quinta-feira, 18 de abril de 2024

Migrações e Pastoral dos Migrantes

 

 


"Da mesma forma que os movimentos migratórios estabelecem uma ponte de sobrevivência entre a terra de origem e a terra de destino, os agentes e lideranças que os acompanham podem empenhar-se por construir, em correspondência, uma ponte sociopastoral entre os locais de saída e os locais de chegada. Unir os dois lados da ponte através de visitas programadas, missões populares, intercâmbio de informações e de pessoal… Eis uma forma de manter e fortalecer a fé e o esforço dos migrantes na luta por uma sobrevivência justa e digna. Se os migrantes têm dificuldade de ir até a Igreja, esta deve fazer-se presente onde quer que eles estejam", escreve Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS, Assessor do Serviço Pastoral dos Migrantes — SPM/São Paulo, em texto preparado especialmente para o 16º Encontro Estadual das CEBs, a ser realizado nos dias 19 a 21 de abril, em São Leopoldo-RS.

Eis o artigo.

Quando abordamos a condição dos migrantes, refugiados, prófugos, itinerantes, etc., emerge naturalmente a expressão “sinal dos tempos”. De fato, é nestes termos que a Doutrina Social da Igreja (DSI) se refere ao fenômeno dessa imensa “multidão dos sem pátria”, a qual, hoje mais do que nunca, erra pelas estradas de todo mundo. Sem falar dos que morrem ou simplesmente desaparecem nas águas do Mediterrâneo, nas areias do deserto ou no anonimato das fronteiras. Mas a temática, evidentemente, não é monopólio de nenhuma instituição, seja ela pública, privada ou religiosa. Trata-se, antes, de um desafio gigantesco que envolve várias instâncias das relações internacionais, do governo, da sociedade civil, das Igrejas, das organizações não governamentais, entidades, movimentos sociais, e assim por diante. Nos parágrafos que seguem, entretanto, o acento recairá sobre a ação sociopastoral e política que se desenvolve no vasto campo da mobilidade humana, de forma particular as atividades ligadas à Igreja Católica. Sem especificar em maiores detalhes, seguiremos o método ver-julgar-agir.

Fotografia da mobilidade humana

Nas últimas décadas do século XX e início do século XXI, boa parte dos estudiosos começam a falar de mudança de paradigma. Não se trata de uma época de mudanças, dizem alguns, mas de uma mudança de época. Ou, ainda, de uma mudança epocal que agita não apenas a superfície sociopolítica das águas, mas sobretudo as correntes subterrâneas da economia e dos valores culturais. A Gaudium et Spes, Constituição pastoral sobre a Igreja no mundo de hoje, documento aprovado pelo Concílio Ecumênico Vaticano II, em 1965, já nos alertava: “O gênero humano vive atualmente uma fase nova da história, na qual profundas e rápidas transformações se estendem progressivamente a toda a terra” (GS, nº 4).

Os deslocamentos humanos de massa constituem, em geral, uma espécie de termômetro que mede o grau ou a temperatura de semelhantes transformações. Tais movimentos, de fato, ao longo da história, costumam preceder ou suceder modificações de caráter estrutural, tanto de um ponto de vista socioeconômico quanto de um ponto de vista político-cultural. Formam como que as ondas aparentes de terremotos ocultos, sinais visíveis de fenômenos invisíveis. Mais de um século atrás, por ocasião das chamadas migrações históricas provocadas pela Revolução Industrial, o então Papa Leãa XIII abria a Rerum Novarum (1891), documento inaugural da Doutrina Social da Igreja (DSI) com expressões do tipo “sede de inovações” e “agitação febril” (RN, nº 1). Ambas retratam de forma vívida e significativa o vaivém dos migrantes em todas as direções.

Números e trajetórias

Os números relacionados ao fenômeno migratório constituem normalmente causa de não pouca divergência entre sociólogos, demógrafos e estudiosos em geral. A razão é simples: boa parte dos imigrantes, em muitos países, encontram-se em situação irregular, o que os leva a “esconder-se para proteger-se”. Daí a dificuldade de obter estatísticas confiáveis. A Instrução Erga migrantes caritas Christi, publicada em 2004 pelo Pontifício Conselho para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes, afirma logo na abertura: “As migrações hodiernas constituem o maior movimento de pessoas de todos os tempos. Nestas últimas décadas este fenômeno, que envolve atualmente cerca de 200 milhões de seres humanos, se transformou em realidade estrutural da sociedade contemporânea, e constitui um problema cada vez mais complexo do ponto de vista social, politico, religioso, econômico e pastoral” (EMCC, Apresentação).

Cabem duas observações. A primeira é que, dez anos depois desse documento vir à luz, em 2014, estimativas da ONU indicam que 232 milhões de pessoas vivem fora do país em que nasceram. Se a isso acrescentarmos o volume de migrantes internos e/ou temporários e dos que se movem diariamente devido ao trabalho, os números tendem a subir de forma considerável. O Conselho Norueguês para Refugiados (CNR), por outro lado, em seu último relatório oficial, publicado em 2012, avaliava em nada menos do que 45,2 milhões o número de refugiados em todo o planeta. Em poucas palavras, somando os migrantes por razões socioeconômicas, os refugiados e prófugos, os exilados e expatriados, os nômades e itinerantes, os marítimos e aeroviários… atingiremos uma cifra nada desprezível frente à população mundial.

A segunda observação refere-se ao conceito de “realidade estrutural” utilizado pelo documento. Com efeito, qualquer análise atual sobre a economia globalizada e a sociedade moderna ou pós-moderna não pode deixar de lado o fator migração, sob o risco de se tornar anacrônica. Historiadores e outros estudiosos renomados, tais como Eric Hobsbawm, Alain Touraine, Boaventura Santos, Manuel Castells, Antonio Negri, Jürgen Habermas – entre outros – dedicam longas páginas e não poucos subtítulos a esse tema da mobilidade humana. Para alguns, os deslocamentos humanos de massa se converteram, pouco a pouco, numa espécie de janela para olhar a sociedade atual e o mundo. Em outros termos, uma chave de leitura privilegiada de qualquer estudo sério e atualizado.

De onde se originam e para onde se destinam os fluxos migratórios mais expressivos? O maior número tende a deixar os países periféricos (ou subdesenvolvidos), migrando em direção aos países centrais (ou desenvolvidos). Trata-se, portanto de um movimento do sul do planeta – Ásia, África e América Latina – em busca de novas oportunidades no norte. Por outro lado, muitas pessoas ou famílias deixam os países do leste europeu, antiga “cortina de ferro” da ex-União Soviética, tentando construir o futuro nos países do oeste. O quadro geral dos deslocamentos humanos, porém, não é tão simplista, a ponto de caber nesse esquema. Ao lado dessas tendências mais significativas, milhões e milhões de pessoas se movem em todas as direções possíveis e imaginárias, de forma temporária ou definitiva.

