Para
Pascal Hakizimana e sua família, "raízes" é uma palavra vazia de
significado. Embora tenha vivido em quatro países diferentes, ele nunca teve
uma pátria para chamar de sua. Refugiado desde os quatro anos de idade e
apátrida durante toda a vida, ele agora sonha alcançar a plena cidadania no
Brasil.
O longo caminho que trouxe Pascal ao Rio de Janeiro, acompanhado
da esposa e dos dois filhos, todos apátridas, começou ainda na década de 1970.
Nascido no Burundi em 1968, ele teve que fugir com a mãe, sem documentos, para
o então Zaire (atual República Democrática do Congo) por causa do genocídio
praticado pela minoria tutsi contra a maioria hutu em 1972.
Lá cresceu e estudou em um campo de refugiados até se mudar para
Ruanda, em 1986, em busca do sonho de se tornar professor primário. Em 1994,
sem nunca ter conseguido trabalhar em uma sala de aula, Pascal presenciou um
novo genocídio, desta vez dos hutus contra os tutsis. Ao lado da esposa e da
filha, voltou para o antigo Zaire, fugindo dos ataques que vitimaram cerca de
800 mil pessoas no território ruandês em apenas 100 dias.
O sofrimento, porém, estava longe de terminar. Quatro anos
depois, a guerra civil eclodiu no país, rebatizado de República Democrática do
Congo. Pascal, agora com dois filhos pequenos, teve que fugir mais uma vez,
atravessando a fronteira com a Zâmbia para depois chegar à Namíbia. Vivendo
novamente em um campo de refugiados com a família, ele continuou enfrentando
dificuldades e, após 16 anos, se viu obrigado a empreender uma quinta viagem,
dessa vez rumo ao Brasil.
"Desde que chegamos à Namíbia, nunca tivemos melhoria de
vida", conta. "Lá não havia futuro para mim e para meus filhos, que
terminaram a escola, mas não podiam trabalhar, porque o país não dava
documentos para os refugiados. Então, decidi começar tudo de novo em outro
lugar."
Pascal e sua família chegaram ao Brasil em setembro de 2014, ano
em que se celebram os 60 anos da Convenção de 1954 sobre o Estatuto dos
Apátridas, primeiro acordo firmado na ONU para proteger pessoas que não têm
nenhuma nacionalidade.
No último dia 4 de novembro, o Alto Comissariado das Nações
Unidas para Refugiados (ACNUR) lançou a campanha global "Eu
pertenço", que tem como meta acabar com a apatridia nos próximos dez anos.
Há pelo menos dez milhões de apátridas no mundo atualmente, e a cada dez
minutos um bebê nasce sem ter nacionalidade reconhecida por nenhum Estado.
Pascal, que solicitou o status de refugiado ao governo
brasileiro, explica o sentimento de não pertencer a nenhuma comunidade
nacional. "É como se eu e minha família não existíssemos. Não somos
contabilizados por nenhum país. Sinto que não sou humano. Queremos que o Brasil
nos ajude, que nos dê uma nacionalidade, que nos deixe pertencer ao país.
Estamos prontos para contribuir plenamente como cidadãos."
Além da dificuldade de obter licença para trabalhar, os
apátridas têm outros direitos negados, sendo impossibilitados de votar e de
transitar livremente, por exemplo. Para viajar ao Rio de Janeiro, Pascal,
esposa e filhos conseguiram documentos de viagem junto às Nações Unidas e
vistos de turista na embaixada brasileira na Namíbia.
Com o protocolo de solicitante de refúgio obtido na Polícia
Federal, ele tirou sua primeira carteira de trabalho em 46 anos de vida. Seu
desejo agora é ganhar seu sustento através da música. Na África, Pascal formou
uma banda de reggae gospel com a família e chegou a gravar cinco álbuns. Ao vir
para o Brasil, porém, teve que deixar todos os instrumentos para trás e agora
não sabe como e quando poderá tocar novamente.
"A música tem sido nossa ponte aonde quer que nós vamos,
porque sua linguagem é universal. Somos viciados na nossa música, mas aqui não
temos nada. É como se estivéssemos perdidos", lamenta Pascal, saudoso de
seu baixo e sua guitarra. O filho, que chegou a estudar produção musical na
Namíbia, toca teclado e bateria, ao passo que a esposa e a filha são cantoras.
Enquanto não conseguem emprego ou os instrumentos para reativar
a banda, Pascal e sua família recebem assistência financeira da Cáritas
Arquidiocesana do Rio de Janeiro, parceira do ACNUR, e frequentam as aulas
gratuitas de português oferecidas pela organização aos solicitantes de refúgio.
Aos poucos, eles vão se sentindo cada vez mais brasileiros, sonhando com o dia
em que poderão dizer que de fato pertencem ao país.
"Se o Brasil me der a nacionalidade, sentirei que sou um
ser humano, alguém protegido pelas leis como todo mundo. Não sei como vou
comemorar. Para mim, será como ir para o céu. Sentirei mais orgulho de ser
brasileiro do que qualquer um de vocês. E vou querer servir ao país mais do que
vocês imaginam", conclui Pascal.
Por Diogo Félix, do Rio de Janeiro
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