Em 1980, no contexto da elaboração da Lei 6.815 (Estatuto
do Estrangeiro), havia uma séria preocupação com a presença de religiosos
estrangeiros na Amazônia, como atesta este discurso de um deputado da época,
conforme pesquisa realizada pela antropóloga Márcia Anita Sprandel no banco de
dados "Discursos e Notas Taquigráficas” da Câmara dos Deputados do Brasil:
"(...) Estes homens, representantes da Igreja
Católica, se lançam em campanhas perigosas para a Nação brasileira, como no
caso da demarcação das terras indígenas no Amajari. (...). Por uma coincidência
terrível, os padres e bispos envolvidos nesses episódios são sempre
estrangeiros, como já disse eu em outra ocasião, sem nenhum compromisso com
este País. Algo de muito importante existe comandando essas ações constantes e
desagregadoras, em detrimento da unidade nacional” (BRASIL, 1980 apud SPRANDEL
2015).
Como desdobramento, a autora relata que "passados
pouco mais de três meses da sanção da Lei 8.615, foi expulso do país o padre
italiano Vito Miracapillo, que trabalhava na cidade de Ribeirão, Diocese de
Palmares, em Pernambuco” (ibidem).
O sociólogo Eduardo Domenech, num ensaio sobre
anarquismo, imigração e deportação na Argentina, durante a assim chamada
"época das grandes migrações” (virada entre o século XIX e XX) chama
atenção acerca dos processos legislativos de criminalização dos imigrantes
europeus que ocorreram num contexto em que a representação social hegemônica do
imigrante, enquanto "agente de civilização” ou "força de trabalho”, é
gradativamente substituída pela representação do estrangeiro enquanto
"invasor”, "classe perigosa”, sobretudo pelo "medo da propagação
das ideias anarquistas e socialistas por meio do ativismo político e sindical
que alguns grupos de imigrantes tinham começado a implementar no mundo do
trabalho urbano” (DOMENECH, 2015).
Os dois exemplos supracitados atestam que hoje, assim
como outrora, as legislações e as políticas migratórias são frequentemente
utilizadas como dispositivos de repressão e expulsão de seres humanos
considerados "indesejados”, mediante a espúria "aplicação simultânea
da lei penal a migrantes (que não cometeram crimes) e a aplicação da lei de
migração a condenados por crimes” (GUIA; PEDROSO, 2015).
As políticas restritivas e os rígidos controles de
fronteiras, antes que dificultar a entrada de migrantes irregulares, visa a
produção da vulnerabilidade, da "irregularidade” ou, nas palavras de
Nicholas De Genova, da "deportabilidade” dos migrantes, obrigados, desta
forma, a permanecer no país de chegada como invisíveis, cidadãos de segunda
categoria ou, como diria Alessandro Del Lago, "não-pessoas”.
A deportação, mesmo quando não aplicada, se torna uma
verdadeira espada de Dámocles que paira sobre as cabeças de qualquer
estrangeiro, inclusive daqueles que residem de forma administrativamente
regular.
Este processo de criminalização, na realidade, não afeta
apenas os imigrantes, mas também a população autóctone. O francês Didier Bigo,
por exemplo, questiona as "políticas paranoicas” que visam construir
"objetos de medo [...] a fim de proporcionar a justificativa para uma
série de medidas que, de outro modo, seriam rechaçadas” (BIGO, 2015).
Como diria Zygmunt Bauman, o "capital do medo”
permite implementar e legitimar leis que violam abertamente direitos humanos,
inclusive das populações autóctones, em nome da luta contra o "inimigo”.
Desta forma a construção do inimigo – seja ele o migrante ou o muçulmano – se
torna o eixo central da governamentalidade dos regimes de exceção contemporâneos.
Giorgio Agamben, a este respeito, numa recente entrevista
ao jornal italiano "La Repubblica” (24.11.2015), sustenta que, na
realidade, "as razões de segurança não estão voltadas à prevenção de
crimes, mas a estabelecer um novo modelo de governo dos homens, um novo modelo
de Estado, que os politólogos americanos chamam ‘security State’, Estado de
Segurança. Deste Estado, que está tomando, em toda parte, o lugar das
democracias parlamentares, sabemos pouco, mas, com certeza, não é um Estado de
direito”.
Hoje, tomar posição em defesa de migrantes e refugiados
não significa apenas promover a dignidade de pessoas vulneráveis, mas também
preservar os sistemas democráticos e a lógica dos direitos humanos.
Ao tema da criminalização das migrações e dos migrantes é
dedicado o dossiê da última REMHU, Revista Interdisciplinar da Mobilidade
Humana, vol. 23, n. 45, jul./dez. 2015.
Roberto Marinucci
Adital
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