O mesmo se repete em nível nacional e regional. De acordo com o sociólogo paraguaio Tomás Palau, “a movimentação dinâmica e plural de pessoas nos chamados ‘complexos fronteiriços’, onde se cruzam as fronteiras de dois ou mais países, constitui um dos sintomas mais expressivos da economia globalizada”. Detidos nos aeroportos por Leis de Imigração cada vez mais rígidas e selecionadoras, os trabalhadores pressionam os limites territoriais de seus países de origem, tentando a qualquer preço alcançar o outro lado. Prova disso é o que vem ocorrendo na fronteira entre México e Estados Unidos, no mar que divide o norte da África e o sul da Europa ou na tríplice fronteira da zona de Foz do Iguaçu (Brasil, Argentina e Paraguai) – só para citar alguns exemplos. Trata-se de uma “aventura” que tem deixado um rastro macabro de cadáveres insepultos, tanto nas areias do deserto e nas águas do Mediterrâneo, quanto nas trilhas tortuosas da floresta.

Convém não esquecer, também, o que se poderia chamar de migrações limítrofes. Trata-se do vaivém constante de trabalhadores que se deslocam de uma região para outra, ou de um país para outro, em busca de trabalho, quase sempre temporário. Migram para as safras agrícolas, para projetos governamentais ou para obras de construção civil. A tríplice fronteira entre Chile, Bolívia e Peru é exemplo disso. E vale sublinhar, ainda, o drama dos “desplazados” pela violência em suas mais distintas formas, como é o caso de milhares e milhares de colombianos pressionados entre dois fogos, a guerrilha e o exército. No primeiro caso temos uma migração de resistência: sair temporariamente para não fazê-lo em definitivo; no segundo, uma fuga para os centros urbanos ou para outros países vizinhos.

Nomes e rostos

Mais importante que números, tabelas e estatísticas, entretanto, é a realidade de pessoas, com seus nomes, rostos, histórias e destinos. A mobilidade humana reúne trabalhadores individuais e famílias inteiras, homens e mulheres, jovens e crianças – todos simultaneamente em fuga e em busca. Fuga da pobreza, da miséria e da fome; da violência e dos conflitos armados; da discriminação, do preconceito e da perseguição politica, ideológica ou religiosa… Busca de um solo que os acolha como cidadãos e que possa ser chamado de pátria.

Três adjetivos poderiam ser usados para classificar as migrações contemporâneas. Elas são, ao mesmo tempo, mais intensas, mais complexas e mais diversificadas. Mais intensas que os movimentos de tempos passados. Como já vimos, cresce progressivamente o número de pessoas que se deslocam sobre a face do planeta. Importância decisiva aqui teve a revolução dos transportes e das comunicações. O historiador Peter Gay elegeu o trem e o movimento como duas grandes metáforas do século XIX, com enormes deslocamentos transatlânticos. Segundo ele, entre 1820 e 1920, nada menos do que 62 milhões de pessoas teriam deixado o velho continente europeu em direção às terras novas das Américas, da Austrália e da Nova Zelândia. Que dizer então dos dias atuais!

As migrações são também mais complexas. Em épocas passadas, as pessoas arrancavam as próprias raízes da terra que lhes tinha visto nascer e crescer e onde haviam enterrado seus antepassados. Mas o faziam, em geral, para transplantá-las para outro lugar e aí voltar a enraizar-se como colonos. A origem e o destino dos fluxos migratórios encontravam-se mais ou menos previstos, determinados. Hoje a tendência é uma migração que se repete, constituída de várias etapas, às vezes sem chegar a aprofundar as raízes em nenhum lugar. Uma espécie de vaivém sem fim, com horizontes e perspectivas diversificados. Os movimentos migratórios tendem a navegar conforme o fluxo e refluxo das ondas criadas pela economia globalizada. Um verdadeiro “exército de reserva” que não mora, acampa – como já denunciava o velho Karl Marx. Deslocam-se ao sabor dos ventos e de novas oportunidades de emprego ou subemprego. Movimento circular, pendular – afirmam alguns!

Por fim as migrações são mais diversificadas. Novas pessoas, raças, povos e nações passam a fazer parte do contingente de migrantes. O pluralismo cultural e religioso da sociedade contemporânea também se reproduz nas distintas faces dos migrantes. Em algumas cidades como Nova York, Roma, São Paulo, Paris ou Londres – entre as mais cosmopolitas – os moradores praticamente tropeçam diariamente com “os mil rostos do outro”, além de poderem entrar em contato com diferentes idiomas, bandeiras e costumes. Difícil hoje, se não impossível, encontrar um país que de alguma forma não esteja envolvido com o fenômeno das migrações. Uns como lugares de origem, outros como lugares de destino e outros ainda como lugares de trânsito, sem falar de alguns que podem, ao mesmo tempo, representar as três funções, como é o caso do México e Guatemala, de Portugal, Itália ou Turquia.

Radiografia do fenômeno migratório

Não basta, porém, a fotografia. Qualquer médico que se preze, se realmente pretende curar o paciente, deve tratar de conhecer as causas mais profundas da enfermidade. Conhecer o mal pela raiz é conditio sine qua non para receitar o remédio apropriado. O mesmo vale para o fenômeno das migrações. Em grande parte dos casos, estamos diante de deslocamentos compulsórios, forçados, os quais podem ser evitados com políticas adequadas, quer nos países de origem, quer nos países de trânsito e destino. Numa palavra, constituem males que podem ser corrigidos nas relações nacionais e internacionais.

Disso resulta a necessidade de tirar uma radiografia da mobilidade humana. Somente esta pode romper com as aparências às vezes enganosas. E resulta também a relevância de ouvir as histórias de cada migrante, conhecer os diversos valores de cada cultura, bem como acompanhar os estudos mais aprofundados sobre a realidade das migrações. A radiografia revela não apenas a pele, mas os ossos, os ógãos interiores e o coração. Com isso, como veremos, pode-se desenvolver uma pastoral mais eficaz.

Motivações imediatas

Perguntemos a qualquer migrante: por que você deixou a sua terra natal e migrou para outra região ou outro país? O que o levou a dar um passo tão arriscado e às vezes sem retorno? As respostas podem ser as mais diversas. Alguns dirão que tinham o desejo de conhecer outros lugares, outros poderão referir-se um um período de seca prolongada ou a uma forte inundação; outros ainda mostrarão as cicatrizes de conflitos armados ou se lembrarão com pesar dos familiares que pereceram vítimas da violência. Muitos dirão simplesmente que decidiram seguir o caminho de um parente ou amigo que os precedeu; depois, eles mesmos chamaram seus conhecidos e dessa forma vai se recompondo a rede familiar.

Um grupo considerável sai em razão da saúde, buscando lugares onde o atendimento é melhor, mais rápido e dispõe de equipamentos modernos; não poucos jovens, de ambos os sexos, após o estudo elementar e secundário, procuram lugares onde podem continuar com os estudos superiores, com vistas à profissionalização e emprego. Mas as expressões “trabalho”, “futuro mais promissor” e “vida melhor” praticamente aparecerão em todas as respostas. Também tem sido comum falar de “hemorragia de cérebros” ou “fuga de talentos”. Neste tipo de visão vêm à tona, com toda a naturalidade, os chamados fatores de expulsão e de atração. Mas a primeira resposta do migrante e a primeira impressão de quem o ouve podem ser enganosas. As motivações imediatas costumam esconder causas mais profundas. Aqui também a fotografia carece de uma radiografia.

