Jean Ethaboen segura com as duas mãos, em esforço, um copo de
chá, feito de uma metade de uma garrafa de plástico cortada ao meio. Tem
auréolas negras em volta dos olhos, as mãos envolvidas em ligas, que tentam
estancar os cortes causados pelo arame farpado. Era provável que tivesse alguma
hemorragia interna, devido “ao espancamento da polícia marroquina”, que
apanhou na manhã daquele dia.
Jean
já tentou escalar cinco vezes as grades que dividem Marrocos e a cidade
autónoma de Melilha, território espanhol em África. Falhou sempre.
São
sete da tarde, começa a escurecer. Daquele acampamento de imigrantes no monte
Gurugu, localizado nos arredores da cidade de Nador, Marrocos, dá para ver o
mediterrâneo e as vedações que circunscrevem Melilha. “Vão continuar a aparecer
corpos a boiar no mediterrâneo enquanto a Europa não ganhar consciência”, diz,
do nada, ao olhar para o mar.
Senta-se
numa rocha e fica a olhar para o cenário, a miragem que o fez partir do Mali,
há 4 anos.
Pousa
o copo de chá no chão e leva as mãos à cabeça. Com as unhas, começa a arranhar
a face, como se estivesse a tentar arrancar alguma coisa de dentro dele. “Já
não me lembro o que me levou a sair da minha casa e pensar que a minha vida ia
ser melhor na Europa”, diz, rangendo os dentes. “Sonho… o que é um sonho?”,
acrescenta.
Jean
tenta arrancar o seu próprio sonho, numa procura de lucidez, mas não consegue.
A Europa está “demasiado” perto.
Uma imagem não vale mais
que mil palavras
Na
quarta-feira, uma fotografia tirada entre a fronteira de Marrocos e Melilha,
cidade autónoma espanhola em África, tornou-se viral na internet e foi
publicada por vários órgãos de comunicação em todo o mundo. Há quem a indique
como uma forte concorrente ao World Press Photo. “Está lá a história toda”,
disseram-me. Gostamos da fotografia porque simplifica a história toda,
resume-a. É fácil de ler.
Mas
o que se passou naquele dia é mais complexo do que parece. A fotografia corta
propositadamente a estrada que atravessa o campo de golfe, do lado esquerdo,
para ganhar mais impacto. Enquanto o jogo decorria, do lado de Marrocos,
estavam estacionados três autocarros prontos a conduzir os imigrantes a vários
pontos do país e depois abandoná-los, como já é prática comum desde 2012. Até
então, levavam-os para a cidade de Oujda, na fronteira com a Argélia,
incentivando-os a regressar aos seus países.
Estes
não escolheram aquela localização para saltar por ser mais fotogénica, é claro.
O salto daquela quarta-feira é consequência de o governo marroquino estar
também a construir a sua própria vedação, coberta inteiramente de arame
farpado. “Estão correr mais cortinas”, disse-me um dos imigrantes nas
montanhas, que se preparava para “saltar para Melilha.”
Partiram
do Gabão, Camarões, Guiné-Conacri, Nigéria, Mali, Argélia, Eritreia, Egito,
Costa do Marfim, Libéria… Todos com a mesma miragem: viver e trabalhar na
Europa.
Perto
do local onde a fotografia foi tirada, está o Centro Temporário de Imigrantes
(CETI) de Melilha. a grande maioria das pessoas que acompanharam a luta dos
imigrantes em cima das vedações foram refugiados sírios, provenientes das
cidades de Kobane e Aleppo. Assistindo aquela cena, discutiram quem era pior: o
Estado Islâmico ou Bashar Al-Assad, com mais empatia e moderação que muitos
debates parlamentares em Portugal. A normalidade do mal destas pessoas mede-se
noutra escala.
Ainda
assim, a grande maioria estava mais preocupada com a situação dos “pendurados”
do que falar sobre tudo o que tinham deixado para trás na Síria. “É mais
fácil de compreender a guerra do que as fronteiras”, disse um deles.
Alguns
dos imigrantes “pendurados”, durante o duelo que durou 13 horas, gritaram
muitas vezes “ébola”, uma técnica que os traficantes têm feito passar nas
montanhas, de forma a criar medo nos polícias que os impedem de descer e entrar
em Espanha. Sempre que aparecia uma televisão local, começavam a pedir ajuda.
“Liberdade”, pediam.
O
Observador viu como vivem os imigrantes nas montanhas de Marrocos, assistiu às
dificuldade antes e depois de saltar a “vala”, falou com refugiados fugidos ao
Estado Islâmico e que insistem ser “curdos de Kobani” e não sírios. Por fim,
apanhámos com um grupo de imigrantes o mesmo barco em direção a Málaga.
Observador
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