Buenos Aires / Política – Um sintético exercício simultâneo de cor histórica e atualidade política sobre o que os muros significaram e ainda significam na vida dos homens.Os muros, ou qualquer cerca física, sempre separam. Num espaço geográfico dividem países —são, quase sempre, fronteiras—, populações dentro de um mesmo país, cidades, sistemas de governo e grupos sociais; separam “bárbaros” de “civilizados”. Historicamente sua única justificativa possível, relativa, certamente é que serviram, na maioria das vezes, como defesa. Ainda restam vestígios, e mais do que isso, em muitas partes do mundo. O mais famoso é a imensa, extensa e inigualável Muralha Chinesa. Outros, mais próximos, são as ruínas de algumas muralhas romanas, incomparavelmente menores em tudo, que duram há mais de dois mil anos; fortalezas quase inexpugnáveis, cidades amuralhadas e outros artefatos servem de recordatório.
Nenhum muro tem boa fama, nem sequer os defensivos. Mostram um fracasso. Qualquer tenha sido a razão da sua construção, não pode deixar de se concluir que não se encontrou uma solução melhor. Esta afirmação se torna bem mais evidente e difícil de se contradizer nos tempos modernos.
Vamos introduzir outra variável: a graduação do mal. Isto é, pode-se considerar-se que há males “piores” e outros “nem tanto”. Isto só é evidente nas situações limite, onde os juízos de valor transitam pelo fio da navalha, apesar da resistência moral que suscita.
Vamos adicionar outra variável para aproximar-nos a um julgamento: as cercas físicas de qualquer natureza são equivalentes a muros, isto é, merecem o mesmo nome e similar avaliação negativa. O “engenho” do poder —quase sempre é algum poder o que constrói um muro— levantou cercas de diversas espécies e com diferentes resultados.
Uma última variável, antes de tentar combiná-las: toda sociedade tem direito a autodefender-se, incluindo a admissão intramuros. Se isto não fosse aceito, toda política migratória, entre tantos exemplos similares, seria ilegítima.
Bem: hoje o mundo vive um momento difícil quanto à subsistência de políticas, instrumentos, modalidades e critérios diversos a respeito de como conter, limitar, impedir, expulsar e “defender-se” do movimento de pessoas em toda a geografia. As experiências vividas na segunda metade do século XX, na qual foi emblemático o Muro de Berlim, têm deslegitimado qualquer tipo de construção similar, ainda que os objetivos não sejam os mesmos. O de Berlim não foi único por sua construção, senão por sua intenção e suas conseqüências política, social e humana. Foi planejado especialmente para impedir a saída, embora controlasse ambas direções —nós que transitamos pelo “check point Charlie” conhecemos isso bem—. No entanto, seu principal objetivo e “virtude” era frear a saída. Isso o tornou especial e único. Separou durante 28 anos a população de um só país, hoje reunido; dividiu não só a cidade de Berlim, rodeada por um muro com mais de 170 quilômetros de extensão, mas as duas partes da Alemanha, a ocidental e a oriental, com uma fronteira com mais de 1300 quilômetros de cerca eletrificada, acompanhada por um espaço de quase um quilômetro de terra “de ninguém”, com campo minado.
Deve-se ter cuidado na hora de comparar. O afã por condenar, explicável e meritório, não pode deixar de considerar as diferenças, que não são meramente de grau senão de espécie. Vejamos alguns exemplos atuais de cercas e muros que dividem populações, criando fronteiras “duras”, quase insalváveis.
Primeiro, os menos conhecidos. Existe um muro, que é uma vala profunda, com obstáculos em alguns setores e controle militar, que atravessa centenas de quilômetros entre o Iêmen e a Arábia Saudita. Foi construído por este último país para impedir a livre circulação, através da fronteira. É uma zona cujo limite foi fixado há menos de dez anos e por onde circula uma população difícil de se diferenciar, por tratar-se de tribos que habitam ambos lados.
O Iêmen é um país instável politicamente, cujo governo central não consegue controlar certas zonas, onde se refugiaram bandos terroristas provenientes de outros países, tais como Iraque ou Afeganistão. O objetivo é defender-se da penetração terrorista em territóio saudita. A conseqüência, embora seja menos querida, é a separação de tribos, clãs e famílias. Um muro divisório “duro”.
Uma construção similar, bem mais extensa, divide o reino saudita do Iraque. Aqui o objetivo defensivo é mais óbvio ainda, e as populações que separa, num dos desertos mais inóspitos, são realmente escassas. Mas o muro existe.
As variadas fronteiras divididas com muros, controles e forte presença militar no jargão costumam ser chamadas de “quentes”, e são mesmo. Dois dos exemplos mais importantes são os que separam as duas Coreias —talvez o lugar mais tenso do mundo— e a Índia do Paquistão, só um grau menos. Em nosso continente, a já emblemática fronteira entre os Estados Unidos e o México, com muros, cercas, controles com todo tipo de artefatos e inflexibilidade imaginária, há anos é um “modelo” do que queremos expressar.
Por último, o muro que divide a população palestina da israelense, em parte de seu próprio território, que separa membros das mesmas famílias, é um dos mais duros. É extenso, muito complexo em seu desenho, muito controlado, com várias passagens. Penetra em cidades, bairros e divide até moradias. Sua finalidade é conter possíveis ataques à população israelense. Visto desde certa altura, assemelha-se ao de Berlim, mas este tinha um espaço do lado oriental, a “terra de ninguém”, cuja vigilância era de tamanha crueldade que custou centenas de vidas.
O muro israelense, sem chegar a ser tão terminal em sua fatal eficiência, construído nestes tempos, resulta menos admissível. O muro caído em 1989 não pode ter passado em vão; não deveria ser concebível construir outros, mesmo que ainda não cheguem a tal extremo. A mera “teoria” do muro como instrumento de defesa ou de contenção está acabada.
Deveria ser tão irreversível sua condenação como é a inadmissibilidade da escravatura ou da tortura. Há erros ou pecados que não podem ser repetidos. Uma lição que 1989 nos deixou deveria ser esta, tal como passou com a tragédia do Shoa ou inclusive de nosso Nunca Mais.
Por outro lado, é difícil, quase impossível, entender que não existam outros meios para a legítima defesa dos cidadãos de Israel de qualquer tipo de ataque terrorista. Um dos países mais avançados do mundo não pode oferecer o espetáculo de fracassar numa operação que deveria ser encarada, sem chegar aos extremos de um muro. Isso é o que surpreende primeiro, e até ofende depois, a respeito desta separação. É uma forma tácita de rendição que aceita a incapacidade de encontrar uma via compatível com os paradigmas atuais da civilização.
Isto deve, ademais, ser válido para todos. Não cabem aqui as pretendidas diferenças “culturais”, que não são mais do que desculpas. Não se trata de abandonar os conceitos de fronteira, população própria e alheia, soberania territorial ou autodefesa. Não se trata de eliminar os países e criar uma espécie de governo mundial. Trata-se, isso sim, de deixar de lado formas e meios evidentemente inaceitáveis por sua falta de humanidade. Os muros, todos, são indignos do homem, tanto daqueles que sofrem como daqueles que os constrói.
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