De cunho mais político e social do que propriamente jurídico, há os que defendem a possibilidade de concessão do benefício de amparo assistencial ao estrangeiro residente no país, ainda que as normas específicas digam ao contrário.
Os que advogam pela possibilidade de concessão do benefício de amparo assistencial aos estrangeiros fundamentam seu argumento jurídico no artigo 5º, caput da Constituição Federal, que assim preconiza:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
Esse o principal fundamento jurídico; que possui como argumento subsidiário o fato do Brasil ser signatário de diversos tratados e acordos internacionais em que se obriga a promover a igualdade entre os povos e defender a dignidade da pessoa humana, v.g.: Pacto de San José da Costa Rica.
Mas, como dito acima, entendemos que é muito pouco para embasar tal pretensão, pois, fosse esse dispositivo aplicado de forma ‘absoluta’, tratamento igual deveria ser dado aos estrangeiros também no processo eleitoral; no preenchimento de cargos, empregos e funções públicas, dentre outros.
Contudo, não podemos sonegar a informação de que a jurisprudência – muito mais guiada por um viés político-social, do que jurídico – caminha na direção de sedimentar a possibilidade de concessão desse benefício aos estrangeiros, citando como exemplo:
PREVIDENCIÁRIO. CONCESSÃO DE BENEFÍCIO ASSISTENCIAL DE PRESTAÇÃO CONTINUADA (AMPARO SOCIAL) A ESTRANGEIRO RESIDENTE NO PAÍS. POSSIBILIDADE.
- A condição de estrangeiro não impede o agravado de receber benefício previdenciário de prestação continuada, pois, de acordo com o artigo  da Constituição Federal é assegurado ao estrangeiro, residente no país, o gozo dos direitos e garantias individuais em igualdade de condição com o nacional.
- Satisfeitos os requisitos para a implementação do benefício de amparo assistencial. Demonstrado ser o autor idoso, sem filhos, não tendo como prover sua manutenção, nem de tê-la provida por parentes, mais idosos que o próprio autor e impossibilitados de auxiliá-lo.
- Aplicação do artigo [34]parágrafo único, da Lei nº 10.741/2003 (Estatuto do Idoso).
- Agravo de instrumento a que se nega provimento.
(TRF-3 Processo: AG 80501 SP 2005.03.00.080501-0 Relator(a): JUIZA ANA PEZARINI Julgamento:21/08/2006, Publicação: DJU DATA:21/02/2007 PÁGINA: 123).
Em razão de múltiplos recursos com viés constitucional tratando da matéria, o STF reconheceu a repercussão geral (Art. 543 – B do CPC) no Recurso Extraordinário 587.970 e, considerando precedentes recentes daquela Corte, a tendência é pela admissão da possibilidade de concessão do benefício amparo assistencial ao estrangeiro.
Ressalvamos, porém, que mesmo os defensores dessa tese, admitem como restrição à concessão do benefício amparo assistencial ao estrangeiro a exigência da residência permanente do estrangeiro no país; evitando-se, portanto, que haja burla à flexibilização da concessão do benefício ao estrangeiro, sobretudo nas localidades fronteiriças de nosso país, p.ex: em  Foz  do  Iguaçu,  cidade  de fronteira, onde paraguaios  e  alguns  argentinos,  que  não  residem  no  Brasil, requerem benefício assistencial afirmando que residem em casa de amigos ou parentes.
3. CONCLUSÃO
O benefício de amparo assistencial possui previsão constitucional no art. 203, V da Constituição Federal, o qual possui eficácia limitada e remete à lei sua regulamentação.
O Art. 1º da Lei nº 8.742/93, que regulamentou o benefício de amparo assistencial, garante ao ‘cidadão’ o direito à assistência social. Em razão disso, uma interpretação adequada é que esse benefício só é devido ao brasileiro, eis que, para que seja considerado ‘cidadão’, mister que a pessoa seja, primeiramente, brasileiro (nato ou naturalizado).
Contudo, não é esse o caminho que tem tomado a jurisprudência majoritária, que calcada no artigo 5º, caput, da Constituição Federal, que garante aos brasileiros e estrangeiros residentes no país igualdade nos direitos fundamentais, entende pela extensão da garantia à percepção desse direito aos estrangeiros; o que no nosso sentir não se sustenta, pois essa garantia não é absoluta, tanto assim que o próprio texto constitucional prevê expressamente várias restrições ao estrangeiro: não poder se alistar como eleitor; restrições ao exercício de cargos, empregos e funções públicas; exigências diferenciadas no processo de adoção, dentre outros.
A solução para encerrar essa celeuma, seria exigir que o estrangeiro postulasse sua nacionalização[6] para fazer jus ao benefício, eis que a aquisição da nacionalidade observa perfeitamente o princípio da dignidade humana.
O STF reconheceu a repercussão geral no Recurso Extraordinário 587.970 e, considerando precedentes recentes daquela Corte, a tendência é pela admissão da possibilidade de concessão do benefício amparo assistencial ao estrangeiro.
Contudo, o ponto pacífico nessa questão é a exigência da residência permanente do estrangeiro no país (em consonância com a própria redação do art. 5º da CF/88); cabendo por fim, uma última observação: que se distinga o estrangeiro ‘regular’ do estrangeiro ‘irregular’ eis que a esse, ao invés de concessão de ‘benefício’, a lei e a Constituição Federal que garante a soberania nacional, impõem a deportação (Art. 57 da lei nº 6.815/80).
4. REFERÊNCIAS
MARQUES, Carlos Gustavo Moimaz. O Benefício Assistencial de Prestação Continuada. São Paulo: LTr, 2009
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 29. ed. São Paulo: Malheiros Ed., 2007, p. 319.
NOTAS


