Dos 23 integrantes da família Bakr que tentaram migrar do Egito para a
Europa em um barco lotado em setembro, acredita-se que apenas um tenha chegado
ao continente: o corpo de Malak Raafat Bakr, de um ano e dois meses, encontrado
na costa da Itália.
Acredita-se que os parentes que partiram com Malak - cujo nome significa
anjo - estejam entre as 500 pessoas que morreram afogadas após os traficantes
terem afundaram o barco onde eles estavam.
Sobreviventes dizem que os migrantes se recusaram a mudar para uma embarcação
menor, temendo que não tivesse condições de navegar no mar.
"Eu fui totalmente contra isso (a tentativa de imigrar), mas eles
diziam que não havia futuro aqui ou em Gaza", lamenta Atef Bakr, que
perdeu o irmão, o filho e o neto na tragédia.
Ele não tentou a travessia à Europa. "Eles tinham esse sonho de
chegar à Europa e ter uma vida decente."
Vulneráveis
Como os integrantes da família Bakr, mais de 3 mil migrantes morreram
afogados no Mediterrâneo só neste ano, segundo a Organização Internacional para
Migração.
Eles estão no meio de um impasse envolvendo o governo italiano e a União
Europeia que ameaça deixar ainda mais vulneráveis os já desprovidos indivíduos
que tentam chegar ao continente europeu por meio de barcos improvisados.
Quem foge de atrocidades não vai parar de vir para a Europa se pararmos
de lançar as boias salva-vidas. O único resultado de reduzir a ajuda será mais
gente morrendo desnecessariamente e vergonhosamente no batente da Europa.
Uma operação do governo italiano para resgatar migrantes no Mediterrâneo
já resgatou 160 mil pessoas de pequenas embarcações de refugiados. A iniciativa
foi lançada após centenas de migrantes terem se afogado na ilha de Lampedusa.
Mas a um custo de 9 milhões de euros por mês (cerca de R$ 2,8 bilhões),
e o envolvimento de 900 oficiais, a operação Mare Nostrum é um custo que Roma
já anunciou que pretende cortar.
Em seu lugar, a Agência Europeia de Gestão das Fronteiras Externas, a
Frontex, pretende introduzir o maior exercício já realizado para deter
migrantes. A operação Triton, que envolverá 20 países europeus, deverá ser
iniciada em 1º de novembro.
Mas o foco será no controle de fronteiras, e não a busca e resgate, e
agências de ajuda temem que mais migrantes irão morrer no mar.
A organização britânica Refugee Council exemplificou o teor das
críticas, dizendo que a medida levará mais gente a morrer
"desnecessariamente e vergonhosamente no batente da Europa".
A Frontex justifica o menor escopo da operação apontando para os números
recordes de chegada de imigrantes no continente europeu pelo mar: mais 182 mil
pessoas chegaram à Europa por mar em 2014, um número três vezes maior que o
total de 2013.
O impasse levou a Marinha italiana a anunciar que irá continuar com as
missões de busca e resgate paralelamente à operação Triton.
Risco caro
Esta foi a segunda tragédia para a família Bakr, de origem palestina,
nos últimos anos. O Hamas expulsou-os de Gaza em 2007 e tomou os negócios que
eles tinham. Eles se mudaram para o Egito, onde também enfrentaram problemas.
Então, pela primeira vez, alguns recorreram aos traficantes.
Bakr diz ter sido contra a viagem dos parentes: "Eles tinham esse
sonho de chegar à Europa e ter uma vida decente"
Atef Bakr, ex-coronel nas forças de segurança palestinas, tem uma fala
branda e os olhos vermelhos de um homem atingido pela tristeza. Hoje, ele passa
seu tempo em busca de notícias sobre o desastre e lamentando a perda de grande
parte da família, incluindo seu irmão, filho e neto.
Sua mãe, Amina, sentada ao lado coberta por um véu branco, relembra dias
melhores em Gaza. "Costumávamos comer juntos, beber juntos, fazer tudo
juntos. Rezamos a Deus que sejamos reunidos um dia. Temos a esperança de que
eles estão bem", disse ela, antes de cair em prantos.
Em uma triste coincidência, a maioria dos mortos tinha excelentes
habilidades de natação, já que a família era de pescadores. "Eles nadavam
no mar em qualquer época do ano", disse Bakr. "Eles podiam enfrentar
mares turbulentos e água fria. Eles ainda eram jovens. Como eles poderiam se
afogar?"
Os Bakr saíram de Damietta, no norte do Egito, onde o tráfico de pessoas
é um negócio crescente. Acredita-se haver cerca de 20 pontos de partida ao
longo da costa.
Migrantes pagam ao menos US$ 2 mil (cerca de R$ 4,9 mil) e, algumas
vezes, até US$ 4 mil (R$ 9,8 mil) por pessoa, dependendo das condições do
barco.
Os traficantes operam em espaços públicos - incluindo portos em
balneários turísticos - entre o amanhecer e as 17h para evitar patrulhas da
guarda costeira durante a noite.
A mãe de Bakr, Amina, limpa as lágrimas e diz: "Rezamos a Deus que
sejamos reunidos um dia"
Quando os migrantes chegam ao ponto de partida, são embarcados em barcos
de pesca que os levam para embarcações maiores em águas internacionais. Eles
passam dois ou três dias a espera do barco ser lotado com centenas de outros
migrantes. Então, iniciam a viagem à Itália.
Eles são transferidos então para outro navio que os leva a águas
italianas. Os traficantes, então, ligam para a guarda-costeira e jogam os
migrantes no mar para serem resgatados.
'Corpo sem alma'
Abu Baraa, que tem cinco filhos, conhece bem os perigos da travessia à
Europa. O refugiado sírio, que pediu que seu nome completo não fosse revelado,
já tentou a jornada 10 vezes. Em abril, ele ficou à deriva no mar por uma
semana com sua esposa e crianças.
Imagem de vídeo amador mostra migrantes sírios em barco de traficantes
durante travessia à Europa
"Havia 160 sírios no barco e 64 egípcios", disse.
Os principais traficantes são figuras obscuras, conhecidas apenas por
apelidos como Abu Hamada, também chamado de o Médico e o Capitão, e o General.
"No terceiro dia, eles disseram que não havia mais água, então
começamos a beber água do mar. Estava quente durante o dia e frio à noite. Meus
filhos ficavam assustados com o mar. Palavras não conseguem descrever o pânico,
o cansaço e a fome. Estes sete dias foram como sete anos".
Cidade de Alexandria, no Egito, é um dos lugares usados pelos
traficantes de pessoas
Eles acabaram de volta ao Egito após os traficantes se desentenderem
sobre o pagamento. "Outro barco estava nos perseguindo e tentando nos
afundar", disse Abu Baraa. "O capitão do nosso barco foi muito
corajoso e nos levou de volta à costa bem rápido".
Sua esposa e seus filhos finalmente chegaram à Europa em julho, mas ele
não teve dinheiro para ir com eles. Ele mostra, com orgulho, uma foto de sua
filha de 4 anos agarrando balões amarelos em seu primeiro dia na escola na
Alemanha.
"Não vou dizer que não tenho medo de fazer a travessia, mas se eu
tiver dinheiro, tentarei novamente", disse ele.
"Eles estão em um lugar e eu em outro. Sou como um corpo sem uma
alma".
BBC BRASIL
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