Números nunca totalmente confiáveis indicam que Minas Gerais conta com cerca de 1,5 milhão de descendentes de italianos,
dispersos pelas regiões Sul e Leste. No entanto, o Estado tem sido ignorado em
quase todos os levantamentos oficiais sobre a imigração italiana para o Brasil.
Poucos são os historiadores e pesquisadores que se dedicam ao tema e raros os
resultados desses estudos. Se nos detivermos então à Zona da Mata, onde cidades
inteiras ostentam indícios de presença oriundi, fica evidente o menosprezo a que fomos relegados.
Introduzido na Zona da Mata na década de 1830, o café iria
adquirir importância fundamental no total das exportações brasileiras. Entre
1870 e 1880, para atender às exigências cada vez maiores de diminuição dos
custos da produção, a malha ferroviária alcança a região. A mesma estrada que
transportava as sacas para o porto do Rio de Janeiro conduzia de volta levas e
mais levas de imigrantes que fugiam da miséria do Vêneto, norte
da Itália. Durou pouco, no entanto, a euforia. Já no final da primeira década
do século XX, a economia da Zona da Mata estava inteiramente desmantelada - o
golpe fatal dado pela quebra da bolsa de Nova York em 1929 e a tomada do poder
central por uma nova elite política, no ano seguinte. Assim, a região mergulhou
num processo de letargia, que absorveu a quase totalidade de suas cidades. O
empobrecimento empurrou as famílias imigrantes para a agricultura de
subsistência, em terras pouco férteis e distantes dos centros consumidores.
Com o parco capital
acumulado, os imigrantes conseguiram adquirir pequenos pedaços de terra (que
chamavam genericamente de “sítio”), onde cultivavam, utilizando mão de obra
familiar, produtos essenciais para o consumo próprio, como arroz, feijão e milho,
legumes, verduras e frutas, além da cana-de-açúcar, que complementava a
alimentação dos bois para abate e das vacas leiteiras, criados soltos no pasto.
No quintal, mantinham as “criações”, frangos para corte e galinhas poedeiras,
mas também patos, marrecos, perus e galinhas d’angola. Havia ainda porcos nos
chiqueiros e, eventualmente, cabritos e coelhos. Como moeda de troca, além dos
excedentes da produção caseira, apenas o fumo, que vendiam em cordas.
Vivendo de forma
espartana, isolados em suas propriedades montanhosas, muitas vezes de difícil
acesso, vencidas as distâncias a custo por meio de cavalos, charretes ou carros
de boi, pouco tempo restava para a convivência com outras famílias. Os inúmeros
filhos e filhas, embora compreendessem a língua dos pais, quando iam à cidade,
por ocasião da missa de domingo ou de festas religiosas, batizados e
casamentos, ou ainda de enterros, tentavam comunicar-se apenas em português
para se sentirem pertencentes ao novo país. A primeira geração nascida no
Brasil, portanto, já havia cortado os laços que a uniam à pátria distante. Além
do idioma, substituiu hábitos alimentares e comportamentos, e nem mesmo os
sobrenomes conseguiram manter: na hora de proceder ao registro dos
descendentes, os escrivães, sem entender direito o português estropiado,
anotavam o que lhes parecia ter um som assemelhado ao ouvido, que o imigrante,
analfabeto, não conferia.
O
trajeto entre o desordenado núcleo urbano de Rodeiro, agora um importante polo
moveleiro, e a Fazenda do Paiol, onde originalmente se estabeleceram os
Ruffato, desdobra-se hoje em desoladora paisagem. Nos pastos ressequidos,
cobertos por capim-gordura e retalhados em voçorocas, um pétreo silêncio esmaga
as ruínas do que foram casas simples, emboçadas ou de pau-a-pique, dispersas
pelo caminho. Se aguçarmos os sentidos, talvez ouçamos os murmúrios que o vento
espalha, quase sobrenaturais, para além da poeira amarela e seca que ignora as
cercas de arame farpado enferrujado. O incansável jorro de um cano de água que
desaba num inútil tanque de cimento verde de lodo... O som preguiçoso de bambus
que se esfregam se esfregam se esfregam... O tchibum de um tímido lambari oculto na loca de
um córrego... O canto merencório de uma adivinhada juriti... O esvoaçar de uma
seriema assustadiça... E, sobrepairando sobre tudo, uma terrível solidão, a
solidão dos lugares abandonados, mortos...A imigração é sempre a
encenação de uma tragédia. Ao deixar o torrão-natal —e essa é uma decisão
tomada quando já não resta nenhuma esperança—, somos obrigados a abandonar não
apenas a língua materna, os costumes, as paisagens, mas, mais que tudo, os
ossos dos entes queridos, ou seja, o signo que indica que pertencemos a um
lugar, a uma família, que possuímos, enfim, um passado. Quando assentado em
outras plagas, o imigrante tem que inventar-se a partir do nada,
reinaugurando-se dia a dia, numa terrível luta contra a invisibilidade, numa
incessante tentativa de não ser identificado como estrangeiro, forasteiro,
estranho. Por isso, rara é a literatura (ficcional ou memorialística) a tratar
da saga do imigrante no Brasil (seja de que nacionalidade for), e, quando
existente, tende, na maior parte das vezes, a emular uma história edulcorada,
como se, passando um verniz sobre as feridas, conseguíssemos estancar a dor causada
pelo fato de não termos raízes.
O que restou da presença
italiana por ali? Quase nada, além de sobrenomes mutilados... Os barulhentos
jogos de truco e bocha... Alguns traços da culinária, quem sabe... A caçarola,
espécie de pudim de queijo que devorávamos a caminho da roça... A minestra, a
polenta à bolonhesa, o macarrão com abobrinha italiana, a sofisticada flor de
abóbora à milanesa que minha mãe adornava caprichosa, e a inesquecível piada,
algo como um crepe que meu tio Pedro nos ofertava em longínquos cafés da manhã
de tempos idos... Que mais? Talvez um excessivo apego à família, uma inflexível
ética do trabalho, um arraigado catolicismo, um certo otimismo ingênuo...
El Pais
Luiz Ruffato é
jornalista e escritor.
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