[1] LOAS. Art. 20.  O benefício de prestação continuada é a garantia de um salário-mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família.
[2] “ASSISTÊNCIA SOCIAL - GARANTIA DE SALÁRIO MÍNIMO A MENOS AFORTUNADO - ESTRANGEIRO RESIDENTE NO PAÍS - DIREITO RECONHECIDO NA ORIGEM - Possui repercussão geral a controvérsia sobre a possibilidade de conceder a estrangeiros residentes no país o benefício assistencial previsto no artigo 203, inciso V, da Carta da República.” (RE 587970 RG, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, julgado em 25/06/2009, DJe-186 DIVULG 01-10-2009 PUBLIC 02-10-2009 EMENT VOL-02376-04 PP-00742 )
[3] EMENTA: Embargos de declaração em Recurso Extraordinário. 2. Decisão Monocrática do relator. Embargos de declaração recebidos como agravo regimental. 3. Previdenciário. Renda Mensal Vitalícia. Artigo 203, V, da Constituição Federal. Dispositivo não autoaplicável. 4. Eficácia após edição da Lei 8.742, de 07.12.1993. Precedentes. Agravo Regimental a que se nega provimento. (ED em RE no. 401.127-1/SP – Relator Ministro Gilmar Mendes – DJU 17.12.04).
[4] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 29. ed. São Paulo: Malheiros Ed., 2007, p. 319.
[5] Recurso n.º 2005.71.95.018268-2/RS, 2.ª TR de Porto  Alegre/RS. 
[6] CF/88. Art. 12. São brasileiros:
II - naturalizados:
a) os que, na forma da lei, adquiram a nacionalidade brasileira, exigidas aos originários de países de língua portuguesa apenas residência por um ano ininterrupto e idoneidade moral;

b) os estrangeiros de qualquer nacionalidade, residentes na República Federativa do Brasil há mais de quinze anos ininterruptos e sem condenação penal, desde que requeiram a nacionalidade brasileira.

           Geandre  Gomide   
Jus Navigandi

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