Passados quase 26 anos de promulgação da “Constituição Cidadã”, a
legislação brasileira ainda guarda vínculos com o passado que precisam ser
enfrentados. São “manchas”, como escreveu Luis Fernando Veríssimo em seu
conto A Mancha, publicado por ocasião dos 40 anos do golpe
civil-militar de 1964[1].
Aquele texto literário desvela um pouco da experiência político-institucional
brasileira, em particular o “turning point” jamais realizado pelo processo de
redemocratização no pós-ditadura, cujas continuidades/permanências marcam nosso
cotidiano jurídico-político. Um convívio entre o passado e o futuro, para
lembrar Hannah Arendt; ou entre o "não mais" e o "ainda
não", na fórmula de Giacomo Marramao.
O mais grave é que a projeção do passado no presente compromete também o
futuro, ao menos enquanto não “acertarmos as contas” com o legado do mais
recente período autoritário brasileiro. Passando da realidade da ficção à
ficção da realidade, constatamos que a política brasileira depende ainda
largamente de atores do passado, pesando como o chumbo daqueles anos tristes em
nossas instituições democráticas. Isto explica o porque a transição para
a democracia, supostamente “negociada” entre algozes e vítimas, tenha garantido
o continuísmo do “antigo” REGIME em
numerosos campos. As "manchas" são muitas, e não cabe aqui listá-las.
Nossa intenção, aqui, é tratar de uma delas, pouco referida no debate
sobre a democracia brasileira: trata-se do Estatuto do Estrangeiro (Lei
6.815/80), florão da velha ideologia da segurança nacional, que restringe os
direitos dos “estrangeiros”, reservando sua permanência no Brasil à completa
discricionariedade do Estado. Porém, sabemos o quanto é difícil para o cidadão
brasileiro dar-se conta de que esta legislação de outros tempos é a responsável
pela incapacidade do Brasil de ter uma política migratória à altura de seus
desafios. Daí decorre a sucessão de episódios que fazem as migrações
internacionais parecerem um grave problema a ser contido pelo Estado. Ao mesmo
tempo, o passado mais recente esconde uma verdade histórica que está em nossos
rostos e sobrenomes, qual seja o papel decisivo dos migrantes, provenientes de
diversas regiões do mundo, na construção de nosso país.
Ciente do papel do chamado “entulho autoritário” nas dificuldades de
promover a regularização migratória e os direitos dos migrantes, o Ministério
da Justiça, por meio da Portaria 2.162/2013, criou uma Comissão de
Especialistas com a finalidade de apresentar uma proposta de Lei de Migrações.
Não se trata, portanto, de reformar ou adaptar o Estatuto do Estrangeiro. O
objetivo foi eliminar da ordem jurídica pátria o nefasto legado da ditadura
militar nesta área.
Ao estabelecer uma tipologia jurídica do “migrante”, o anteprojeto
abandona o conceito de “estrangeiro” (do latim extraneus, com
sentido comum de alheio, esquivo, estranho ou impróprio), não apenas de
conotação pejorativa em nossa cultura, mas também juridicamente consagrado na
lei vigente como um sujeito de segunda classe, privado, sem justificação
plausível num REGIME democrático,
de parcela significativa dos direitos atribuídos aos nacionais.
Da Comissão de Especialistas fizeram parte, além dos autores deste
artigo, André de Carvalho Ramos, Aurélio Rios, Clèmerson Clève, Rossana Reis,
Tarciso Dal Maso Jardim e Vanessa Batista Berner. Entre 25 de julho de 2013 e
30 de maio de 2014, a Comissão reuniu-se com representantes de órgãos do
governo e de instituições internacionais, parlamentares, especialistas e
acadêmicos convidados, e promoveu, ainda, duas audiências públicas com ampla
participação de entidades sociais e da cidadania, tendo seus membros
participado individualmente de numerosas reuniões e atividades relativas aos
direitos dos migrantes e à legislação migratória, em diversas cidades do
Brasil.
Uma primeira versão do anteprojeto foi difundida em abril de 2014, e a
seguir submetida à discussão em audiência pública, recebendo mais de duas
dezenas de contribuições escritas de entidades públicas e sociais, e também
individuais de migrantes e de especialistas, além das sugestões da Secretaria
de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça (SAL/MJ). Foram consideradas,
por fim, as recomendações da I Conferência Nacional sobre Migrações e Refúgio
(Comigrar), ocorrida entre 30 de maio e 1° de junho de 2014, em São Paulo.