Causas remotas

Em grande parte dos fluxos migratórios, o contexto socioeconômico de origem é marcado por um dupla contradição. De um lado, ilhas de riqueza num oceano de pobreza e miséria, onde convivem lado a lado a concentração de renda e a exclusão social. A linha que divide o Primeiro e o Terceiro Mundo, na verdade, passa pelo interior de cada país e até mesmo de cada região. De outro, desde o início da década de 1970, assiste-se a uma crise prolongada e estrutural do sistema capitalista de produção que faz aumentar o movimento circular de imensas massas humanas em todo mundo. A crise se abate, em primeiro lugar, sobre as pessoas mais vulneráveis, e estas se vêm forçadas a buscar em terras distantes melhores oportunidades de vida, no rastro mesmo do acúmulo de capital.

Tomemos o exemplo dos que responsabilizam uma longa estiagem pela saída da terra natal. Em princípio, a resposta não é incorreta, e sim incompleta. Se é verdade que a falta prolongada de chuvas faz as pessoas deixarem a própria região ou país, é igualmente certo que ela, por si só, não determina o êxodo em massa. A seca não faz mais do que marcar a hora da partida, mas por trás desse flagelo existe uma estrutura agrária e agrícola que desde longa data priva as pessoas de qualquer tipo de defesa. Isso se comprova pelo fato de que os grandes latifundiários, com ou sem chuva, permanecem aí. O que expulsa, portanto, não é a seca, mas a cerca! Ou seja, as condições injustas e desiguais da propriedade e posse da terra.

Vale o mesmo para outros tipos de respostas simples ou de análises a olho nu. No pano de fundo da mobilidade humana em geral, a visão imediatista, superficial ou simplesmente conjuntural muitas vezes oculta as causas mais profundas e estruturais. Na imensa maioria dos casos, prevalecem como raiz da migração uma situação social e econômica adversa à permanência no local de origem. Falta de trabalho e salário decente, precariedade no sistema público de saúde e educação, relações trabalhistas análogas à escravidão, cultura patriarcal em que a mulher é totalmente submissa ao poder masculino, exploração do trabalho infantil (sem confundir com a iniciação sadia das crianças a determinados serviços por parte de algumas famílias) – constituem alguns exemplos de tal situação.

Em certos países e regiões, tratam-se de verdadeiros resíduos medievais em pleno século XXI. Nisto o capitalismo revela uma de suas faces ocultas mais flagrantes e perversas: paradoxal e contraditoriamente, com a contínua revolução tecnológica, coexistem por um lado os implementos de tecnologia mais avançada, de ponta, e por outro formas de trabalho há tempo execradas e banidas pela luta sindical ao longo da história. Como afirma o sociólogo José de Souza Martins, podem conviver lado a lado formas não capitalistas dentro de um sistema capitalista de produção.

Outras causas dos deslocamentos de massa estão relacionadas, como vimos acima, com a perseguição política, ideológica ou religiosa que obriga à fuga; com formas de preconceito, xenofobia e discriminação étnica ou de credo; com os conflitos armados dentro de um mesmo país (p.ex. Líbano) ou entre dois Estados diferentes e beligerantes  (p.ex. Israel e Palestina, Rússia e Ucrânia); com os confrontos entre facções rebeldes e as forças do exército (p.ex. Colômbia); com a violência em todas as suas formas, particularmente o tráfico de seres humanos provocado pelo crime organizado; com a disputa pelo controle do tráfico de drogas e armas (p.ex. México, Colômbia e Brasil); com o trabalho temporário, o qual, no decorrer dos anos pode levar a uma migração definitiva.

Um olhar bíblico-teológico-pastoral

Existem três maneiras de ler o fenômeno das migrações à luz da Palavra de Deus. A primeira se reduz a tomar um episódio bíblico ou um determinado livro – respectivamente os Discípulos de Emaús ou o Livro de Rute – e a partir dessa aproximação busca aprofundar o tema. A segunda toma textos bíblicos que se relacionam à temática migratória, costurando com eles uma reflexão de caráter teológico, espiritual ou pastoral. A terceira, por fim, trata de ler toda a Palavra de Deus na perspectiva da mobilidade humana, com o enfoque de uma teologia ou espiritualidade do caminho. Sem desconsiderar as demais vias, seguiremos esta última, tomando apenas alguns textos paradigmáticos, do Antigo Testamento e outro do Novo Testamento, para ilustrar essa experiência de um povo a caminho.

Olhar o migrante com os olhos de Deus

Com relação à antiga aliança podemos focalizar o olhar sobre o que os especialistas chamam de “credo histórico” do Povo de Israel: Dt 26, 5-10, em sua versão mais elaborada e Ex 3, 7-10, numa versão mais primitiva. Trata-se, como se sabe, da experiência que ajudou a fundar o próprio Israel enquanto Povo de Deus. Confrontando as duas versões, encontraremos quarto verbos na primeira pessoa do singular, todos atribuídos a Deus, que nos apontam para um fio condutor que haverá de permear toda a Bíblia. Diz Javé: eu vi a aflição do meu povo no Egito, eu ouvi seu clamor sob o peso da escravidão, eu conheço seu sofrimento e eu desci para libertá-lo e o conduzir a uma terra onde corre leite e mel.

As quatro formas verbais – vi, ouvi, conheço e desci – denotam que, por ocasião de sua “experiência fundante”, os israelitas desenvolveram a teologia e a espiritualidade de um Deus que não somente está atento à situação concreta do povo na terra da escravidão, mas sobretudo desce para acompanhá-lo nos caminhos do êxodo e do deserto; mais tarde, do exílio e da diáspora. Esse ato de descer se realizará plenamente com o mistério da encarnação. Aqui o importante é sublinhar a sensibilidade e solidariedade de um Deus próximo e que, frente à opressão do Faraó, toma partido em favor dos sofredores e humilhados. Numa palavra, um Deus que privilegia os pobres, não pelo simples fato de serem pobres nem por serem necessariamente “bons”, e sim porque são vítimas de circunstâncias históricas adversas.

O movimento profético, por sua vez, não faz senão atualizar essa mesma teologia e espiritualidade para os tempos conturbados da monarquia e do exílio. O binômio da aliança – libertação e promessa – se reveste de novo vigor. Daí seu tríplice enfoque do profetismo: a lembrança de que “foste escravo no Egito” e por isso agora não deves oprimir nem o estrangeiro que mora contigo e muito menos teu próprio irmão; a denúncia frente às diversas formas de opressão, pois “vós chefes de Israel esqueceram o direito e a justiça, trituram os ossos do meu povo, fazendo dele carne de panela”, dirá o profeta Miquéias (Mq 3, 1-2); enfim, o anúncio, que aparece como o respiro de um povo oprimido, esperando a promessa da Jerusalém Celeste, de “um novo céu e uma nova terra” (Is 65, 17-25).

Quanto aos textos neotestamentários, podemos deter-nos sobre dois textos de relevância fundamental. De um lado, logo na abertura de seu Ministério Público, o profeta itinerante de Nazaré (John P. Meier) toma o Livro de Isaías para anunciar aquilo que se convencionou chamar o “programa de Jesus” (Lc 4, 16-20; Is 61, 1-2). Revela-se desde o início sua predileção pelos oprimidos, escravos, prisioneiros e pobres, o que retoma em outros termos a expressão “órfão, viúva e estrangeiro” do AT. No coração do Mestre estão mergulhadas as raízes da “opção preferencial pelos pobres”, pois aí encontrarão carinho especial os marginalizados, indefesos, excluídos e migrantes – “eu era migrante e vocês me acolheram” (Mt 25,35).

