quinta-feira, 29 de maio de 2014

EM QUE ÓRBITA NOS MOVEMOS?

Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS

São variadas as órbitas que cruzam e recruzam a complexa rede de caminhos, escolhas e alternativas da vida humana. Um inextrincável labirinto formado de medos e dúvidas, buscas e interrogações, desertos e encruzilhadas. Em qual dessas órbitas nos movemos? Talvez não seja esta a pergunta mais correta, uma vez que, em maior ou menor grau, cedo ou tarde, não podemos deixar de circular em todas as órbitas. Cumpre, pois, corrigir a pergunta: qual dessas órbitas privilegiamos, qual delas é a mais batida por nossos pés frágeis,  ansiosos e cansados? Somos capazes de distinguir, entre elas, o que é essencial daquilo que é secundário? Na breve trajetória de nossa existência, única e irrepetível, chegamos a descobrir a via justa?
Órbita do sucesso
A resposta a tais questionamentos exige, antes de prosseguir, que se lance alguma luz sobre as diferentes órbitas que a travessia existencial nos oferece. Uma das primeiras é a órbita do sucesso. Quem não o deseja para si e para seus familiares e amigos? E quem não o procura com todas as forças a seu alcance? Mas o sucesso tem suas armadilhas. Quando absolutizado, engendra um egocentrismo doentio e exacerbado. A experiência mostra que quem é movido a aplausos, elogios e incenso está condenado a oscilar irremediavelmente na corda bamba, entre altos e baixos. Se hoje se encontra lá em cima, em evidência nas páginas de jornais e revistas e na tela da televisão, amanhã poderá ser condenado a morder o pó da terra, pois o fracasso e a desilusão  representam o outro lado da moeda. Como a mentira, também o sucesso tem vida curta.
Prova disso são as estrelas do cinema e do esporte: brilham intensamente, mas se apagam na noite dos tempos. O resultado é que holofotes, câmeras e microfones não nos sustentam a longo prazo. E ainda por cima costumam nos tornar cegos, míopes e surdos às possíveis críticas. De fato, as estrelas não costumam prestar atenção às “aves de mal agouro”, além de não conversarem entre si nem com os planetas. O certo é que os meios de comunicação social – a mídia – ao mesmo tempo que erguem estátuas e as iluminam, com a mesma rapidez e indiferença as reduzem a sombras e escombros, ruínas e cinzas. Surfar na onda do sucesso equivale a perder o equilíbrio quando a mesma se desfaz e nos atira à praia vazia e soltária.
O fato é que, da mesma forma que o sucesso produz amigos a mãos cheias, o fracasso os afasta em questão de instantes, pois se trata de uma “amizade líquida”, para usar a expresão de Bauman. De resto o adjetivo predileto de Bauman pode bem estender-se a todo tipo de sucesso e de fama, como veremos adiante. Como já diziam K. Marx e F. Engels, no Manifesto Comunista, “tudo que é sólido desmancha no ar”.
Órbita do poder
Uma segunda órbita é a do poder. Anseio oculto e às vezes inconsciente, que se esconde nas reentrâncias mais recônditas do coração e das enranhas de cada ser humano. Neste caso, diferentemente da conquista do sucesso, para ganhar as alturas muitas vezes é necessário apagar o brilho das demais estrelas. Estamos num campo de disputa feroz e sem tréguas onde, na grande maioria das vezes, os meios justificam os fins. Enquanto o filósofo britâncio T. Hobbes, no Leviatã, lembra que o homem é lobo do próprio homem, o filósofo renascentista italiano N. Maquiavel, no Príncipe, deixa claro que para conquistar e manter-se no poder é necessário seguir leis férreas. Nesse jogo, popularidade e impopularidade são sempre uma faca de dois gumes, usada ou descartada de acordo com as circunstâncias, os adversários e a correlação de forças.
Não é à toa que muitas metáforas e expressões do universo bélico passam a fazer parte da prática política. Instrumentos de controle e manipulação da opinião pública – e hoje das pesquisas de opinião – fazem parte da ordem do dia. Daí a emergência do marqueteiro, profissional encarregado na imagem e do marketing do candidato. Também integram as regras do jogo o domínio sobre as informações privadas e sigilosas dos oponentes, o que costuma reduzir ao nível mais baixo não poucas campanhas eleitorais. Isso sem falar do uso das massas como trampolim para os cargos públicos, a compra e venda de votos, o tráfico de influência, a corrupção pura e simples, o nepotismo, populismo  e corporativismo... Enfim, tudo o que pode levar à conquista de uma cadeira dos altos escalões, bem como à sua manutenção se possível perpétua.
O poder, além do mais, implícita ou explicitamente, comporta o risco de cair numa ratoeira: a evolução ascendente da carreira política. Depois que se começa a subir os degraus da escada, deve-se olhar sempre para o topo. Qualquer vacilo pode significar o fim da ascensão e o início do declínio. Daí que, muitas vezes, os projetos de nação, pensados a longo prazo, se reduzem a projetos de poder, como moeda de uso imediato para as próxmas elições, em detrimento do bem-estar das próximas gerações.
Órbita da riqueza