Para resumir o conteúdo deste anteprojeto, apresentamos suas principais
características. Em primeiro lugar, foi preciso compatibilizar a legislação com
a Constituição Federal de 1988 e os tratados internacionais de Direitos Humanos
aqui vigentes. Via de consequência, impunha-se uma mudança de paradigma, pois,
até então, migrações internacionais eram consideradas pelo direito brasileiro
como tema de segurança nacional ou questão de mercado de trabalho. Com o novo
anteprojeto, o Brasil passa a abordar as migrações internacionais sob a
perspectiva dos Direitos Humanos.
Para tanto, o anteprojeto converte a dicotomia brasileiro/estrangeiro em
uma nova paleta conceitual. A expressão migrante compreende imigrantes (os
nacionais de outros Estados ou apátridas que chegam ao território brasileiro) e
emigrantes (os brasileiros que deixam o território do Brasil). Os imigrantes
passam a ser classificados em transitórios, temporários e permanentes. Enquanto
os primeiros vêm ao Brasil para finalidade de turismo, negócios ou curta estada
para realização de atividades acadêmicas ou profissionais, os demais almejam a
residência no país, com intuito temporário ou definitivo. Além de superar a
conotação pejorativa da expressão estrangeiro quando aplicada a pessoas, esta
tipologia oferece per se maior informação sobre o status do
indivíduo, assim como maior eficiência na regulação de seus direitos e deveres.
Outra característica deste anteprojeto é o objetivo de dotar a ordem
jurídica pátria de coerência sistêmica. Com efeito, na falta de uma lei
compatível com o direito constitucional brasileiro e com o direito
internacional dos direitos humanos, ocorreu a proliferação de atos normativos
infra-legais para atendimento de demandas e situações específicas, em especial
as urgentes. Avançou igualmente a negociação, pelo Estado brasileiro, de
acordos bilaterais e regionais relativos aos direitos dos migrantes,
instituindo facilidades e benefícios para migrantes de determinadas
nacionalidades. Logo, convivem hoje no Brasil REGIMES de
acolhida e de autorização para trabalho acentuadamente diversos, a depender das
características dos migrantes em questão, pondo em xeque princípios
fundamentais como o da igualdade.
No entanto, a característica mais importante deste anteprojeto é
resultar de uma longa escuta e da ampla participação da sociedade brasileira.
Instadas em outras oportunidades a participar da elaboração de projetos de lei,
sem que suas propostas fossem tomadas em consideração, as organizações sociais
acumulam grande frustração pela persistência do Estatuto do Estrangeiro, que
dificulta sobremaneira o seu trabalho, além de suportar o ônus das disfunções
do Estado brasileiro em matéria de política migratória. Nossa proposta acolhe
demandas históricas de entidades sociais que atuam em defesa dos direitos dos
migrantes. Entre elas, destacaríamos a criação de um órgão estatal
especializado para atendimento dos migrantes, em especial para gestão do
processo de regularização migratória, com o necessário aprofundamento das
capacidades do Estado para produção de dados e formulação de políticas públicas
relacionadas a esta temática.
Outra reivindicação social de primeiro plano é a concernente aos
direitos políticos dos migrantes. Neste particular, nossa Constituição Cidadã,
em 1988, não pôde antever que paulatinamente numerosos Estados, inclusive os
europeus, passariam a consagrar o direito de voto dos migrantes, em especial
nas eleições relativas aos poderes locais. Porém, a inclusão social dos
migrantes só será possível quando a cidadania brasileira foi acessível a todos
que aqui vivem e trabalham. Dada à limitação imposta pelo texto da Lei Maior, a
Comissão rogou ao governo federal que envide esforços para que as Propostas de
Emenda Constitucional hoje em tramitação consigam, em breve, suprimir tal
anacronismo. No plano infraconstitucional, entretanto, este anteprojeto se
encarrega de suprimir as graves restrições ao exercício de direitos políticos
promovidas pelo Estatuto do Estrangeiro em vigor.
Por fim, o anteprojeto almejou preparar o Brasil para enfrentar o
momento histórico que vivemos, com se novo ciclo de migrações internacionais em
decorrência da globalização econômica, cujas diferenças em relação aos ciclos
precedentes desafiam os Estados. Na nova era da mobilidade humana, marcada pela
mudança dos modos de produção, pela notável evolução tecnológica, que
multiplicam vertiginosamente os deslocamentos humanos de curta e média duração
para fins os mais diversos, inclusive o trabalho e a reunião familiar, os
conflitos armados, os REGIMES ditadoriais
e as mudanças climáticas multiplicam os deslocamentos forçados (não desejados)
e as situações de refúgio.
O Brasil soube adaptar-se ao direito internacional dos refugiados ainda
na década de 1990, graças à Lei 9.474 de 22 de julho de 1997. No entanto, a
confusão entre situações de refúgio e de migração converte a ajuda humanitária
em política migratória, com graves consequências para os migrantes, mas também
para o Estado brasileiro, reduzindo a cidadania à mera assistência. Ademais,
ainda persistem, apesar dos esforços internacionais e nacionais, os casos de
apatridia.