De outro lado, o evangelista Mateus costuma interromper a narrativa para introduzir pequenos resumos, como a sublinhar algo que não pode ser esquecido. “Jesus percorria todas as cidades e povoados…”, diz o texto. E prossegue: “Vendo as multidões cansadas e abatidas, teve compaixão porque eram como ovelhas sem pastor” (Mt 9, 35-38). Duas observações: primeiro, chamar a atenção para o verbo “percorrer”, o qual, por si só, demonstrando a prática pastoral de Jesus, poderia servir para um bom retiro de conversão. Ele não se limita a esperar pelas pessoas no templo (ou na porta da Igreja), mas vai ao encontro dos peregrinos; segundo, entre tais “multidões cansadas e abatidas”, cabe um destaque particular para o volume de migrantes que erram pelas estradas de todo o planeta, muitas vezes órfãos, sós e perdidos.

Olhar a Deus com os olhos do migrante

Quem muito caminha aprende a depurar não somente a bagagem, mas também a alma. Toda a longa travessia ensina a deixar de lado o que é supérfluo e ater-se ao que é essencial. O ato de migrar e remigrar ajuda a discernir o que é indispensável do que é negociável. O caminho, principalmente quando o vaivém se repete uma, duas, três ou mais vezes, traz como lição a sabedoria de despojar-se do que pesa e retarda os passos, para concentrar-se no foco, na meta, no horizonte da própria existência humana. Numa palavra, os pés do peregrino desenvolvem uma mística singular, no sentido de relativizar “as muitas coisas” para absolutizar “uma só coisa” que é a mais importante, como vemos no episódio que narra o encontro de Jesus na casa de Marta e Maria (Lc 10, 38-42). Além disso, de acordo com o cor inquietum de Santo Agostinho, o migrante representa a condição de todo ser humano, peregrino na face da terra, em busca da pátria definitiva.

De acordo com a Doutrina Social da Igreja (DSI), no coração de cada pessoa e no coração de cada cultura existem sementes do Verbo. Ao deslocar-se de um lado para outro, os migrantes são portadores de tais sementes. Lembrando o Bem-aventurado J. B. Scalabrini – “pai e apóstolo dos migrantes” – da mesma forma que as aves e os ventos transmitem o pólen que fecunda a vida, assim também os viajantes de tantas estradas levam consigo expressões e valores que fecundam a tradição cultural de outros povos. Nisso, a migração não deixa de ser um instrumento de evangelização que tende a promover uma depuração e purificação recíproca e permanente das culturas, como nos recorda o Documento de Aparecida. Além disso, o migrante jamais pode ser considerado apenas como vítima de exploração no mercado de trabalho. Se é verdade que, por um lado, ele normalmente é forte candidato aos serviços mais sujos e pesados, mais perigosos e mal remunerados, também é certo que, por outro lado, sua teimosia indômita e imbatível faz dele um protagonista e um profeta do futuro. Por caminhos inóspitos e hostis, ou “por mares nunca dantes navegados” – na expressão do poeta português Camões – o  olhar voltado para Deus costuma ser o farol da “frágil embarcação” de todo migrante.

Nessa perspectiva, a fé e a esperança do povo migrante costuma ser uma luz que aponta novos horizontes para a história, seja ela pessoal, familiar ou coletiva. Em sua bagagem, por mais pobre e exígua que seja, raramente falta algum símbolo da religião de seus ancestrais, e muitas vezes a Bíblia (ou o Corão, para os muçulmanos). Assim que, o ato de migrar, por si só, põe em marcha não somente as expectativas do migrante e sua família, mas também a própria história. Enquanto, por uma parte, o deslocamento compulsório denuncia na origem a incapacidade de muitas nações em conceder uma cidadania digna a seus compatriotas, por outra, no trânsito e no destino anuncia a necessidade de mudanças urgentes e estruturais nas relações nacionais, regionais e internacionais. Em síntese, não seria exagero afirmar que a frase de Martin Luther King – I have a dream (eu tenho um sonho) – constitui uma força motriz na vida do migrante. Parafraseando Euclides da Cunha, “o migrante é antes de tudo um forte”.

Desafios e perspectivas: o que fazer?

Após uma rápida visão da realidade migratória (Partes I e II), seguida de alguns elementos bíblico-teológicos-pastorais de luz e orientação (Parte III), o objetivo desta última parte é o de apontar pistas de ação sociopastoral e política. Mais do que “inventar a roda”, procuramos concentrar a atenção sobre determinadas atividades que, em sua maioria, já estão em curso na Igreja em geral e na Pastoral dos Migrantes em particular.

Acolhida e documentação

A acolhida constitui o DNA da Pastoral dos Migrantes. Trata-se de abrir o coração, as portas e os espaços eclesiais e culturais para “o outro, o estrangeiro, o diferente”. Em termos concretos, acolher significa, antes de tudo, promover uma assistência imediata a quem chega a um novo lugar. Tal assistência, caso a caso, comporta a preocupação com as dimensões pessoal, familiar, social, jurídica, educacional, sanitaria, psicológica… Daí a existência de uma rede de Casas do Migrante, espalhadas tanto nas fronteiras (entre México e Estados Unidos, entre México e Guatemala ou entre Chile, Bolívia e Peru), quanto em algumas metrópoles de grande afluência de migrantes (São Paulo, Santiago, Manaus). Desnecessário acrescentar que, não raro, torna-se de fundamental importância o ensino da língua local.

A acolhida vem acompanhada de um longo processo de regularização dos documentos. Sem estes, todas as portas se fecham, a começar pelo acesso a um emprego decente e com carteira assinada. O trabalho, por sua vez, reabre uma série de oportunidades. Também neste caso, os migrantes podem contar com uma rede de Centros de Acolhida e de Orientação, providos de assistentes sociais, advogados e outros profissionais que podem ajudar a inserir-se e integrar-se mais rapidamente na sociedade de destino. É conhecida e notória a forma grosseira com que muitas autoridades da Polícia Federal tratam os recém-chegados. Sem dúvida, a presença de um profissional infunde-lhes maior confiança.

Direitos Humanos dos Migrantes

O empenho pela defesa dos Direitos Humanos em geral, e dos direitos dos migrantes em particular, constitui uma das características da ação sociopastoral junto ao mundo da mobilidade humana. Boa parte dos imigrantes permanecem por meses, anos, e até décadas (quando não a vida inteira) na precária situação de indocumentados – “sin papiers” ou “sin papeles”. Nessa condição irregular, tornam-se vulneráveis a todo tipo de exploração trabalhista ou sexual e, além disso, presa fácil para a rede mundial do crime organizado.

Sabemos bem qual o peso da palavra “clandestinos” em sociedades como Estados Unidos, Europa, Austrália, Japão, entre outras. Traduz-se concretamente como insegurança, instabilidade, medo e, no fim da linha, processo de repatriação. Infelizmente, no trato com os imigrantes desprovidos de documentação regular, o mesmo ocorre nos países subdesenvolvidos ou emergentes. De tudo isso resulta a necessidade de contar com proteção jurídica para a conquista e/ou defesa dos direitos à vida e à dignidade humana.

