Nos últimos três anos, a Zara Brasil
trabalhou com afinco para evitar novos casos de trabalho escravo na confecção
de suas roupas. Como? Eliminando empresas com imigrantes latino-americanos da
sua rede de fornecedores. Como eles são as principais vítimas de trabalho
escravo no setor, cortá-los parece ter sido a solução mais fácil para proteger
a imagem da marca. É essa a constatação do Ministério do Trabalho e Emprego
(MTE), que autuou a multinacional por discriminação. A multa é de R$ 838 mil.
Em 2011, a Zara Brasil foi
implicada num flagrante de escravidão envolvendo 15 bolivianos e peruanos,
libertados pelo governo federal em oficinas de costura na capital paulista.
Após o escândalo, a empresa assinou um acordo com o Ministério Público do Trabalho
(MPT) e com o MTE. Nele se comprometeu a realizar auditorias privadas em sua
rede de fabricantes para sanar irregularidades trabalhistas impostas a
brasileiros e, principalmente, a estrangeiros como bolivianos e peruanos – as
principais vítimas de trabalho escravo no setor.
Mas, na avaliação
do Ministério do Trabalho, a empresa descumpriu reiteradamente essas
obrigações. A Zara não detectou ou corrigiu problemas graves que continuaram
ocorrendo na sua rede, como trabalho infantil e jornadas excessivas. Além
disso, a empresa teria desviado a finalidade das auditorias internas: ao invés
de aperfeiçoar as condições dos fornecedores, valeu-se delas para mapear e
excluir as oficinas de costura que empregam imigrantes – independentemente
de elas estarem ou não descumprindo a lei. A auditoria aponta que a
multinacional usou o novo controle interno prioritariamente para a eliminação
de riscos à sua imagem.
As consequências
dessa prática discriminatória incluem a perda do emprego para diversos
imigrantes cujas oficinas em que trabalhavam fecharam as portas após cortarem
laços com a Zara. O órgão federal contabilizou 31 fornecedores, em parte
pertencentes a donos também estrangeiros, que tiveram a saúde financeira
comprometida quando deixaram a rede de abastecimento da varejista. Muitos teriam
interrompido a produção sem quitar suas dívidas com os trabalhadores.
“A conduta da
Zara é muito grave e demanda uma punição rigorosa”, afirma Luiz Antônio de
Medeiros, Superintendente Regional do Trabalho e Emprego em São Paulo. Para
ele, as práticas corporativas da multinacional são contraditórias com as
políticas sociais anunciadas pela empresa. Após o caso de trabalho escravo que
atingiu a marca em 2011, a
Zara Brasil – que pertence ao grupo espanhol Inditex, maior varejista global de
moda em número de lojas – anunciou diversos investimentos para beneficiar a
comunidade de latino-americanos em São Paulo. Entre eles, a doação de R$ 6 milhões
para a criação do Centro de Integração da Cidadania do Imigrante (CIC), um
projeto do governo estadual para facilitar a regularização migratória de
estrangeiros residentes no estado.
A sombra da escravidão
Ainda segundo a
auditoria, em 2013, quando a exclusão de oficinas de imigrantes ainda não
estava completa, 8 mil peças da Zara foram manufaturadas em uma rede de
oficinas posteriormente flagradas com trabalho escravo.
O caso veio à
tona em novembro de 2014, quando auditores do trabalho resgataram 37 pessoas
submetidas à escravidão em duas oficinas gerenciadas por uma empresária também
de origem boliviana. Na ocasião, a Zara já não mantinha mais relações
comerciais com os empreendimentos do grupo. A produção era destinada à
varejista Renner, que foi responsabilizada pela situação.
A Repórter Brasil
conversou com dois dos bolivianos resgatados e eles afirmam que as condições
impostas aos costureiros em 2013, quando ainda produziam peças da Zara, eram
similares às da época do flagrante de trabalho escravo. Mas, como a auditoria
ocorreu após o fim do relacionamento entre o grupo de oficinas e a
multinacional, a Zara não foi responsabilizada. Os bolivianos relatam que
trabalhavam das 6 às 21 horas, seus pontos eram fraudados, eles sofriam ameaças
do supervisor, seus salários eram retidos e havia adolescentes trabalhando.
Esses problemas
não só foram ignorados pelo controle interno da Zara, como os relatórios de
auditorias internas numa dessas oficinas eram altamente positivos. “A oficina
recebeu da auditoria social a nota máxima prevista quanto à ausência de
ocorrências de trabalho forçado, trabalho infantil, discriminação, atentados à
liberdade de associação e negociação coletiva, tratamento áspero ou desumano,
não pagamento de salários e excesso de jornada de trabalho”, descreve relatório
de fiscalização do Ministério do Trabalho.
