sábado, 29 de novembro de 2014

Presas estrangeiras: contexto de violações ainda mais grave nas prisões brasileiras

Adital 

Até que ponto o encarceramento em prisões é uma política capaz de promover justiça, segurança e ressociabilização à população brasileira? A Irmã Michael Mary Nolan, presidente do Instituto Terra Trabalho e Cidadania (ITTC) responde que a privação de liberdade não funciona como uma política social efetiva. Ao contrário. Para ela, a política de encarceramento em massa está, hoje, permeada por uma política de guerra às drogas, de criminalização da pobreza e é um reconhecido espaço de violação de direitos.
Entre a população carcerária feminina, o contexto é ainda mais grave quando se trata de estrangeiras. Em entrevista exclusiva à Adital, a advogada de direitos humanos, especializada no trabalho com prisioneiras mulheres estrangeiras no Brasil, aponta que os casos da maioria das mulheres presas são uma consequência do aliciamento por parte do tráfico internacional de drogas, que as interceptam para atuarem como “mulas” do crime organizado, no transporte de substâncias psicotrópicas ilegais. Muitas vezes, elas nem sequer têm conhecimento da presença de drogas entre seus pertences.
Para as mulheres estrangeiras as ocorrências são ainda mais complexas, já que, além do conflito com a justiça, elas alegam sofrerem negação de direitos e discriminação em seus processos criminais. Segundo Michael, muitas vezes benefícios de execução de pena são negados simplesmente por elas não serem cidadãs brasileiras, mesmo que a legislação não preveja esse tipo de diferenciação. A dificuldade com o idioma na rotina carcerária é apontada como mais uma barreira no processo criminal, bem como a ausência de assistência aos direitos básicos das presas.
Nesse contexto, até mesmo depois que saem da prisão, as estrangeiras seguem enfrentando uma série de adversidades. A primeira delas, de acordo com irmã Michael, é encontrar espaços de acolhimento que as aceitem pelo fato de serem estrangeiras e egressas do sistema prisional.
Além disso, a maioria das mulheres é libertada sem portar consigo nenhum documento de identificação, o que as deixa numa situação irregular e ainda mais vulnerável na busca de acesso às políticas públicas e reinserção social. Segundo ela, a política social para pessoas em conflito com a lei deve basear-se no combate às políticas de exclusão e no desencarceramento. Atualmente, cerca de 750 mulheres estrangeiras estão encarceradas em presídios brasileiros, a maioria das nacionalidades boliviana, sul-africana e angolana.
ADITAL – Como são os atendimentos sociais prestados às presas estrangeiras pelo ITTC?
Michael Mary Nolan – OProjeto Estrangeiras, do ITTC [organização não governamental com sede na cidade de São Paulo (Estado em São Paulo), que atua na defesa dos diretos dos cidadãos com o objetivo de reduzir o encarceramento], realiza visitas semanais à Penitenciária Feminina da Capital, que concentra a maior parte das estrangeiras privadas de liberdade em prisão provisória e em regime fechado no país, e visitas mensais ao Centro de Progressão Penitenciária Feminino do Butantã, onde está a maior quantidade de estrangeiras em regime semiaberto.
Nessas visitas, são realizados atendimentos diretos, tanto individuais como coletivos, a fim de levantar as demandas destas mulheres, dar encaminhamento para resolvê-las e dar o devido retorno a elas sobre a nossa atuação com relação a cada caso.
Uma das maiores demandas é de atendimentos que chamamos de sociais, que se referem tanto à facilitação do contato delas com seus familiares no país de origem e com órgãos responsáveis pelo acompanhamento dos seus casos (Defensorias Públicas, representações diplomáticas, rede sócio-assistencial, entre outros), assim como à assistência em situações específicas que exigem mais atenção. É o caso, por exemplo, de mulheres gestantes em privação de liberdade, mulheres puérperas, que ficam com seus bebês recém-nascidos dentro da unidade prisional, e mulheres cujas crianças necessitam serem repatriadas ao país de origem ou se encontram em acolhimento institucional, por não terem pessoas que possam manter seus cuidados no período de encarceramento da mãe.
Além dos atendimentos sociais, prestamos orientação jurídica a essas mulheres com relação às diversas dúvidas que apresentam sobre seus processos criminais e sobre seus direitos. O ITTC realiza contatos com as famílias das presas, os consulados e terceiros para ajudarem a resolver os problemas apresentados. Também orienta as presas sobre seus direitos.
ADITAL – Qual o crime mais comum atribuído às presas estrangeiras?
MMN – Tráfico internacional de drogas. A maior parte das mulheres que acompanhamos foi presa como “mulas” do tráfico, na tentativa de embarcarem com drogas para o exterior. Em alguns casos, sem sequer terem a consciência sobre a presença de drogas em suas bagagens.
ADITAL – As presas estrangeiras têm atendimento jurídico satisfatório?
MMN – A maior parte das estrangeiras em conflito com a justiça é assistida em seus casos pelas Defensorias Públicas da União e do Estado, que se esforçam para prestarem atendimento jurídico satisfatório. Devido à grande quantidade de casos em que atuam e à quantidade insuficiente de profissionais que trabalham nesses órgãos, existe certa dificuldade em realizar atendimentos pessoais com frequência, mas a defesa nos processos criminais é sempre garantida.