Paróquias multiculturais e pluriétnicas

De um ponto de vista estritamente pastoral, nas paróquias de acolhida faz-se necessário resgatar e promover os valores culturais e religiosos dos migrantes. Não é difícil abrir espaço para encontros multiculturais ou pluriétnicos, tais como festa do padroeiro, festa das nações, e assim por diante. Aqui, porém, esconde-se uma ambiguidade que, com frequência, comporta uma armadilha capaz de confundir os incautos. De um lado, o cultivo da lingua original, das expressões culturais e religiosas ajuda a cimentar e manter a coesão do grupo étnico, sobretudo em casos de discriminação, preconceito e hostilidade; de outro lado, contudo, nesse processo de resgate cultural reside o risco de criar guetos cerrados, dificultando assim uma integração natural e mais rápida. Em termos metafóricos, os anjos da tradição religiosa podem converter-se em demônios, promotores de divisão e isolamento. O desafio é encontrar o equilíbrio entre o respeito às diferentes etnias e a integração progressiva na sociedade de chegada.

Resgatar e promover os valores inerentes a cada pessoa, povo e cultura requer, como dimensão primordial, um espaço privilegiado para a história individual e coletiva. Nessa linha, os encontros de migrantes por etnia costumam ser extremamente reveladores. Parte-se do pressuposto que a migração constitui um golpe que deixa feridas, algumas jamais cicatrizadas. Arrancar as raízes e expô-las ao sol escaldante do caminho tem consequências inevitáveis. Normalmente sofre quem parte e sofre quem permanece na terra de origem. Narrar a própria história – como nos ensina a psicologia – é uma forma de exorcizar as sombras que obscurecem seu percurso. Verbalizar o sofrimento ajuda a libertar-se do peso que herdamos do passado. Vale o mesmo para a história do grupo como um todo. Trata-se de promover tempo e espaço para que os próprios migrantes, ao cruzar seus caminhos, possam intercambiar experiências e, com isso, enriquecer-se mutuamente.

Presença na origem e no destino

Da mesma forma que os movimentos migratórios estabelecem uma ponte de sobrevivência entre a terra de origem e a terra de destino, os agentes e lideranças que os acompanham podem empenhar-se por construir, em correspondência, uma ponte sociopastoral entre os locais de saída e os locais de chegada. Unir os dois lados da ponte através de visitas programadas, missões populares, intercâmbio de informações e de pessoal… Eis uma forma de manter e fortalecer a fé e o esforço dos migrantes na luta por uma sobrevivência justa e digna. Se os migrantes têm dificuldade de ir até a Igreja, esta deve fazer-se presente onde quer que eles estejam.

Essa presença da Igreja, simultaneamente no polo de origem e no polo de destino, não é novidade dos tempos atuais. Com efeito, no final do século XIX, Dom J. B. Scalabrini fundou dois institutos religiosos (masculino e feminino) e um instituto leigo para acompanhar os emigrantes italianos, tanto na própria diocese de Piacenza e demais regiões da Itália, quanto do outro lado do oceano: Estados Unidos, Brasil, Argentina, Austrália, entre outros países. Tratava-se, como ele mesmo afirmava, de levar-lhes “o sorriso da pátria e o conforto da fé”. “Para os migrantes” – dizia ainda – “a pátria é a terra que lhes dá o pão”, concluindo que “a migração amplia o conceito de pátria”.

Centros de estudos e de pastoral

Com a finalidade de desenvolver a um trabalho mais eficaz e de maior incidência sociopolítica, torna-se necessário manter uma leitura científica e atualizada do fenômeno da mobilidade humana. Nasceram assim os Centros de Estudos Migratórios, hoje espalhados pela Europa, Ásia, África, América do Norte e América do Sul. Em colaboração e sinergia com outras entidades acadêmicas, realizam pesquisas, estudos, conferências, encontros, cursos e seminários no sentido de envolver o maior número de pessoas, como também de sensibilizar a Igreja, a sociedade civil e as autoridades dos governos para o drama das migrações. Evidente que semelhante leitura aprofundada dos fluxos e tendências, causas e consequências da migração mantém-se estritamente conectada com os itens anteriores. Ela ajuda não somente a incrementar as atividades pastorais, sociais e políticas, mas também incide sobre as mudanças necessárias para novas Leis de Imigração.

Vale a esse respeito sublinhar a realização do Fórum Internacional de Migração e Paz. Em sua 5ª edição (Antigua, Bogotá, Cidade do México, New York e Berlim), o Fórum tem mantido um duplo objetivo: por um lado, desvincular o conceito de migração do pano de fundo da ideologia de segurança nacional e do crime organizado, enfatizando antes suas potencialidades para a busca da paz; por outro, envolver autoridades políticas, expoentes acadêmicos e outras personalidades, na tentativa de maior incidência sociopolítica em favor dos direitos dos migrantes.


Alfredo Gonçalves 

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Diálogo e escuta de lideranças vai pautar atuação do Fórum Nacional de Lideranças Migrantes, Refugiadas e Apátridas

 Diálogo e escuta de lideranças vai pautar atuação do Fórum Nacional de Lideranças Migrantes, Refugiadas e Apátridas

Fórum vai atuar para efetivar políticas públicas

O normativo foi assinado pelo ministro Silvio Almeida e publicado nesta sexta-feira (12) no Diário Oficial da União. Com o Fórum Nacional de Lideranças Migrantes, Refugiadas e Apátridas (Fomigra), o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania (MDHC) vai garantir o diálogo e a escuta de lideranças e de representantes de organizações envolvidas para atuar mais efetivamente em relação às políticas públicas para promoção e defesa dos direitos humanos dessas pessoas.

A portaria atribui à Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos a função de coordenação com ação consultiva na formulação, implementação, acompanhamento e monitoramento de políticas públicas de interesse das pessoas migrantes, refugiadas, apátridas e naturalizadas. O Fomigra será formado por lideranças ou representantes de entidades, associações e coletivos que se encontram no Brasil e possuam relação com o tema de migração, refúgio e apatridia.

Em momento oportuno, esses integrantes serão convidados a participar do colegiado pela Secretaria do Ministério, após levantamento e aferição do alcance social, territorial e a identificação de propósitos com a promoção e a defesa de direitos humanos das populações migrantes.

Depois de sua instalação, o Fórum deve elaborar, dentro de 180 dias, seu regimento interno a partir de uma proposta apresentada por sua coordenação. O documento deve tratar, entre outras determinações, da composição dos grupos de trabalho e da Comissão Gestora do Fórum.

gov.br/mdh/pt-b

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terça-feira, 16 de abril de 2024

Corpos em barco à deriva no Pará são de migrantes africanos, aponta PF

 Peritos de Brasília foram enviados para auxiliar nas investigações - (crédito: Redes sociais/ reprodução)


Polícia Federal afirmou que os corpos encontrados em um barco à deriva identificado no Pará são de migrantes africanos. De acordo com os investigadores, ao todo, foram localizados nove corpos, sendo oito na embarcação e um deles na região próxima.

Documentos encontrados com as vítimas apontam que são pessoas que saíram do Mali e da Mauritânia. As diligências apontam que todos fazem parte do mesmo grupo e não se descarta a existência de pessoas de outras nacionalidades.

A investigação segue para saber a causa das mortes e identificar as vítimas que não estavam com documentos no momento em que os corpos foram encontrados.

"O trabalho realizado pelas instituições tem por objetivo estabelecer a identidade dos corpos adotando protocolos de identificação de vítimas de desastres da Interpol (DVI). Além da identidade, os trabalhos periciais terão por objetivo verificar a origem dos passageiros, a causa e o tempo estimado dos óbitos", informou a corporação.

