sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Chegada de estrangeiros aumenta população negra do Vale


Vale do Taquari - A chegada de imigrantes haitianos, senegaleses, nigerianos e ganeses, nos últimos anos, desenha um novo cenário da miscigenação no Vale do Taquari. A população negra da região cresceu cerca de 50% com a vinda dos estrangeiros.
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Em 2010, o Censo Demográfico indicava que cerca de 8,6 mil pessoas - em torno de 2,5% da população total - eram negras. Hoje, somam-se à população local cerca de 4,4 mil imigrantes afrodescendentes que, desde 2012, desembarcam no Vale do Taquari em busca de oportunidades. 

A estimativa do número de imigrantes é do haitiano Renel Simon (25), que atua como recepcionista aos estrangeiros no Centro de Referência em Assistência Social (Cras) de Lajeado. "O principal motivo é o trabalho, mas alguns também vêm para crescer financeiramente e estudar", explica.

A chegada dos estrangeiros à região também é oportunidade para dar evidência à situação dos negros no país e levar a reflexão sobre a importância deles na economia, na história e na cultura brasileira. Da mesma forma, a valorização da identidade negra é necessária para a construção de uma identidade étnica brasileira. "O fato de ter um novo grupo negro ajuda a colocar em evidência injustiças que pessoas daqui estão acostumadas", considera o antropólogo Daniel Granada, coordenador da área de Humanidades da Univates.

Se, por um lado, a cor da pele é característica comum aos negros da região e aos que chegaram há pouco, por outro, diferenças culturais e históricas delineiam uma identidade própria para cada grupo. "O risco é de olharmos para eles e pensarmos em uma homogeneidade que não existe, mesmo entre os haitianos", destaca. Segundo Granada, ao contrário do que ocorreu em terras brasileiras, com escravidão que se arrastou por cerca de 300 anos, o Haiti foi o primeiro país negro do mundo a proclamar a independência.

O orgulho da história e a vivência em um país onde cerca de 95% da população é negra vieram na bagagem dos haitianos e se refletem no dia a dia deles. De acordo com Simon, não há relatos de casos de racismo explícito contra seus conterrâneos que escolheram o Vale do Taquari para viver.

As maiores dificuldades ocorrem em função do idioma - muitos ainda não falam a Língua Portuguesa. Além disso, o fato de serem estrangeiros é empecilho para encontrar uma moradia: alugar uma casa exige fiador e, nem sempre há pessoas com disposição para isso. "Há pessoas que não querem alugar casa para haitianos. Me parece um preconceito", afirma Simon.

Hoje, a maioria dos imigrantes atua na construção civil e em frigoríficos. Apesar disso, na opinião de Granada, empresários da região devem atentar para as potencialidades dos estrangeiros. Muitos deles, como Simon, falam mais do que um idioma e cursam ensino superior. Para o professor, que integra o projeto de pesquisa sobre a imigração haitiana no Vale do Taquari, investir e aproveitar o potencial dessas pessoas vai ao encontro da história da região, marcada pela imigração alemã e italiana. "Independente da cor da pele, temos que ter a grandeza de vê-los como pessoas que vieram contribuir com a região. Há espaço para essas pessoas trabalharem, estudarem e trazerem suas famílias para cá", enfatiza.

Granada é enfático ao observar que acolher e incluir os imigrantes negros não é dever, apenas, dos grupos afrodescentes, mas sim de toda a sociedade, assim como a valorização dos negros e o reconhecimento deles como peças fundamentais da história brasileira são aspectos inerentes à vida de todos os cidadãos. "Essa é uma batalha da sociedade e não de grupos específicos. Se os negros lutam por igualdade, o que se espera é que os brancos também lutem."


"Sou mais eu. Tenho orgulho de ser preto"
O músico e servente de obras Ezequiel Roberto Alves (26) virou a página e marcou o dia 27 de abril de 2014 como um recomeço de sua história. Na data, ele foi vítima de injúrias racistas durante uma partida do Campeonato Municipal de Futebol Amador, na localidade de Nova Berlim, em Canudos do Vale. O caso tem audiência marcada para daqui a 15 dias.

"Foi a primeira vez que passei por isso. Fiquei muito magoado, mas perdoo ela", diz o morador do Bairro Conservas, de Lajeado, em referência a torcedora que lhe ofendeu. "Minha mãe ficou triste, mas mandou eu seguir o barco". Ele afirma que durante a infância e adolescência que esse tipo de situação nunca havia acontecido. "Meu melhor amigo é branco. Nos conhecemos com dez anos", conta.

