sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Criminalização das migrações

Em 1980, no contexto da elaboração da Lei 6.815 (Estatuto do Estrangeiro), havia uma séria preocupação com a presença de religiosos estrangeiros na Amazônia, como atesta este discurso de um deputado da época, conforme pesquisa realizada pela antropóloga Márcia Anita Sprandel no banco de dados "Discursos e Notas Taquigráficas” da Câmara dos Deputados do Brasil:



"(...) Estes homens, representantes da Igreja Católica, se lançam em campanhas perigosas para a Nação brasileira, como no caso da demarcação das terras indígenas no Amajari. (...). Por uma coincidência terrível, os padres e bispos envolvidos nesses episódios são sempre estrangeiros, como já disse eu em outra ocasião, sem nenhum compromisso com este País. Algo de muito importante existe comandando essas ações constantes e desagregadoras, em detrimento da unidade nacional” (BRASIL, 1980 apud SPRANDEL 2015).

Como desdobramento, a autora relata que "passados pouco mais de três meses da sanção da Lei 8.615, foi expulso do país o padre italiano Vito Miracapillo, que trabalhava na cidade de Ribeirão, Diocese de Palmares, em Pernambuco” (ibidem).

O sociólogo Eduardo Domenech, num ensaio sobre anarquismo, imigração e deportação na Argentina, durante a assim chamada "época das grandes migrações” (virada entre o século XIX e XX) chama atenção acerca dos processos legislativos de criminalização dos imigrantes europeus que ocorreram num contexto em que a representação social hegemônica do imigrante, enquanto "agente de civilização” ou "força de trabalho”, é gradativamente substituída pela representação do estrangeiro enquanto "invasor”, "classe perigosa”, sobretudo pelo "medo da propagação das ideias anarquistas e socialistas por meio do ativismo político e sindical que alguns grupos de imigrantes tinham começado a implementar no mundo do trabalho urbano” (DOMENECH, 2015).

Os dois exemplos supracitados atestam que hoje, assim como outrora, as legislações e as políticas migratórias são frequentemente utilizadas como dispositivos de repressão e expulsão de seres humanos considerados "indesejados”, mediante a espúria "aplicação simultânea da lei penal a migrantes (que não cometeram crimes) e a aplicação da lei de migração a condenados por crimes” (GUIA; PEDROSO, 2015).

As políticas restritivas e os rígidos controles de fronteiras, antes que dificultar a entrada de migrantes irregulares, visa a produção da vulnerabilidade, da "irregularidade” ou, nas palavras de Nicholas De Genova, da "deportabilidade” dos migrantes, obrigados, desta forma, a permanecer no país de chegada como invisíveis, cidadãos de segunda categoria ou, como diria Alessandro Del Lago, "não-pessoas”.

A deportação, mesmo quando não aplicada, se torna uma verdadeira espada de Dámocles que paira sobre as cabeças de qualquer estrangeiro, inclusive daqueles que residem de forma administrativamente regular.

Este processo de criminalização, na realidade, não afeta apenas os imigrantes, mas também a população autóctone. O francês Didier Bigo, por exemplo, questiona as "políticas paranoicas” que visam construir "objetos de medo [...] a fim de proporcionar a justificativa para uma série de medidas que, de outro modo, seriam rechaçadas” (BIGO, 2015).



Como diria Zygmunt Bauman, o "capital do medo” permite implementar e legitimar leis que violam abertamente direitos humanos, inclusive das populações autóctones, em nome da luta contra o "inimigo”. Desta forma a construção do inimigo – seja ele o migrante ou o muçulmano – se torna o eixo central da governamentalidade dos regimes de exceção contemporâneos.

Giorgio Agamben, a este respeito, numa recente entrevista ao jornal italiano "La Repubblica” (24.11.2015), sustenta que, na realidade, "as razões de segurança não estão voltadas à prevenção de crimes, mas a estabelecer um novo modelo de governo dos homens, um novo modelo de Estado, que os politólogos americanos chamam ‘security State’, Estado de Segurança. Deste Estado, que está tomando, em toda parte, o lugar das democracias parlamentares, sabemos pouco, mas, com certeza, não é um Estado de direito”.

Hoje, tomar posição em defesa de migrantes e refugiados não significa apenas promover a dignidade de pessoas vulneráveis, mas também preservar os sistemas democráticos e a lógica dos direitos humanos.


Ao tema da criminalização das migrações e dos migrantes é dedicado o dossiê da última REMHU, Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, vol. 23, n. 45, jul./dez. 2015.


 Roberto Marinucci

Adital




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