A embarcação foi localizada por pescadores. Equipes de perícia saíram de Brasília para reforçar as equipes do Pará no trabalho de investigação.

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sábado, 13 de abril de 2024

II Comigrar e eleições municipais: o momento é de pautar o direito à cidade pelos imigrantes internacionais


Grupo de refugiados afegãos com visto humanitário acampado no Aeroporto Internacional de Guarulhos - Rovena Rosa/Agência Brasil
Enquanto permanecer sendo vista como problema, a imigração será combustível para discursos de ódio

Por Camila Rodrigues da Silva e Luis Felipe Aires Magalhães

 



Este ano de 2024 marca não apenas os dez anos de realização da I Conferência Nacional de Migrações, Refúgio e Apatridia (Comigrar), que ocorreu ainda no governo Dilma, como também a organização da II Comigrar, que será em Foz do Iguaçu (PR), entre os dias 7 e 9 de junho. A realização de uma segunda edição dessa conferência expressa os desafios, transformações e potencialidades das migrações internacionais no Brasil nas duas últimas décadas. Por um lado, imigrantes continuam enfrentando dificuldades em encontrar trabalho decente, em acessar serviços públicos – que são universais, e em ter direito à cidade onde vivem. Por outro, é crescente a organização e a mobilização de grupos de imigrantes de diversas nacionalidades, e eles estão articulados em um número cada vez maior de cidades brasileiras. 

Falamos em cidades porque é nesse espaço em que grande parte da inserção sociolaboral e das interações étnico-raciais desses migrantes acontecem. Os postos de saúde, as creches, as escolas de educação básica e os serviços de assistência social, por exemplo, são predominantemente de responsabilidade dos municípios. 

Por consequência, as principais dificuldades enfrentadas por eles guardam uma inegável relação com o direito à cidade. Na dimensão da moradia, a menor bancarização e o não reconhecimento de sua documentação lhes encaminham ao circuito informal de aluguéis, no qual residem em habitações precárias, como cortiços nas regiões centrais e favelas nas periferias urbanas. Nesta situação, sofrem com piores condições de mobilidade e de saneamento. 

Na dimensão do acesso a serviços públicos, o racismo estrutural, o racismo institucional e a xenofobia destroem não apenas o mito da democracia racial como também do país acolhedor, já que essas pessoas não têm igualdade de tratamento. No mercado de trabalho, eles são alocados preferencialmente em atividades laborais mais desgastantes e de maior periculosidade e insalubridade, mesmo no caso daqueles que têm formação técnico-profissional e escolaridade de nível superior.

A despeito de sua presença crescente nas metrópoles brasileiras, seguem invisibilizados, sobretudo em registros e estatísticas civis que não têm o campo nacionalidade para preenchimento, impedindo, por exemplo, um conhecimento mais preciso das internações e óbitos de imigrantes no país, questão central para qualquer política pública de saúde da população migrante. 

Além disso, a gestão urbana, historicamente acostumada a compreender o tema como de competência exclusivamente federal, ainda tem sido incapaz de oferecer serviços para migrantes que compreendam suas especificidades sociais, linguísticas, de documentação e, sobretudo, que estejam próximos aos seus locais de residência e sequer, na imensa maioria dos casos, reconhece a população migrante como sujeito organizado, o que resulta na inexistência de conselhos municipais de imigrantes. Como a legislação ainda impede que imigrantes tenham direito ao voto antes de se naturalizar (processo que, quando ocorre, ainda é demorado e burocrático), resta claro o porquê de a questão imigratória não ser, também, uma pauta nas eleições municipais. 

Também observamos uma distribuição espacial desses imigrantes, considerando capitais e outros municípios de menor porte. Em 2010, 34% dos registros se concentraram no estado de São Paulo, segundo o Sistema de Registro Nacional Migratório (Sismigra). Em 2023, essa proporção reduziu para 22%. Em contrapartida, a proporção de registros em Roraima passou de menos de 1% em 2010 para 17% de todos os registros no Brasil em 2023. Os estados de Santa Catarina, Paraná, Rio Grande do Sul e Amazonas também passaram a abrigar, proporcionalmente, mais migrantes que no início da década de 2010.

A principal causa dessa ampliação de destinos é a Operação Acolhida, criada em 2017 no Governo Temer, que tem feito a interiorização de venezuelanos que migram pela fronteira terrestre em Roraima. Com ela, o próprio Estado brasileiro está direcionando os imigrantes internacionais não só para capitais, mas para cidades do interior, atraídos por vagas na construção civil e no agronegócio, como Chapecó (SC), Maringá (PR), Dourados (MS) e Lucas do Rio Verde (MT).


Cidades com o maior número de imigrantes no Brasil / Observatório das Metrópoles

Nesse cenário, em que a II Conferência Nacional de Migrações, Refúgio e Apatridia (II Comigrar) pode avançar no direito à cidade dos milhares de imigrantes que chegaram ao Brasil na última década? 

Embora a nova Lei de Migração (nº 13.445 /2017), fruto da I Comigrar, tenha revogado a submissão do imigrante à Lei de Segurança Nacional, a questão migratória e de refúgio no país continuam enfrentando políticas securitivistas. Entre os exemplos dessa condição está a exclusividade de pastas e secretarias relacionadas à migração e ao refúgio no Ministério da Justiça e da Segurança Pública, o distanciamento de ministérios como dos Direitos Humanos e Cidadania, Igualdade Racial, Desenvolvimento Social e das Cidades desta temática, e a manutenção da Operação Acolhida, estratégia militar de gestão migratória e controle de corpos criada no contexto da intensificação da migração venezuelana. 

Uma consequência importante da forma securitivista de governança migratória é a excessiva concentração na esfera federal dos mecanismos de gestão da migração e do refúgio. Essa decisão, por um lado, obstaculizou durante décadas a criação de políticas públicas para migrantes nos municípios; por outro, impediu maior entendimento das mediações existentes entre migração e questão urbana.

Assim, é apenas recentemente que municípios brasileiros estão criando centros de referência para imigrantes, como é o caso de São Paulo, que possui desde 2013 uma Coordenadoria de Políticas para Imigrantes, criada durante a gestão de Fernando Haddad. Serviços para migrantes são oferecidos também nas cidades de Porto Alegre (RS), Caxias do Sul (RS), Rio de Janeiro ( RJ), Belo Horizonte (MG), Manaus (AM) e Boa Vista (RR), entre outros. 

Nesta conjuntura, é imprescindível que haja tanto organização política de imigrantes para sua maior participação social como também que este ascenço encontre espaços na gestão urbana, quer sob a forma de conselhos municipais, conferências de migração, fóruns interesetoriais, coordenadorias de políticas para migrantes etc. 

Embora estejamos em ano de Comigrar, o avanço em políticas públicas federais pode não se refletir em avanços na ponta se os municípios não reconhecerem a urgência e importância das reivindicações da população migrante, não criarem espaços de participação e seguirem entendendo migrante apenas como problema, e não como sujeito de direitos. 

