Só este ano, mais de 14 mil haitianos já entraram no Brasil, país que
logo após o devastador terramoto de 2010 assinou um acordo para o acolhimento
de carácter humanitário de cidadãos daquele país. Na Barra Funda, em São Paulo,
todas as semanas chegam três autocarros repletos de naturais do Haiti vindos do
estado do Acre: a viagem, que quase inevitavelmente termina nas portas da
Igreja de Nossa Senhora da Paz, na Rua do Glicério, demora quatro dias sem
paragens. Ali, na Missão Paz, que desde 1978 acolhe migrantes (imigrantes e
refugiados) em São Paulo, sabem que serão recebidos, bem tratados e
encaminhados.
Yves
Joseph, de 41 anos, saiu do Haiti no dia 6 de Setembro, e está hospedado na
Casa do Migrante da Missão Paz desde então. A vinda para o Brasil foi a solução
encontrada para ajudar a família – a noiva e um filho – que ficou para trás.
“No Haiti não há trabalho, torna-se difícil fazer as coisas”, explicou ao
PÚBLICO – até a festa de casamento está suspensa, à espera que encha a
conta-poupança. Mas Yves, que trabalhava na construção, acredita que depois de
uma temporada no Brasil conseguirá reunir o dinheiro suficiente para melhorar a
situação da sua família, e voltar a casa.
As estimativas apontam para a existência de cerca de 35 mil haitianos no
Brasil, que se tornou o principal destino e maior pólo de atracção para a
imigração em toda a América Latina. E se o movimento se mantiver constante,
antes do fim deste ano, o número de haitianos no Brasil poderá chegar aos 50
mil, acreditam os investigadores do fenómeno migratório. As razões para sair do
Haiti em busca de uma vida melhor são óbvias – e são as mesmas daquelas que
levam milhares de bolivianos, peruanos e paraguaios a lançar-se para o país
vizinho à procura de uma solução para a pobreza.
Mas, crescentemente, há outras razões por detrás da enorme procura das
fronteiras brasileiras. Imigrantes provenientes da Colômbia escapam da
violência ou perseguição política; uma nova vaga de senegaleses, malianos ou de
nigerianos chegam em fuga de violentos grupos militantes como o Boko Haram.
Alto e esguio, o jovem Aravali-Moiakani, de 23 anos, veio do Congo há um mês,
“por problemas políticos. Era estudante e não podia ficar mais na
universidade”, justifica, acrescentando que gostava de continuar a estudar.
“Mas aqui queria começar a trabalhar, para depois poder ir para a
universidade”, acrescenta.
À entrada, estes novos imigrantes solicitam protecção ao abrigo do
estatuto de refugiados, que lhes garante o direito imediato à chamada carteira
de trabalho enquanto dura o processo de tramitação. Os dados oficiais do
Ministério da Justiça brasileiro mostram que, este ano, já foram entregues 6886
solicitações com pedido de asilo, que a ser deferidas duplicarão a população de
refugiados estrangeiros, que oficialmente é de 6721.
Nenhum destes números descreve, porém, as circunstâncias da chegada
desta população trabalhadora estrangeira, e menos ainda as condições informais
e por vezes desumanas que muitos imigrantes, exilados, refugiados ou
beneficiários de visto humanitário – como é o caso dos cidadãos do Haiti –
suportam para trabalhar, a maior parte deles na Área Metropolitana de São
Paulo, mas em vários outros estados do Brasil, principalmente no Sul: Santa
Catarina, Rio Grande do Norte e Paraná. É para lá que Yves Joseph vai partir
neste sábado, contratado por um aviário que recorre à Missão Paz para o
recrutamento.
O que diz um tornozelo
Desde o momento do aliciamento, nos seus países de origem, até à viagem com os “coiotes” que os entregam na zona da fronteira, homens e mulheres chegam a ser avaliados para que os seus futuros patrões já tenham uma ideia da “disposição” de cada um deles para o trabalho pesado – habitualmente nas limpezas, construção civil ou em matadouros e unidades frigoríficas de processamento de carne. Depois de entrarem no país, os haitianos (como os congoleses e restantes africanos, ou os dominicanos, que também já começam a chegar) são alvo de uma avaliação da compleição física, completa com uma medição da largura dos tornozelos, que determinará o posto para que cada um será escolhido. Tornozelo mais grosso, não serve para carregar; tornozelo mais fino, geralmente indica alguém que aguenta bem a dureza do trabalho e produz mais.
Desde o momento do aliciamento, nos seus países de origem, até à viagem com os “coiotes” que os entregam na zona da fronteira, homens e mulheres chegam a ser avaliados para que os seus futuros patrões já tenham uma ideia da “disposição” de cada um deles para o trabalho pesado – habitualmente nas limpezas, construção civil ou em matadouros e unidades frigoríficas de processamento de carne. Depois de entrarem no país, os haitianos (como os congoleses e restantes africanos, ou os dominicanos, que também já começam a chegar) são alvo de uma avaliação da compleição física, completa com uma medição da largura dos tornozelos, que determinará o posto para que cada um será escolhido. Tornozelo mais grosso, não serve para carregar; tornozelo mais fino, geralmente indica alguém que aguenta bem a dureza do trabalho e produz mais.
“É a negação total da inteligência, às vezes o Brasil parece que ficou
parado no tempo ou que está a retroceder”, choca-se Tânia Bernuy, coordenadora
do Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante, uma organização da
sociedade civil que se dedica ao bairro de Tatuapé, em São Paulo, onde tem
sede. “Quando chegam os negros, são ou para trabalho de carga ou para trabalho
em condições análogas à escravidão. São eles que garantem o trabalho manual e
pesado que os brasileiros deixaram de querer fazer”, diz.
Rita Cazia
Publico Pt
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