terça-feira, 28 de outubro de 2014

É “dureza” ser imigrante no eldorado brasileiro

Chegam do Haiti, da Colômbia, da Nigéria ou do Mali para trabalharem nas obras, nas fábricas, nos matadouros, nas limpezas. Não são os imigrantes qualificados, são os que procuram no Brasil o direito à sobrevivência que não têm nos seus países.

Só este ano, mais de 14 mil haitianos já entraram no Brasil, país que logo após o devastador terramoto de 2010 assinou um acordo para o acolhimento de carácter humanitário de cidadãos daquele país. Na Barra Funda, em São Paulo, todas as semanas chegam três autocarros repletos de naturais do Haiti vindos do estado do Acre: a viagem, que quase inevitavelmente termina nas portas da Igreja de Nossa Senhora da Paz, na Rua do Glicério, demora quatro dias sem paragens. Ali, na Missão Paz, que desde 1978 acolhe migrantes (imigrantes e refugiados) em São Paulo, sabem que serão recebidos, bem tratados e encaminhados.
Yves Joseph, de 41 anos, saiu do Haiti no dia 6 de Setembro, e está hospedado na Casa do Migrante da Missão Paz desde então. A vinda para o Brasil foi a solução encontrada para ajudar a família – a noiva e um filho – que ficou para trás. “No Haiti não há trabalho, torna-se difícil fazer as coisas”, explicou ao PÚBLICO – até a festa de casamento está suspensa, à espera que encha a conta-poupança. Mas Yves, que trabalhava na construção, acredita que depois de uma temporada no Brasil conseguirá reunir o dinheiro suficiente para melhorar a situação da sua família, e voltar a casa.
As estimativas apontam para a existência de cerca de 35 mil haitianos no Brasil, que se tornou o principal destino e maior pólo de atracção para a imigração em toda a América Latina. E se o movimento se mantiver constante, antes do fim deste ano, o número de haitianos no Brasil poderá chegar aos 50 mil, acreditam os investigadores do fenómeno migratório. As razões para sair do Haiti em busca de uma vida melhor são óbvias – e são as mesmas daquelas que levam milhares de bolivianos, peruanos e paraguaios a lançar-se para o país vizinho à procura de uma solução para a pobreza.
Mas, crescentemente, há outras razões por detrás da enorme procura das fronteiras brasileiras. Imigrantes provenientes da Colômbia escapam da violência ou perseguição política; uma nova vaga de senegaleses, malianos ou de nigerianos chegam em fuga de violentos grupos militantes como o Boko Haram. Alto e esguio, o jovem Aravali-Moiakani, de 23 anos, veio do Congo há um mês, “por problemas políticos. Era estudante e não podia ficar mais na universidade”, justifica, acrescentando que gostava de continuar a estudar. “Mas aqui queria começar a trabalhar, para depois poder ir para a universidade”, acrescenta.
À entrada, estes novos imigrantes solicitam protecção ao abrigo do estatuto de refugiados, que lhes garante o direito imediato à chamada carteira de trabalho enquanto dura o processo de tramitação. Os dados oficiais do Ministério da Justiça brasileiro mostram que, este ano, já foram entregues 6886 solicitações com pedido de asilo, que a ser deferidas duplicarão a população de refugiados estrangeiros, que oficialmente é de 6721.
Nenhum destes números descreve, porém, as circunstâncias da chegada desta população trabalhadora estrangeira, e menos ainda as condições informais e por vezes desumanas que muitos imigrantes, exilados, refugiados ou beneficiários de visto humanitário – como é o caso dos cidadãos do Haiti – suportam para trabalhar, a maior parte deles na Área Metropolitana de São Paulo, mas em vários outros estados do Brasil, principalmente no Sul: Santa Catarina, Rio Grande do Norte e Paraná. É para lá que Yves Joseph vai partir neste sábado, contratado por um aviário que recorre à Missão Paz para o recrutamento.
O que diz um tornozelo
Desde o momento do aliciamento, nos seus países de origem, até à viagem com os “coiotes” que os entregam na zona da fronteira, homens e mulheres chegam a ser avaliados para que os seus futuros patrões já tenham uma ideia da “disposição” de cada um deles para o trabalho pesado – habitualmente nas limpezas, construção civil ou em matadouros e unidades frigoríficas de processamento de carne. Depois de entrarem no país, os haitianos (como os congoleses e restantes africanos, ou os dominicanos, que também já começam a chegar) são alvo de uma avaliação da compleição física, completa com uma medição da largura dos tornozelos, que determinará o posto para que cada um será escolhido. Tornozelo mais grosso, não serve para carregar; tornozelo mais fino, geralmente indica alguém que aguenta bem a dureza do trabalho e produz mais.
“É a negação total da inteligência, às vezes o Brasil parece que ficou parado no tempo ou que está a retroceder”, choca-se Tânia Bernuy, coordenadora do Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante, uma organização da sociedade civil que se dedica ao bairro de Tatuapé, em São Paulo, onde tem sede. “Quando chegam os negros, são ou para trabalho de carga ou para trabalho em condições análogas à escravidão. São eles que garantem o trabalho manual e pesado que os brasileiros deixaram de querer fazer”, diz.

 Rita  Cazia
Publico Pt

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