Aos candidatos e candidatas nestas eleições municipais, importa considerar que políticas para migrantes trazem ganhos para toda a sociedade. Diferentemente do planteado pela extrema-direita e incorporado pelo senso comum sobre o tema, os migrantes não “roubam postos de trabalho”, mas sim os criam, tendo em vista sua propensão ao empreendedorismo. Eles não “deterioram os espaços públicos”, mas os ocupam e dinamizam, comercial e culturalmente. Não “sobrecarregam serviços públicos”, que já estavam defasados antes de sua chegada, mas contribuem para desenvolver formas de atender melhor a população vulnerável, chamam a atenção para o problema da insuficiência da rede de serviços públicos, e ainda podem oferecer sua capacidade técnica e profissional para aperfeiçoá-la. 

Enquanto permanecer sendo vista como problema, a imigração será combustível para discursos e políticas de ódio, fracionando ainda mais o tecido social das metrópoles brasileiras, a segregação e a discriminação étnico-racial. Quando passar a ser compreendida como parte possuidora de direitos e de cidadania plena, a imigração poderá ser então percebida pelo próprio campo progressista como uma força social a mais na luta pela democratização do direito à cidade. 

* Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato) 

Edição: Thalita Pires

Brasil de Fato 

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sexta-feira, 12 de abril de 2024

Refugiados vivem rotina de dificuldades e esperanças no DF

 

Refugiados venezuelanos atendidos pela Cáritas em São Sebastião - (crédito: Ed Alves/CB/DA.Press)

Todos os dias, Serge Dossou, 32 anos, acorda às 4h e faz uma oração. Toma um café da manhã reforçado e às 5h40 sai de casa para pedalar 36km, entre as cidades de Águas Lindas de Goiás e Vicente Pires, na sua fiel companheira de estradas há três anos, uma bicicleta montain bike com aro 29 GTA. O haitiano leva exatamente uma hora e 26 minutos para fazer o trajeto de casa para o trabalho, uma oficina mecânica chamada Land Tech. O trajeto completo é formado por 72km diários. A travessia cotidiana é praticamente um prolongamento do caminho intercontinental que Serge precisou fazer para se refugiar no Brasil. Primeiro, ele conseguiu pegar um voo humanitário até o Equador. De lá, fez viagens de ônibus por mais de 6.200km até chegar à capital federal.

A realidade de Serge é parecida com a de outras 5 mil pessoas estrangeiras em situação de vulnerabilidade, registradas no cadastro único no DF, de acordo com a Agência da ONU para Refugiados (Acnur). O haitiano é uma delas. O refúgio, diferentemente da migração voluntária, configura-se quando as pessoas são forçadas a deixar suas casas, seja por desastres ambientais, seja por guerra ou instabilidade política. A decisão de Serge em vir para o Brasil aconteceu depois dos grandes terremotos que assolaram o país caribenho em 2010. "Meu irmão veio primeiro e foi morar em Valparaíso de Goiás. Em 2014, eu consegui chegar em Brasília", contou à reportagem do Correio, em um português com ótima dicção, que ele assegurou ter aprendido apenas em conversas informais com os colegas de trabalho.

 

Quando chegou à capital, no entanto, o mecânico falava apenas o criolo haitiano, língua oficial de seu país. Ele, que era agricultor na sua terra, resolveu fazer cursos de ajudante de pedreiro, eletricista e mecânico para recomeçar a vida em um lugar totalmente diferente. Apesar das dificuldades iniciais com a língua, culturalmente ele assegurou que não teve problemas. "Não senti muita mudança. Na alimentação, por exemplo, eu comia a mesma coisa que geralmente como aqui no Brasil: arroz, feijão, verdura e carne, às vezes", contou, ao explicar que ele mesmo faz as suas marmitas. No dia que conversou com o Correio, havia cozinhado arroz, feijão, carne de soja e verduras. No tempo livre, o mecânico prefere ficar em casa. "Gosto de estudar sobre religião e assistir televisão", disse.

 

Assim que pousou no Planalto Central, morou por alguns meses na casa do irmão. "Mas ele tem a família dele e, atualmente, nós passamos quase um ano sem nos ver, por conta das nossas rotinas de trabalho", explicou. A outra parte da família de Serge ainda mora toda no Haiti. Com o salário, ele ajuda irmãs, irmãos e a sua mãe idosa, de 78 anos. "Lá, nós não temos isso de aposentadoria, como vocês têm aqui. Então, quando os pais envelhecem, é papel dos filhos cuidar deles", contou. Os motivos para Serge continuar no Brasil são melhores oportunidades de trabalho e condições de vida. Quando perguntado sobre a saudade, ele riu e respondeu que não tem vontade de voltar e tampouco de sair do Brasil, como fizeram alguns amigos que foram para os Estados Unidos. "A mim, só me falta formar uma família, para tudo ficar perfeito aqui".

 

As pessoas haitianas e venezuelanas têm condições especiais para receberem a condição de refúgio no Brasil. Para cidadãos do Haiti, basta apresentar documentação na Polícia Federal para ter direito à residência em condições humanitárias. De acordo com o escritório de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), as violações sistemáticas de direitos e violência armada contínua no país acarretaram uma crise humanitária e, por isso, milhões de haitianos se veem forçados ao deslocamento para outros países.

Direitos humanos

No caso dos venezuelanos, os cidadãos não precisam de visto para entrar no Brasil. Desde 2019, há uma facilitação do processo para a condição de refugiado deles no Brasil, porque o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare) reconheceu a existência de violação de direitos humanos generalizada no país vizinho.

 

Jesus Moreno, 61, é venezuelano nascido no estado de Sucre. Chegou há três anos no país, em meio a pandemia de covid-19. Quando decidiu vir para o Brasil, as fronteiras estavam todas fechadas devido à crise sanitária, e ele ficou sete dias esperando na fronteira, em Roraima. O filho dele, de 26 anos, foi o primeiro da família a fazer a travessia. Apesar de apoiarem a escolha, Jesus e a companheira decidiram continuar no país natal. "Até que a minha companheira faleceu e eu me vi sozinho. Meu menino mora em Valparaíso de Goiás e foi até a fronteira me buscar e ajudar com a documentação", contou.

Morador de Águas Lindas, o haitiano Serge Dossou pedala 72km todos os dias para ir e vir ao trabalho em Vicente Pires(foto: Caio Ramos/CB/D.A Press)

Naquela altura, apesar da simplificação para venezuelanos ingressarem no país, sob a condição de refugiados, Jesus optou pela documentação de imigrante residente, que demorou um mês para ficar pronta. Quando veio para Brasília, o venezuelano disse a familiares e amigos que ficaram no seu país que só passaria dois anos no Brasil. Hoje, depois de três anos, ele "não tem vontade de voltar. Mas em Brasília, só quero ficar até o fim do ano, porque pretendo ir morar no Piauí". Ele reencontrou o amor e pretende morar com a namorada em terras piauienses.

Jesus tem apenas 40% da visão no olho direito e nenhuma no esquerdo. A cegueira parcial veio de uma cirurgia mal-sucedida de catarata realizada na Venezuela. "Gostaria de tentar uma aposentadoria por incapacidade aqui no Brasil", explicou. Um dos maiores êxitos do Brasil para o venezuelano é o Sistema Único de Saúde (SUS), em que se consegue fazer cirurgias gratuitas. Ele está na fila de espera para um procedimento sobre hérnia de disco.

A dolarização da economia com consequente desvalorização dos bolívar, como é chamada a moeda local, e a falta de apoio estatal foram as maiores causas para Jesus deixar seu país natal — para além da pandemia, na época. Os mesmos problemas enfrentados por 150 indígenas venezuelanos da etnia warao, que cruzaram as fronteiras entre os dois países a pé, andando pelo meio da floresta.