Porém, ao atingir a idade adulta, uma cerveja com os amigos no bar se tornou algo inconveniente. "Noto que as pessoas olham diferente, não se misturam. Mas não dou atenção". No momento em que sobe ao palco para atuar como percussionista, a figura muda de lugar. "Me respeitam, é muito tranquilo", afirma.

Em lembrança aos momentos já vividos e aos ensinamentos de sua mãe, Ezequiel conclui: "O ser humano está sujeito a tudo, por isso não me incomodo. Sou mais eu. Tenho orgulho de ser preto."

Recioli dos Santos está a frente do Centro de Cultura Afro-Brasileira de Lajeado há cerca de um mês. Mas, como negro, afirma que ainda há restrições, por parte dos próprios negros, a assumir a descendência."Sabemos que existe um preconceito velado na região e queremos trabalhar para que isso não afete o nosso povo". Ele destaca que ainda é preciso mais união dos negros. "Nosso objetivo é subir nos ombros dos nossos antepassados e recontar nossa história. Queremos ter o nosso chão."

Para o antropólogo Daniel Granada, os racistas são minoria - um parte da população que, "por falta de cognição", ainda julga as pessoas pela cor da pele - e têm reservado piadas e comentários racistas, cada vez mais, a ambientes domésticos, fora do espaço público. Apesar disso, defende a necessidade de punição dos casos. "É inaceitável que hoje continuemos atribuindo valor às pessoas de acordo com a cor da sua pele."


"Eu devo ao povo de Encantado"
No Brasil há oito anos, Pierre Dieucel (35) completa no próximo dia 30 um ano de ordenação. Vigário da Igreja Matriz de Encantado, ele conta que encontrou a alegria aqui, no Vale. "Precisavam de uma força jovem. Então vim para ajudar". Apesar de ser negro no meio de uma população branca, ele conta que as pessoas o receberam muito bem e solicitam a sua presença. "Nunca me senti tão acolhido."

Sensação que às vezes não é percebida em relação aos demais haitianos que moram ou trabalham na cidade. "A maioria os recebe e os ajuda, mas ainda falta cortar o preconceito pela raiz." Porém, destaca que, se comparado ao todo, o problema foi superado. "Falta eles se sentirem em casa", explica.

Dieucel acredita que, por ser padre, o respeito e o entendimento quanto à sua causa é maior. "É minha missão colocar Deus no coração das pessoas. Faço de tudo para que elas saíam da igreja felizes. É o mínimo que posso fazer, pois eles me acolheram. Eu devo muito ao povo de Encantado", completa Dieucel, que agora está certo do caminho que escolheu.

O presidente do Centro de Cultura Afro-Brasileira de Lajeado Recioli dos Santos, admite que ainda não há preparo da entidade para receber os haitianos. "Não temos muito esclarecimento quanto a outras línguas". Porém, afirma que já existe um trabalho neste sentido, tendo em vista a inserção dos estrangeiros.


Dia da Consciência Negra
Em 2003, através da lei 10.639, 20 de novembro foi oficializado como o Dia Nacional da Consciência Negra. Para o antropólogo Daniel Granada, a data cumpre um papel importante de valorização da identidade negra e também pela busca do reconhecimento da influência dos afrodescendentes na história brasileira. "A força de trabalho negra foi a base na qual o país se constituiu", ressalta.

O incentivo à escolha deste dia, em específico, partiu do professor gaúcho Oliveira Silveira, pois na data Zumbi dos Palmares, defensor das causas negras e luta contra a escravidão, foi assassinado. Após adesão do Movimento Negro Nacional, a legislação entrou em vigor e dentre as suas pretensões está a inclusão da história negra nos currículos escolares.


"A elite branca ainda permanece"
Para Granada, há uma exclusão social sistemática que abrange os negros desde a época da escravidão. Apesar de garantir a liberdade dos escravos, a abolição da escravatura deixou os afrodescendentes à margem: sem emprego ou terra para plantar. O coordenador da Área de Humanidades da Univates explica que, apesar de avanços, manteve-se a escala hierárquica da sociedade brasileira, na qual os negros ocupam a base. "A elite branca ainda permanece."

Segundo ele, é preciso realizar mudanças sociais de base a fim de garantir melhorias para os negros. Conforme o antropólogo, entre as dificuldades enfrentadas estão desigualdade de acesso à educação, dificuldade de acesso à saúde e de inserção no mercado de trabalho, além de menor valorização salarial. Outro fato importante são os índices de violência: homens jovens negros são os que mais morrem de forma violenta. "Tem muita coisa para se fazer."


Juliana Bencke e Carolina Chaves da Silva

Informativo do Vale


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