O Brasil conheceu recentemente algumas crises agudas, geradas por fluxos
pontuais de migração internacional que, na falta de legislação adequada e de
políticas dela decorrentes, ocasionaram violações de direitos humanos e um grande
desgaste para os governos envolvidos, além de uma imagem negativa da mobilidade
humana junto à opinião pública. As crises obnubilam a verdade histórica de que
as migrações são grandes riquezas materiais e imateriais para um povo.
Emerge aqui uma questão de grande relevância: quais seriam os ganhos,
para um Estado e uma sociedade, da dificuldade de regularização migratória? Os
resultados das políticas migratórias dos Estados Unidos e da Europa desfazem o
mito de que é possível conter os fluxos de pessoas. A pequena ilha italiana de
Lampedusa tornou-se, além de hecatombe humanitária, o símbolo do colapso do
modelo europeu.
Burocratizar e restringir a regularização migratória não evita o
deslocamento, mas degrada as condições de vida do migrante, que passa, com
razão, a temer as autoridades. A precariedade decorrente da ausência de
autorização para trabalho e permanência no país é um evidente fator de
agravamento do déficit de efetividade dos direitos, não apenas dos migrantes,
mas também da população brasileira que com eles convive.
O êxito de sucessivas leis de anistia (sendo a mais recente a Lei
11.961, de 2 de julho de 2009), e igualmente dos acordos de residência firmados
no âmbito do Mercado Comum do Sul (Mercosul), permitiu a inclusão social de
milhares de migrantes. Grande crítico das políticas migratórias restritivas dos
países desenvolvidos, o Brasil mostra, por meio destes mecanismos, que um novo
paradigma migratório é possível. Países vizinhos já demonstraram esta
compreensão, como exemplifica a avançada legislação migratória argentina.
Há na proposta incontáveis sugestões, algumas delas literais, de
organizações sociais com longa tradição de trabalho junto aos migrantes. Alguns
dispositivos correspondem ao que de melhor foi colhido no direito comparado,
após exaustivo estudo das legislações migratórias de dezenas de países. O texto
inspira-se igualmente no direito internacional, com destaque para a já citada
Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores
Migrantes e dos Membros das suas Famílias, elaborada no âmbito das Nações
Unidas.
À guisa de conclusão, sustentamos que, com o advento da democracia, o
Brasil tem alterado radicalmente os seus paradigmas jurídicos em diversos
campos, inclusive os de árdua resistência cultural e pesada repercussão
econômica — leis sobre as relações de consumo e sobre a CONCORRÊNCIA,
normas ditas anti-tabaco, ações afirmativas etc —, superando continuidades
mentais e poderosas pressões, internas e externas, em benefício de mudanças
conceituais de tamanho vulto.
É dever imposto por sua multinacional demografia que o Brasil exerça
esta coragem no campo das migrações, superando rivalidades institucionais e
preconceitos memoriais para tornar-se, em breve, uma referência mundial em
matéria de mobilidade humana.
Em pleno século XXI, é preciso, efetivamente, limpar esta
"mancha".
[1] Companhia das
Letras, 2004. No texto o autor relata a história de “Rogério”, um ex-exilado
que, como repete o personagem constantemente, “enriqueceu”. Um personagem que
vive, no pós-exílio, da COMPRA,
demolição, construção e venda de imóveis “cariados” – como qualifica. Nesta
sanha cotidiana se vê, repentinamente, diante de um imóvel
decadente, que se encaixa em seu modelo de ação. Porém, ao nele ingressar, é
confrontado com o passado, ainda presente no piso de um dos cômodos. Neste, no
carpete, está a marca – “mancha” – da tortura que sofreu nos períodos “áureos”
da ditadura civil-militar (à) brasileira. No cotidiano do personagem e, a
partir das “descobertas” que este vai fazendo, passado e presente se misturam,
insistindo aquele em manter-se "vivo", por vezes com a conivência de
suas próprias vítimas.
Jose Luis Bolzan de Morais é procurador do Estado do Rio Grande do Sul e Membro da Comissão de Especialistas do Ministério da Justiça.
Paulo Abrão Pires Jr. é secretário nacional de Justiça do Ministério da Justiça.
João Guilherme de Lima Granja é diretor do Departamento de Estrangeiros do Ministério da Justiça.
Deisy de Freitas Lima Ventura é professora do IRI/USP e membro da Comissão de Especialistas do Ministério da Justiça.
Revista Consultor Jurídico, 4 de setembro de 2014
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