Dificuldades

A travessia foi feita em dois dias por um grupo de crianças, idosos, mulheres grávidas e homens da população ribeirinha, que vive às margens do Rio Orinoco, o principal do país vizinho. A maior bacia hidrográfica da América do Sul é chamada também de Rio Winikila, na língua warao. O idioma está entre uma das maiores dificuldades deste povo em diáspora, pois muitos sequer falam o castelhano, tendo como língua materna o warao. Asunilio Warao é um dos caciques de seu povo. À reportagem do Correio, ele contou que, apesar de terem entrado por Roraima, o objetivo era mesmo chegar até a capital federal. Assim que chegaram em Brasília, um grupo estava dormindo na rua em frente à Rodoviária do Plano Piloto e foi encaminhado para um abrigo de imigrantes e refugiados da Cáritas Arquidiocesana de Brasília, localizado em São Sebastião.

Atualmente, há três gerações de duas famílias warao em migração vivendo no local, a Zapara e Quijara, que juntas somam 150 pessoas. Asunilio veio com a companheira, Biuda Velasquez Zapata, fugindo da fome e da falta de acesso a alimentos, medicações e dinheiro. Biuda é artesã e produz bijuterias típicas de sua região, que são expostas e vendidas na Cáritas. O cacique também é artesão, mas faz bicos de ajudante de pedreiro sempre que é chamado. A maior fonte de sustento da família, no entanto, é proveniente da doação de cestas básicas. "Lá (na Venezuela), estava faltando dinheiro. A comida está muito cara", contou.

Aqui, em Brasília, a alimentação está baseada em frango, arroz e feijão, uma dieta diferente da que estão acostumados. Os warao que seguem na Venezuela vivem da pesca e de uma pequena agricultura familiar, onde cultivam tubérculos, como inhame e mandioca para consumo próprio. Contavam com o recebimento de cestas básicas para complementar a alimentação.  "Antes de você chegar para esta entrevista, eu estava falando com meu pai (na Venezuela). Ele disse que não tem comida nem dinheiro. Me pediu ajuda e eu infelizmente não tenho como mandar nada", disse à reportagem.

Luiz José Zapata veio com Biuda e Asunilio — trouxe seus quatro filhos. Ele trabalha como ajudante de pedreiro e outros bicos. No momento, está participando do Renova, programa da Secretaria de Estado de Trabalho do Distrito Federal do GDF, que oferece cursos de qualificação profissional, como auxiliar de manutenção, que engloba as profissões de carpinteiro, jardineiro, eletricista, encanador, serralheiro e pedreiro.

Biuda Velasquez mostra seu trabalho de artesanato(foto: Ed Alves/CB/DA.Press)

Acessos

As populações indígenas conseguem com mais facilidade a condição de refúgio, por chegarem em grupos e serem mais visível a necessidade da condição de refugiados no Brasil, como explicou o diretor de migrantes da Cáritas em Brasília, Paulo Henrique de Morais. "Aqui, na instituição, nós auxiliamos imigrantes e refugiados com os protocolos. A renovação de refúgio precisa ser feita entre seis meses e três anos, por exemplo", pontuou. Além disso, a Cáritas também acolhe refugiados facilitando os acessos às unidades de saúde, de educação e de trabalho. E também promove oficinas de trabalho e renda no ramo de artesanato.

Para Maria Eliana Barona, representante adjunta da Agência da ONU para Refugiados (Acnur) no Brasil "é na construção de políticas públicas sustentáveis que reside nossa capacidade de promover uma mudança duradoura (na questão dos refugiados). Vemos como essencial o desenvolvimento de políticas públicas em todos os níveis federativos — políticas que garantam, também localmente, o maior acesso a direitos e oportunidades às pessoas refugiadas, migrantes e apátridas", afirmou.

A Secretaria de Estado de Justiça e Cidadania do Distrito Federal (Sejus-DF) trata da questão migratória de maneira transversal. Quando procurada por um migrante, verifica a demanda e faz o encaminhamento para o órgão público que poderá fazer o atendimento. Também realiza atividades educativas voltadas à divulgação e à sensibilização de diferentes públicos sobre a temática do migrante, refugiado e apátrida.

 

Colaborou Caio Ramos* (estagiário sob a supervisão de José Carlos Vieira)

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Nova portaria aperfeiçoa a proteção de migrantes em situação de vulnerabilidade

 Nova portaria aperfeiçoa a proteção de migrantes em situação de vulnerabilidade

Foto: Divulgação

Brasília, 10/04/2024 - O aperfeiçoamento da proteção de migrantes em situação de vulnerabilidade é o objetivo da Portaria Interministerial nº 46, assinada pelos ministérios da Justiça e Segurança Pública (MJSP) e do Trabalho e Emprego (MTE). O instrumento normativo trata sobre a autorização de residência para vítimas de tráfico de pessoas, de trabalho escravo ou de violação de direito agravada por sua condição migratória. A portaria entra em vigor a partir do dia 17 de abril.

A coordenadora-geral de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e Contrabando de Migrantes da Secretaria Nacional de Justiça (Senajus), Marina Bernardes, ressalta que a reformulação foi proposta com o objetivo de fortalecer ainda mais a proteção de migrantes vítimas dessas graves violações. “O trabalho de reformulação foi uma construção coletiva e envolveu as instituições que podem requerer a autorização de residência, com a anuência do imigrante. O objetivo foi agregar ao texto os melhores padrões de proteção e a expertise de cada uma dessas instituições no tratamento dos casos”, afirmou.

O novo instrumento normativo substitui a Portaria nº 87, de 23 de março de 2020, do MJSP, a fim de trazer maior segurança jurídica e clareza, além de aprimoramentos.

O coordenador-geral de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Análogo ao de Escravizado e Tráfico de Pessoas do MTE, André Roston, esclareceu que o tema está relacionado com a efetividade global da atividade do Sistema Federal de Inspeção do Trabalho: o combate ao trabalho escravo no país. “Avaliamos que as principais demandas apresentadas pela Inspeção do Trabalho foram satisfeitas, garantindo a não discriminação do trabalhador por sua origem e colocando em primeiro plano a garantia dos direitos humanos e trabalhistas", ressaltou.

“Nem todo trabalhador estrangeiro irregular necessariamente é vítima do trabalho escravo, assim como nem todo trabalhador estrangeiro resgatado por auditores-fiscais do trabalho no curso de operações de combate ao trabalho escravo está em situação migratória irregular”, disse o coordenador-geral do MTE, André Roston.

Direitos humanos

Porém, a migração pode, em determinadas situações, de acordo com Marina Bernardes, ser um fator de vulnerabilidade capaz de inserir o indivíduo na cadeia de exploração do tráfico de pessoas e do trabalho escravo. “Muitas vezes, os migrantes não falam o idioma do país, não conhecem a legislação nacional e enfrentam dificuldades no processo de integração socioeconômica. Todos esses fatores combinados podem ser um campo fértil para a atuação de aliciadores para o tráfico de pessoas”, explicou.

O MJSP informa que o imigrante que tenha sido vítima de crime considerado grave violação de direitos humanos por instrumentos internacionais do qual o Brasil seja signatário - em especial a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir Cruéis, Desumanos ou Degradantes e o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional -, também poderá ser beneficiado com a autorização de residência.

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