A noite cai em São Paulo, e os refugiados sírios Kamal e
Sana Daqa jantam com os filhos Alaa, Layan e Alhasan. Terminado o jantar, eles
recebem a visita de Khaled, irmão de Kamal que vive há pouco tempo em um
apartamento no mesmo edifício com a mulher e três filhos. Ao redor da mesa,
tomam chá e conversam.
Este seria um encontro trivial entre famílias, mas para
os irmãos Kamal e Khaled momentos como este ainda são muito significativos, já
que somente se reencontraram há poucos meses, depois de mais de dois anos de
separação causada pela guerra que assola seu país.
Após idas e vindas, em meio a bombardeios, prisões e
fugas espetaculares, os dois irmãos e suas famílias agora fazem parte da maior
comunidade de refugiados sírios na América Latina: já são cerca de 1.700
refugiados reconhecidos pelo governo brasileiro desde o início do conflito, em
2011.
Embora tenham tido trajetórias diferentes desde que foram
forçadas a deixar seu país, as famílias de Khaled e Kalmal vivenciaram o drama
dos civis que são afetados por uma guerra civil de grandes proporções:
abandonaram suas casas, deixaram para trás amigos, parentes e propriedades,
enfrentaram dificuldades no exílio e agora tentam reconstruir suas vidas com
dignidade.
A fuga de Kamal e sua família começou em 2013, quando os
conflitos inicialmente concentrados no interior do país se aproximaram
perigosamente de Damasco (a capital da Síria, onde viviam). Tinham uma vida
confortável, poupança, casa própria e carro. Mas, com o aproximar do perigo,
eles resolveram ir embora. Menos de 24 horas depois da partida, sua casa foi
atingida por bombardeios e destruída.
Após passarem pelo Egito, destino que já foi bastante
comum entre os refugiados sírios, Kamal e sua família decidiram vir ao Brasil,
porque não conseguiam renovar documentos de permanência e não tinham
perspectivas de integração naquele país.
Beneficiados por uma resolução normativa do Comitê
Nacional para Refugiados (CONARE) que facilitou a emissão de vistos para
cidadãos sírios, chegaram em fevereiro de 2014 e três meses depois foram
reconhecidos como refugiados. Com isso, obtiveram os documentos necessários
para se estabelecer definitivamente no país.
Já instalado, Kamal iniciou a busca pelo irmão Khaled e
descobriu que ele e sua família estavam vivendo há dois anos no campo de
refugiados de Zaatari, no norte da Jordânia. A fuga de Khaled da Síria foi
motivada não apenas pelo conflito generalizado, mas também por perseguições
individuais a ele e sua família. Vendo que muitos feridos temiam ir aos
hospitais comuns (onde muitos eram tidos como traidores e, por isso,
assassinados), ele decidiu, com o apoio da esposa, dedicar seu tempo e seus
recursos para ajudá-los a obter cuidados médicos na Turquia. “Fiz isso muitas
vezes, durante dois meses. Nem me lembro de quantas viagens cheguei a fazer”,
conta Khaled.
Visto com desconfiança por forças leais ao governo,
Khaled chegou a ser preso e torturado. Antes, conseguiu transferir sua família
para fora de Damasco. Após passar 11 meses detido, decidiu que era hora de deixar
seu país quando, já em liberdade, recebeu uma chamada telefônica da
polícia. “Eles me convidavam para uma
xícara de café. Mas sabia o que isso significava e resolvi deixar o país
urgentemente”, relembra.
Como sua família não tinha passaporte, ele precisou tomar
um caminho alternativo até a Jordânia.
O trajeto era muito perigoso, pela grande quantidade de
postos policiais no caminho. Era necessário desviar deles e isso só foi
possível graças às informações obtidas com um amigo da família. A parte final
do trajeto foi feita a pé. “Foram 16 horas caminhando, entre vales e montanhas,
com muito medo e sem bagagem”, conta Khaled. A família iniciou a viagem com
duas malas grandes e um lap top - o único objeto que conseguiram carregar até o
final.
Ao chegar à Jordânia, foram acomodados no campo de
Zaatari, onde ficaram por dois anos e meio.
Desde o Brasil, Kamal começou a buscar formas de trazer
seu irmão e a família e se deparou com uma grande barreira: a falta de
documentos de viagem. Apesar das facilidades criadas pela resolução normativa
do CONARE, toda a família de Khaled (exceto ele) não possuía um passaporte
sobre o qual o visto poderia ser emitido.
A solução foi a emissão de Laissez-passer, documento que
substitui o passaporte de estrangeiros em casos de emergência. O pedido foi
feito ao governo com o apoio da Caritas Arquidiocesana de São Paulo e a
determinação de Kamal. As passagens foram custeadas pela organização
não-governamental IKMR, que atua com foco na atenção a crianças refugiadas.
Há cerca de dois meses, então, Khaled, a mulher Yusra, e
os filhos Mustafa, Hanan e Yara finalmente deixaram Zaatari. No Brasil, foram
acolhidos pela família do irmão. As crianças ganharam a convivência dos primos
e a vida voltou a ter esperança.
“O que o Brasil nos deu, nenhum país nos daria em 500
anos”, diz Khaled. “Hoje, realmente descansamos quando dormimos, embora a vida
ainda esteja muito difícil”, completa Yusra.
O amparo financeiro para as despesas básicas é uma
preocupação diária e a adaptação com o idioma e a inclusão das crianças na
escola são processos recentes, que desafiam os refugiados recém-chegados e
aguçam a atuação das organizações de apoio.
Mesmo assim, Khaled e Yusra pensam em quem ficou para
trás. Em Zaatari, deixaram uma cunhada e três sobrinhos de Yusra, e um de seus
irmãos, que sobreviveu à fuga do Exército sírio. Outro irmão não teve a mesma
sorte. Kamal também se lembra da mãe, que hoje vive sozinha em outro país
árabe, após o falecimento do marido, no ano passado. Juntos, os irmãos agora se
esforçam para trazê-la para perto de si.
Por Larissa Leite, em São Paulo.
Por: ACNUR
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