“Viva o Brasil. Viva o Brasil”. Na
Praça da Sé, localizada no centro da maior metrópole brasileira, refugiados que
moram em São Paulo cantam este refrão e balançam bandeiras de diferentes países
numa coreografia ensaiada.
Vista do alto, a imagem que vai se
formando pela dança das bandeiras é emoldurada pelas torres neogóticas da
Catedral Metropolitana de São Paulo, pelos coqueiros da praça e pelos edifícios
da cidade na qual estes refugiados estão refazendo suas vidas, longe de
conflitos, guerras e perseguições. Tudo está sendo registrado em um
documentário elaborado pelos próprios refugiados como parte de um projeto
inédito de sensibilização e conscientização do brasileiro sobre o tema do
refúgio.
A homenagem ao Brasil é legítima, mas
os refugiados que participaram desta atividade em uma nublada manhã de domingo
– além de outros que não estiveram na praça, mas que estão envolvidos com o
projeto – consideram que a maioria dos brasileiros desconhece o tema do
refúgio. Esta falta de informação, segundo eles, gera preconceito e dificulta
sua integração social e econômica no Brasil.
Para tentar mudar esta situação,
vários refugiados que vivem no Brasil – especialmente jovens – se uniram em
torno de um projeto para sensibilizar a população brasileira sobre sua situação
e seus direitos: trata-se da “Youth Initiative” (ou “Iniciativa Jovem”),
promovida pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) em
todo o mundo.
O objetivo global da “Iniciativa
Jovem” é contribuir para a proteção e o desenvolvimento de habilidades dos
jovens refugiados por meio de projetos que são pensados, elaborados e
executados por estes mesmos jovens. Neste contexto, propostas elaboradas por
jovens refugiados em mais de 60 países foram submetidas ao ACNUR e somente 16
foram selecionadas: entre elas, o projeto de sensibilização construído pelos
jovens refugiados que vivem em São Paulo.
A atividade realizada na Praça da Sé
é parte deste projeto e será incluída em um videoclipe que busca desconstruir
algumas das visões incorretas e estereotipadas que, segundo eles, muitos
brasileiros possuem sobre o tema.
No vídeo, os refugiados reproduzem a
chegada em São Paulo com malas identificadas com as bandeiras de seus países,
mas também com adesivos representando estereótipos negativos normalmente
associados à sua terra natal. Quando essas malas são abertas, começa a
desconstrução dos preconceitos, que é embalada por uma música composta pelo
grupo. Muitas das cenas têm sido mantidas em segredo, para não quebrar o
impacto do lançamento do videoclipe, previsto para o final deste ano.
Mesmo não tendo o português como sua
língua materna, os refugiados que compuseram a música do videoclipe escreveram
a letra em português, para inserir somente ao final da música algumas frases em
seus próprios idiomas. Do árabe ao espanhol; de urdo ao iorubá, os quase dez
idiomas registrados na música representam a diversidade da população refugiada
no Brasil: cerca de 7.200 pessoas, de mais de 80 nacionalidades diferentes.
“Eu saí da minha terra pra salvar a
minha vida, e têm várias histórias que a gente passou”, dizem os primeiros
versos da canção, que retrata vários fatos que levam uma pessoa a se tornar um
refugiado. O reconhecimento pelo acolhida dada no Brasil vem a seguir: “Viver
aqui nos traz esperança. Queremos compartilhar a nossa cultura. Brasil nos dá
mais segurança. Nós somos muito mais felizes agora”.
O vídeo também traz depoimentos
sobre a vida dos refugiados no Brasil, nos quais contam fragmentos de sua
história e reconhecem a generosidade do país em acolhê-los e as oportunidades
para começar uma nova vida.
Coordenado pela equipe da Caritas
Arquidocesana de São Paulo, o projeto envolveu discussões entre os próprios
refugiados, que identificaram as principais barreiras à sua integração no país.
O projeto vem sendo executado desde
agosto de 2014 e inclui – além da realização do vídeo – oficinas de trabalho
com os refugiados sobre seus direitos e deveres no Brasil e sobre criação,
redação, roteiro e música. Estas oficinas foram desenvolvidas ao longo dos
vinte encontros que antecederam a gravação da música (em um estúdio) e do
videoclipe.
Um dos mais ativos participantes do
projeto é o jovem Uchen Henry, de 21 anos, refugiado da Nigéria que vive no
Brasil há quase dois anos. Ele deixou seu país por causa de perseguições a ele
e à sua família e atualmente trabalha como professor de inglês em uma escola
particular.
“O Brasil dá segurança e esperança
para os refugiados, mas os brasileiros precisam entender melhor quem somos e porque
estamos aqui”, afirma Uchen. Ele conta que as pessoas costumam confundir as
palavras “refugiado” e “fugitivo”, o que deixa os refugiados numa situação
incômoda – pois gera reações de medo, e não de solidariedade.
Para o refugiado sírio Talal Altinawi,
que passou a integrar o projeto a partir da gravação do videoclipe, “os
brasileiros devem saber que os refugiados são pessoas como outras quaisquer”.
Ele chegou ao país há dez meses, com a mulher e duas filhas. Um novo filho está
a caminho, pois sua mulher está grávida de seis meses. “Somos irmãos e devemos
viver em harmonia”, afirma Talal, que trabalha atualmente como engenheiro
mecânico, exercendo a mesma profissão na qual se graduou na Síria.
Para alguns refugiados, a
participação no projeto tem sido uma maneira de externar opiniões e de se fazer
ouvir. “Podemos nos expressar, e sinto que não estamos sós”, afirma o
colombiano Álvaro Rodriguez (*), que aos 40 anos vive no Brasil com as duas
filhas e a mãe.
Assim como Talal e sua esposa,
Rodrigues e seus filhos foram convidados pelos jovens responsáveis pelo projeto
para participar das filmagens e representar as famílias que chegam ao Brasil,
após sofrerem perseguições e situações de guerra em seus países.
“Quando falo que sou um refugiado,
pensam que sou um delinquente, que estou escondendo algo. E isso se dá por
desconhecimento”, atesta Álvaro, que trabalha como cozinheiro em um restaurante
no centro da cidade. “Espero que o vídeo possa ajudar a esclarecer estes
conceitos”, espera Álvaro.
Para o representante do ACNUR no
Brasil, Andrés Ramirez, este projeto “está ajudando os jovens refugiados a
criar um novo significado sobre o que é ser um refugiado no Brasil e a
trabalhar habilidades em conjunto com outras nacionalidades, fazendo com que se
percebam como um grupo com demandas específicas e similares”.
Ramirez lembra que o projeto acontece
em um momento significativo para as estatísticas de refúgio no Brasil. Segundo
documento divulgado recentemente pelo ACNUR e pelo Comitê Nacional para os
Refugiados (CONARE), o número de pedidos de refúgio no país aumentou mais de
930% entre 2010 e 2013 (de 566 para 5.882 pedidos). Até outubro de 2014, já
foram contabilizadas outras 8.302 solicitações. A maioria dos solicitantes de
refúgio vem da África e da Ásia (inclusive Oriente Médio).
O número de refugiados reconhecidos
também aumentou expressivamente neste período. Em 2010, 150 refugiados foram
reconhecidos pelo CONARE, enquanto em 2014 (até outubro) houve 2.032 deferimentos
pelo CONARE, o que representa um crescimento aproximado de 1.240%.
Por Luiz Fernando Godinho, de São
Paulo
ACNUR
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