quinta-feira, 28 de maio de 2015

A peregrinação entre o pesadelo e o sonho dos imigrantes


Um só mundo: a utopia do mote global é antiga. Mas a realidade teima em aceitar a unificação. Se no passado estrangeiros em massa já foram recrutados pelos países, hoje são vistos como ameaças, até inimigos. São visitantes indesejados. No século 21, o futuro tarda. As fronteiras persistem, cercas e muros continuam sendo erguidos, cada vez mais alto. 

Muitos saem de seus países miseráveis, dominados por tiranias ou em guerra, buscando imaginados paraísos do outro lado do horizonte. A imigração se tornou um problema local de nuances continentais – na Europa a questão é uma, na América Latina, é outra. Que deveria ser tomado como global, assunto do planeta que encolheu e continua encolhendo, e pode sumir para todos os habitantes se não for tratado como o hábitat comum, e único, de toda gente.

Nesta terça, em São Paulo, João Kulcsár lança o livro de fotografias “Retratos imigrantes”, em que as imagens buscam transmitir a importância dos deslocamentos migratórios para a formação da identidade dos povos. Muitas fotos são da coleção de Augustus F. Sherman (1865-1925), funcionário de uma hospedaria em Nova Iorque, que retratou por duas décadas os imigrantes que chegavam aos Estados Unidos.

Se há diferenças nas migrações de povoamento e naquelas causadas por fuga e desespero, em que os viajantes se submetem a travessias arriscadas para deixar a terra do berço e cruzar o limite do sonho, para abandonar uma vida de pesadelo, aqueles que conseguem cruzar a linha real experimentam os mesmos sentimentos ambíguos de qualquer imigrante. 

Em artigo para a Revista USP em 1997, o saudoso Moacyr Scliar destacou que o imigrante que vai atrás da Terra Prometida pode pagar o preço do desenraizamento e da frustração, cultivando relação de amor e ódio com a pátria adotada. O olhar do imigrante, por outro lado, abre novas perspectivas na sociedade que descortina. É “uma situação tão rica em emoções que teria de necessariamente ser aproveitada pela literatura”. 

Entre os autores que tratam do tema na literatura brasileira, Scliar cita Nélida Piñon (com “República dos sonhos”), Milton Hatoum (com “Relato de um certo Oriente”), Ana Miranda (com “Amrik”), José Clemente Pozenato (“O Quatrilho”) e ele próprio, com “A majestade do Xingu”, sobre um emigrante russo que estuda medicina no Recife e se muda para o Rio de Janeiro.  O artigo de Moacyr Scliar pode ser lido em
http://www.usp.br/revistausp/36/12-moacyr.pdf.

A União Europeia quer limitar a quantidade de imigrantes em quotas para cada país, numa tentativa de impedir a continuidade da tragédia humanitária que se tornou a emigração no continente. No Brasil, a onda de haitianos no Acre tem causado problemas de atendimento nos serviços públicos em municípios de pequeno porte. Países que se desenvolveram com a força de trabalho imigrante hoje fecham as fronteiras, ou gostariam de fechá-las, pressionados pela população e por dificuldades de acolhimento e integração.

O sonho de portões e braços abertos deve seguir distante do imigrante, mesmo que, lembrando Nélida Piñon, o mundo seja a morada de peregrinos, e só na aparência tenha uma geografia. 


Fabio Lucas 

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