segunda-feira, 4 de maio de 2015

No primeiro ano choramos, no segundo acostumamo-nos


No primeiro ano choramos, no segundo acostumamo-nos", diz o empregado de um dos restaurantes de peixe do porto novo de Lampedusa, enquanto serve a clientela composta maioritariamente por jornalistas e habitantes locais.
Habituado a que as tragédias com barcos de imigrantes atraiam à ilha italiana dezenas de jornais e televisões do mundo inteiro, Maurizio atalha caminho dizendo que "este fenómeno não é novo" e acontece há pelo menos 25 anos. Este homem, com um sotaque italiano cerrado característico de quem sempre viveu naquele território insular, recorda os tempos em que havia humanidade, "quando os espanhóis emigraram em massa para a Argentina" e para outros países hispânicos do continente americano. "Agora só se pensa em negócio", diz com a convicção de quem sabe bem do que fala, atribuindo as culpas ao tráfico de seres humanos.
Recorda, com tristeza, os últimos anos na ilha. Anos difíceis por causa do isolamento geográfico e também pela atitude do Governo de Itália, que tem sido responsável pelo isolamento do território noutras áreas. O turismo está entre os mais afetados.
Os habitantes de Lampedusa queixam-se de uma queda gradual do turismo na ilha, mas não atribuem as culpas aos recém-chegados "sem papéis". Quem o afirma é Caterina Catalano, dona da Stilleto, uma loja de roupa moderna na única rua de comércio do arquipélago. A empreendedora italiana instalou-se na avenida pedonal Via Roma, em 2011, quando a Europa assistia, pela primeira vez, à vaga de imigrantes tunisinos engolidos pelo mar enquanto tentavam atravessar o Mediterrâneo, logo após as revoluções da Primavera Árabe.
 Caterina Catalano abriu uma loja numa rua pedonal da ilha 
O Governo italiano não promove Lampedusa como destino de férias, acusa Catalano, e os meios de comunicação social escrevem notícias alarmantes que afastam os turistas, que visitam cada vez menos a ilha. "Até ao momento chegaram menos turistas que no período homólogo do ano passado." Todos esperam um verão terrível.
Depois da tragédia que vitimou pelo menos 800 pessoas ao largo da Líbia, há cerca de duas semanas, os hotéis de Lampedusa receberam várias chamadas de futuros visitantes a desmarcarem a suas férias.
No entanto, este é um receio infundado, garantem os locais. Nas últimas duas semanas, dos mais de dez mil imigrantes resgatados por equipas de patrulha e salvamento, várias milhas a sul de Lampedusa, apenas 1700 foram trazidos para a ilha. Os restantes seguiram para outros portos italianos, como Catania, na Sicília, onde existem centros de acolhimento com mais condições para os receberem.
Os que se salvam de uma morte terrível por afogamento mal podem esperar para saírem da ilha. São bem tratados por quem os recebe, mas em Lampedusa não lhes é permitido pedir asilo político, nem prosseguir com as suas vidas. A maioria permanece cerca de uma semana, aguardando em lista de espera uma vaga a bordo do ferry que os levará para fora da ilha.

Deixam o centro de acolhimento às primeiras horas da manhã, o local onde foram cuidados, identificados e alimentados, onde puderam dormir em colchões. Um luxo para muitas destas pessoas, que há vários dias, ou até meses, dormiam ao relento, passavam fome, sede e as maiores privações que um ser humano pode enfrentar.
Na mão, carregam sacos de plástico onde colocaram os parcos pertences: roupa que lhes foi oferecida no centro, ou na paróquia local, pacotes de bolachas e, em alguns casos, maços de tabaco. São transportados de autocarro até ao porto, onde o ferry os levará à Sicília, o ponto de partida para uma nova vida.
Riem-se, cumprimentam-se e acenam no momento da despedida da ilha. Sabem que, doravante, estarão em segurança, mesmo que o futuro permaneça incerto. Alinhados em grupos, vão entrando no ferry, obedecendo de forma submissa às ordens da polícia.
De quase todos os recantos ou ruas de Lampedusa podem avistar-se embarcações da Guarda Costeira
Um oficial da Marinha italiana junto ao barco da Guarda Costeira, atracado no porto da ilhaVista aérea da ilha de Lampedusa, localizada em pleno mar MediterrâneoCentro de acolhimento de imigrantes de Lampedusa, com capacidade para 350 pessoasColchões empilhados no exterior das instalações do centroO sírio Tamer Maluhi mostra o seu passaporte. Muito poucos têm documentos de identificaçãoDois irmãos da Somália chegaram a Lampedusa a 17 de abril. Ficaram uma semana na ilha, antes de partirem para a SicíliaUm grupo de nigerianos observa o mar que atravessou num pequeno barco semirrígido, com outras 80 pessoasEdoseghe Ehiozomwangie perdeu a mãe e a irmã gémea num acidente de viação na Nigériaezenas de imigrantes chegam em autocarros ao porto de LampedusaA polícia pede-lhes que se sentem enquanto esperam para entrar a bordo do ferryEstas pessoas, jovens na sua maioria, serão transportadas em segurança até à próxima paragem: SicíliaQuase todos levam um saco de plástico com roupa e alguns bens essenciaisAlinhados em fila vão entrando no navio de transporteAtrás deles fica uma longa odisseia que durou vários dias, ou mesmo mesesHonest, uma bebé nigeriana de seis meses, é embalada pela mãeNos rostos de cada um deles vislumbra-se esperançaO porto que antes se enchera de homens, mulheres e crianças está agora vazio. Todos partiram em busca de uma vidaO ferry deixa a ilha com mais de duzentos imigrantes a bordoA Porta de Lampedusa (Porta da Europa), escultura ao fundo, homenageia os milhares de imigrantes que arriscam a vida a tentar atravessar o Mediterrrâneo«»
As barcaças de madeira e semirrígidos sem condições de navegabilidade, aquelas que os transportaram durante várias horas, ficaram lá atrás, na metade africana do Mediterrâneo. Os traficantes a quem demasiados pagaram tudo o que tinham - ou o que puderam pedir emprestado a familiares - já não podem fazer-lhes mal. Os países em guerra, onde foram perseguidos, maltratados, feridos, são agora uma miragem distante.
Muitos outros, que não estes, um número quase incontável, não tiveram tanta sorte. Os números apontam para mais de 21 mil mortos em águas mediterrânicas desde 1988. Em 2011 afogaram-se 2.352 pessoas e em 2014 foram 3.500. Nos pouco menos de quatro meses decorridos desde o início de 2015, o mar engoliu aproximadamente 1.600.
A impressionante contagem dos naufrágios ocorridos no Canal da Sicília desde 1 de novembro de 1988 pode ser consultada no blogue Fortress Europe (Fortaleza Europa), produzido pelo jornalista independente italiano, Gabriel del Grande. Este sítio funciona como um observatório das vítimas da travessia transfronteiriça, e conta as histórias de muitas destas pessoas depois da sua chegada à Europa. Para onde foram? Como é a sua vida nos centros de acolhimento e nas cidades que os receberam? Poderão, algum dia, vir a ser considerados cidadãos de plenos direitos na Europa?




 Expresso.Sapo

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