Controle interno ignorou acidentes e fraudes
Enquanto as
auditorias internas apontavam ambientes saudáveis, a auditoria do Ministério do
Trabalho identificou uma série de problemas trabalhistas nas empresas que
confeccionam as roupas da Zara. Foram auditados 67 de seus fornecedores diretos
e subcontratados, e o resultado impressiona: a partir de julho de 2012,
aproximadamente sete mil trabalhadores, segundo a fiscalização, foram
prejudicados por algum tipo de irregularidade trabalhista que a empresa havia
se comprometido a detectar e regularizar no acordo assinado com as autoridades
brasileiras. O MTE avalia que as multas pelo descumprimento dessa prerrogativa
podem chegar a R$ 25 milhões, cabendo ao Ministério Público do Trabalho acionar
a empresa para o pagamento do valor.
Houve ainda um
aumento no número de acidentes ou doenças ocupacionais registrados em sua
cadeia produtiva.
No total, 67 dos
casos em três anos foram considerados graves, com o afastamento do funcionário
por 30 dias ou mais. Eles incluem a mutilação de uma trabalhadora que perdeu o
antebraço direito e três dedos da mão esquerda em maquinário têxtil
posteriormente interditado pela fiscalização trabalhista. Constatou-se que o
equipamento funcionava sem sistemas de segurança adequados.
Os casos de jornada excessiva ou irregular,
identificados em 22 empresas, incluem fraudes em sistemas de registro de ponto
para viabilizar horas trabalhadas além do limite legal. O MTE identificou
diversos episódios de funcionários submetidos a jornadas superiores a 16 horas
diárias. Ou, ainda, sem poder gozar de ao menos um dia de descanso semanal,
conforme determina a lei.
Houve também o
flagrante de trabalho infantil em uma tecelagem que empregava dois
adolescentes, de 16 e 17 anos, em atividades insalubres. Além disso, das
empresas auditadas, 34% possuíam débitos no pagamento do Fundo de Garantia por
Tempo de Serviço (FGTS).
Resposta da empresa
Contatada pela
Repórter Brasil, a Inditex, controladora espanhola da Zara, afirmou que está
contestando legalmente os autos de infração lavrados pela fiscalização. “Nossos
advogados argumentam que elas (as autuações) são infundadas e não contêm nenhum
fato específico que viole o acordo assinado com as autoridades brasileiras”,
diz a empresa.
Sobre a prática
discriminatória apontada pelo Ministério do Trabalho, a multinacional diz que
não intervêm no recrutamento dos empregados de companhias com as quais mantém
relacionamento comercial. “A Zara é apenas mais um cliente entre muitos outros.
Aceitar essa premissa (discriminação de imigrantes) seria aceitar que todas as
empresas brasileiras contratantes desses fornecedores aplicam essa mesma
alegada prática, visto que a produção para a Zara nessas fábricas é menos do
que 15% do total”, coloca.
A Inditex afirma
ainda que o fornecedor posteriormente flagrado empregando mão de obra escrava
foi submetido a rigorosos procedimentos de auditoria interna, sem que fossem
constatadas quaisquer situações de trabalho que pudessem ser comparáveis à de
um escravo. Segundo a varejista, “duvidar desse fato não afeta apenas a
Zara, mas também as companhias especializadas (auditorias privadas) de
reconhecido prestígio internacional que realizaram as auditorias sociais
durante o período”.
Em relação às
demais violações de direitos trabalhistas identificadas pela fiscalização, a
multinacional contesta a existência de trabalho infantil e as informações do
Ministério do Trabalho relacionadas a funcionários sem carteira assinada. Diz
ainda que, em casos de jornadas excessivas e débitos de FGTS, teriam sido
implementadas, após auditorias internas, medidas corretivas em fornecedores.
“Por meio desse trabalho, a Zara conseguiu eliminar qualquer possibilidade de
emprego precário em sua cadeia produtiva”, atesta a Inditex.
A responsabilidade das grandes marcas
Os reiterados problemas identificados na
cadeia produtiva da Zara exemplificam como a terceirização está ligada à precariedade
laboral. Num relatório produzido em parceria com oCentre for Research on
Multinational Corporations (SOMO),
a Repórter Brasil investigou as políticas adotadas pela varejista após o
escândalo de trabalho escravo que afetou a marca em 2011.
O documento
destaca as contradições na conduta da empresa a respeito de suas terceirizadas.
Nos discursos de responsabilidade social, ela assegura ao mercado e aos
consumidores ser capaz de monitorar de forma eficiente as condições impostas
aos trabalhadores que fabricam suas roupas. Já no âmbito legal, refuta a
responsabilidade jurídica pelos crimes flagrados em oficinas de costura que
abastecem a marca.
A estratégia de
litígio da Zara, que contesta a fiscalização trabalhista e a própria legalidade
da “lista suja” do trabalho escravo – cadastro do governo federal que arrola os
empregadores responsabilizados por esse tipo de crime – é um perigoso
precedente para enfraquecer a capacidade do Estado brasileiro no enfrentamento
da escravidão contemporânea.
Por conta do seu
grande poder de compra, grandes varejistas tem significativa margem para impor
preços baixos e demandar entregas rápidas e flexíveis. São, portanto,
contribuintes diretos para o trabalho precário no setor. Ao mesmo tempo, as
grandes corporações no topo da cadeia produtiva beneficiam-se dessa estrutura
ao terceirizar, juntamente com a produção, também a responsabilidade por esses
trabalhadores.
Reporter Brasil
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