Em maio de 2014, o Projeto Estrangeiras firmou um acordo com a Defensoria Pública da União, que permitiu o destacamento de pessoas estagiárias desse órgão para atuação direta e permanente com o Projeto Estrangeiras, o que aprimora a atuação tanto do projeto como da Defensoria. Além disso, semanalmente, somos acompanhadas por defensores e defensoras, que auxiliam com os atendimentos jurídicos. Sim, tanto a Defensoria Pública da União quanto a defensoria estadual prestam um excelente atendimento jurídico.
ADITAL – Qual a principal queixa das presas?
MMN – Uma das principais queixas diz respeito à negação de direitos e à discriminação que alegam sofrerem em seus processos criminais por serem estrangeiras. Em muitos casos, benefícios de execução de pena (progressão de regime e livramento condicional, sobretudo) são negados às estrangeiras somente com base nesse fato, apesar da legislação não prever tal discriminação e, pelo contrário, pregar a igualdade entre pessoas brasileiras e estrangeiras.
Outras queixas recorrentes são relativas à dificuldade de acesso à saúde dentro do sistema prisional, à dificuldade com o idioma na rotina dentro do estabelecimento e no processo criminal e à ausência de assistência de um modo geral.
Mesmo quando saem da prisão, as estrangeiras seguem enfrentando uma série de adversidades, a começar pela dificuldade de encontrarem espaços de acolhimento que as aceitam, pelo fato de serem estrangeiras e egressas do sistema prisional. Além disso, a maioria das mulheres é solta sem levar nenhum documento de identificação consigo, o que as coloca em situação irregular e entrava a busca por emprego e o acesso a políticas públicas.
ADITAL – Qual o principal motivo alegado pelas presas para terem entrado no mundo do crime?
MMN – Na grande maioria dos casos, que são relacionados ao tráfico de drogas, as mulheres não chegam a “entrarem do mundo do crime”, já que não se tornam parte de organizações, sendo apenas aliciadas para carregarem determinada quantidade de drogas para o exterior em troca de certa quantia em dinheiro.
O aliciamento e a aceitação da realização desse serviço ocorrem, sobretudo, devido a dificuldades financeiras e situações de necessidade vividas por essas mulheres que, geralmente, provêm de famílias numerosas e pobres das quais são as principais provedoras.
Entendemos que, em alguns casos, as pessoas aliciadas como “mulas” do tráfico de drogas são vítimas do tráfico de pessoas, por ocorrer o aproveitamento de sua situação de vulnerabilidade por parte de aliciadores, que recorrem a ameaças, fraude e outros mecanismos para a aceitação da realização do carregamento das drogas por parte dessas “mulas”. Entendemos que é a vulnerabilidade das mulheres que leva a maioria a entrarem nesse empreendimento. Entendemos que muitas são vítimas do tráfico humano.
ADITAL – Quem são os parceiros do ITTC?
MMN – As defensorias públicas, alguns consulados e pessoas que se interessam pela questão.
ADITAL – Do momento da acusação até o encarceramento, quais as violações dos direitos humanos que as presas mais sofrem?
MMN – O próprio sistema prisional do Brasil é uma violação de direitos. A política de encarceramento em massa acarreta a superlotação das unidades prisionais, que se tornam espaços de tortura permanente contra uma população marginalizada, que é, ao mesmo tempo, ignorada pelo Estado, no que diz respeito a políticas sociais, e alvo da seletividade do poder punitivo.
ADITAL – Há alguma mulher que foi presa por engano e cumpriu pena mesmo assim?
MMN – Há alguns casos de mulheres que ficaram presas provisoriamente e foram absolvidas em primeira instância, ao fim do processo de conhecimento. Há um caso de uma mulher que foi condenada a uma pena privativa de liberdade em primeira instância, cumpriu parte da pena e foi absolvida em segunda instância em Apelação Criminal.
ADITAL – Qual a visão que o Instituto possui a respeito da prática do encarceramento? É uma prática fracassada?
MMN – O Instituto é a favor do desencarceramento por entender que a política de encarceramento em massa é fracassada e injusta ao ser seletiva e direcionada à parte da população que, historicamente, sofre com a exclusão social e a invisibilidade no Estado de direito; que é o caso da população jovem, pobre, negra, moradora das regiões mais periféricas da cidade ou em situação de rua. Mais recentemente, as mulheres nestas condições também têm se tornado alvo desta política e da seletividade por parte do poder punitivo. Entendemos que é uma pratica fracassada e injusta.
ADITAL – O sistema prisional brasileiro consegue proporcionar alguma atividade de recuperação social para as detentas?
MMN – Não. O cárcere é incapaz de funcionar como “recuperador” ou “ressocializador” de pessoas por ser reconhecidamente um espaço de violação de direitos.
ADITAL – A política social com relação aos presos funciona? Quais são as soluções possíveis para mudar essa política?
MMN – Não existe política social com relação a pessoas privadas de liberdade, a não ser a política do encarceramento em massa, permeada pela política de guerra às drogas e pela criminalização da pobreza. A solução está no combate a todas essas políticas de exclusão e no desencarceramento.
ADITAL – O ITTC tem outros projetos que aparam as presas? Quais?
MMN – Em parceria com uma missionária voluntária, membro da Pastoral Carcerária, o ITTC tem desenvolvido ciclos de oficinas de saúde, direitos sexuais e gênero na Penitenciária Feminina da Capital [São Paulo].
ADITAL – Como participar dos projetos e atividades sociais do ITTC?
MMN – Frequentemente, abrimos editais de contratação de novos integrantes para os diversos projetos desenvolvidos pelo ITTC, todos disponibilizados acessíveis em nosso site e em nossa página no Facebook.
(Colaborou Marcela Belchior)


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