sábado, 1 de novembro de 2014

'Eles sonhavam com uma vida decente', diz homem que perdeu família em travessia à Europa

Dos 23 integrantes da família Bakr que tentaram migrar do Egito para a Europa em um barco lotado em setembro, acredita-se que apenas um tenha chegado ao continente: o corpo de Malak Raafat Bakr, de um ano e dois meses, encontrado na costa da Itália.
Acredita-se que os parentes que partiram com Malak - cujo nome significa anjo - estejam entre as 500 pessoas que morreram afogadas após os traficantes terem afundaram o barco onde eles estavam.
Sobreviventes dizem que os migrantes se recusaram a mudar para uma embarcação menor, temendo que não tivesse condições de navegar no mar.
"Eu fui totalmente contra isso (a tentativa de imigrar), mas eles diziam que não havia futuro aqui ou em Gaza", lamenta Atef Bakr, que perdeu o irmão, o filho e o neto na tragédia.
Ele não tentou a travessia à Europa. "Eles tinham esse sonho de chegar à Europa e ter uma vida decente."
Vulneráveis
Como os integrantes da família Bakr, mais de 3 mil migrantes morreram afogados no Mediterrâneo só neste ano, segundo a Organização Internacional para Migração.
Eles estão no meio de um impasse envolvendo o governo italiano e a União Europeia que ameaça deixar ainda mais vulneráveis os já desprovidos indivíduos que tentam chegar ao continente europeu por meio de barcos improvisados.
Quem foge de atrocidades não vai parar de vir para a Europa se pararmos de lançar as boias salva-vidas. O único resultado de reduzir a ajuda será mais gente morrendo desnecessariamente e vergonhosamente no batente da Europa.

Uma operação do governo italiano para resgatar migrantes no Mediterrâneo já resgatou 160 mil pessoas de pequenas embarcações de refugiados. A iniciativa foi lançada após centenas de migrantes terem se afogado na ilha de Lampedusa.
Mas a um custo de 9 milhões de euros por mês (cerca de R$ 2,8 bilhões), e o envolvimento de 900 oficiais, a operação Mare Nostrum é um custo que Roma já anunciou que pretende cortar.
Em seu lugar, a Agência Europeia de Gestão das Fronteiras Externas, a Frontex, pretende introduzir o maior exercício já realizado para deter migrantes. A operação Triton, que envolverá 20 países europeus, deverá ser iniciada em 1º de novembro.
Mas o foco será no controle de fronteiras, e não a busca e resgate, e agências de ajuda temem que mais migrantes irão morrer no mar.
A organização britânica Refugee Council exemplificou o teor das críticas, dizendo que a medida levará mais gente a morrer "desnecessariamente e vergonhosamente no batente da Europa".
A Frontex justifica o menor escopo da operação apontando para os números recordes de chegada de imigrantes no continente europeu pelo mar: mais 182 mil pessoas chegaram à Europa por mar em 2014, um número três vezes maior que o total de 2013.
O impasse levou a Marinha italiana a anunciar que irá continuar com as missões de busca e resgate paralelamente à operação Triton.

Risco caro
Esta foi a segunda tragédia para a família Bakr, de origem palestina, nos últimos anos. O Hamas expulsou-os de Gaza em 2007 e tomou os negócios que eles tinham. Eles se mudaram para o Egito, onde também enfrentaram problemas. Então, pela primeira vez, alguns recorreram aos traficantes.
Bakr diz ter sido contra a viagem dos parentes: "Eles tinham esse sonho de chegar à Europa e ter uma vida decente"
Atef Bakr, ex-coronel nas forças de segurança palestinas, tem uma fala branda e os olhos vermelhos de um homem atingido pela tristeza. Hoje, ele passa seu tempo em busca de notícias sobre o desastre e lamentando a perda de grande parte da família, incluindo seu irmão, filho e neto.
Sua mãe, Amina, sentada ao lado coberta por um véu branco, relembra dias melhores em Gaza. "Costumávamos comer juntos, beber juntos, fazer tudo juntos. Rezamos a Deus que sejamos reunidos um dia. Temos a esperança de que eles estão bem", disse ela, antes de cair em prantos.
Em uma triste coincidência, a maioria dos mortos tinha excelentes habilidades de natação, já que a família era de pescadores. "Eles nadavam no mar em qualquer época do ano", disse Bakr. "Eles podiam enfrentar mares turbulentos e água fria. Eles ainda eram jovens. Como eles poderiam se afogar?"
Os Bakr saíram de Damietta, no norte do Egito, onde o tráfico de pessoas é um negócio crescente. Acredita-se haver cerca de 20 pontos de partida ao longo da costa.
Migrantes pagam ao menos US$ 2 mil (cerca de R$ 4,9 mil) e, algumas vezes, até US$ 4 mil (R$ 9,8 mil) por pessoa, dependendo das condições do barco.
Os traficantes operam em espaços públicos - incluindo portos em balneários turísticos - entre o amanhecer e as 17h para evitar patrulhas da guarda costeira durante a noite.
A mãe de Bakr, Amina, limpa as lágrimas e diz: "Rezamos a Deus que sejamos reunidos um dia"

Quando os migrantes chegam ao ponto de partida, são embarcados em barcos de pesca que os levam para embarcações maiores em águas internacionais. Eles passam dois ou três dias a espera do barco ser lotado com centenas de outros migrantes. Então, iniciam a viagem à Itália.
Eles são transferidos então para outro navio que os leva a águas italianas. Os traficantes, então, ligam para a guarda-costeira e jogam os migrantes no mar para serem resgatados.
'Corpo sem alma'
Abu Baraa, que tem cinco filhos, conhece bem os perigos da travessia à Europa. O refugiado sírio, que pediu que seu nome completo não fosse revelado, já tentou a jornada 10 vezes. Em abril, ele ficou à deriva no mar por uma semana com sua esposa e crianças.
Imagem de vídeo amador mostra migrantes sírios em barco de traficantes durante travessia à Europa
"Havia 160 sírios no barco e 64 egípcios", disse.
Os principais traficantes são figuras obscuras, conhecidas apenas por apelidos como Abu Hamada, também chamado de o Médico e o Capitão, e o General.
"No terceiro dia, eles disseram que não havia mais água, então começamos a beber água do mar. Estava quente durante o dia e frio à noite. Meus filhos ficavam assustados com o mar. Palavras não conseguem descrever o pânico, o cansaço e a fome. Estes sete dias foram como sete anos".
Cidade de Alexandria, no Egito, é um dos lugares usados pelos traficantes de pessoas
Eles acabaram de volta ao Egito após os traficantes se desentenderem sobre o pagamento. "Outro barco estava nos perseguindo e tentando nos afundar", disse Abu Baraa. "O capitão do nosso barco foi muito corajoso e nos levou de volta à costa bem rápido".
Sua esposa e seus filhos finalmente chegaram à Europa em julho, mas ele não teve dinheiro para ir com eles. Ele mostra, com orgulho, uma foto de sua filha de 4 anos agarrando balões amarelos em seu primeiro dia na escola na Alemanha.
"Não vou dizer que não tenho medo de fazer a travessia, mas se eu tiver dinheiro, tentarei novamente", disse ele.
"Eles estão em um lugar e eu em outro. Sou como um corpo sem uma alma".


BBC BRASIL

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