Passemos à órbita da riqueza. Aqui nos deparamos com outra ratoeira, indissociável da anterior. De fato, se a ratoeira do poder nos prende pelo rabo, necessita da ratoeira da riqueza para um processo de equilíbrio e evolução constante. Combinadas, ambas interagem num processo dinâmico e dialético para sustentar-se reciprocamente: se, de um lado, a riqueza pode comprar os meios, as imagens e os votos (para não falar das pessoas) com o objetivo de chegar ao poder; de outro lado, este último abre janelas e portas para novos investimentos altamente lucrativos, mesclando indevidamente os âmbitos público e privado. Instala-se uma espiral que se amplia sempre mais, onde riqueza e poder, numa matrimônio indissolúvel, acumulam um patrimônio crescente de bens e de influência.
Tudo isso leva a um sistema, consciente ou não, de usufruto das coisas, das pessoas e das circunstâncias em favor do patrimônio pessoal ou familiar e, quando mesclado com a órbita do poder, em favor de um corporativismo de partido ou facção política. Pouco importa se o luxo leva à devastação do meio ambiente e ao desperdício. Menos ainda se caminha lada a lado com a pobreza, a miséria e a fome. A própria riqueza, ao produzir-se e reproduzir-se, cria um muro de isolamento e distanciamento com aqueles que ficaram à margem da estrada e da vida. Em grande parte dos casos, sequer se dá conta que tais marginalizados o são por terem sido antes expulsos, explorados, abandonados...
A riqueza, cuidadosa e menticulosamente, evita tomar conhecimento que progresso tecnológico e desenvolvimento, de um lado, injustiça, desigualdade social e subdesenvolvimento, de outro, constituem duas faces da mesma moeda. Não vê ou não quer ver que uma pequena minoria da sociedade é muito rica às custas da grande maoria que lhe faz os serviços mais sujos e pesados, mais perigosos e mal remunerados. Ponte retorcida que liga não somente pessoas, empresas e regiões no interior de uma mesma nação, mas igualmente os lados opostos das relações internacionais entre países centrais e periféricos.
Órbita da moda
Em quarto lugar vem a órbita da moda. Moda e sucesso se entrelaçam de forma muito estreita. Uma e outro, além de se darem as mãos, fazem parte das “coisas sólidas” que facilmente se derretem e se liquidificam, como ficou claro anteriormente. Mas a moda possui um ingrediente irredutível: a escravidão aos padrões publicitácios da opinião pública e da mídia. A prova mais notória e estridente encontra-se no estilo de vida das garotas que se dispõem a aventurar-se na carreira de top-model ou do balé clássico. O espelho, a balança e a academia lhes são verdadeiros tiranos que as seguem de perto, passo a passo, show a show. Também no universo da moda masculina, bem como em outros tipos de carreira, estão cada vez mais presentes semelhantes escravos e escravas do mercado de consumo.
Mesmo no conjunto dos mortais, a disputa pelos objetos de última geração associada aos custos para acompanhar os lançamentos da moda, engendra uma multidão de outros escravos. Dupla escravidão do desejo, na verdade. De um lado, o fascínio das novidades, profusamente iluminadas nas vitrines das lojas, aguça a ânsia do desejo, da compra e da posse; de outro, o objeto apenas adquirido torna-se rapidamente banal e obsoleto, tendo de ser descartado diante de um modelo de ponta, com um design mais moderno e arrojado. Assim, o desejo, insasiável e irrequieto, oscila sem descanso ao sabor dos ventos da moda. O pior é que o único fruto de tanta fadiga normalmente se reduz ao insipido tédio.
Com razão o filósofo francês Gilles Lepovetsky publicou a livro O império do efêmero, referindo-se à moda nas sociedade modernas. De fato, nada mais efêmero, provisório, passageiro, fugaz e esvoaçante. Exposto, além disso, aos boatos e interesses muitas vezes incofessados e inconfessáveis. Tem sua beleza e sedução, evidentemente, como a flor que de manhã surge viva e vicejante, mas à tarde murcha e espalha pelo chão suas pétalas mortas. Nesse sentido, o tempo costuma ser o pior inimigo da moda, como também o é do sucesso.
Órbita do prazer
Por fim, a órbita do prazer. Também neste caso não é exagero dar prosseguimento ao discurso da escravidão, desta vez diante das paixões, instintos e emoções mais desenfreadas. Predomina a absoluta impossibilidade de resistir aos impulsos imediatos, em vista de um prazer futuro, mais consistente e duradouro. Em tal perspectiva, poder-se-ia falar do império do presente, parafraseando a citada obra de Lepovetsky. Com irresponsável facilidade, renuncia-se a qualquer tradição, por positiva que seja, como também à elaboração de um projeto de futuro, com o único objetivo de desfrutar incontidamente o prazer do “aqui e agora”. Nesta encruzilhada da modernidade ou pósmodernidade, a sociedade do espetáculo se encontra com a filosofia do hedonismo, que prega o prazer pelo prazer.
Nota-se em tudo isso uma visão distorcida de duas lições que nos chegam da antiguidade: o epicurismo ateniense, na Grécia, e o carpe diem latino, do poema de Horácio. O epicurismo prega a teoria dos prazer, sim, mas de forma moderada, com vistas a uma tranquila serenidade futura. É a sabedoria de conter o próprio instinto do prazer imediato, para gozar de um prazer mais sólido e intenso no amanhã. Já o poeta Horácio convida literalmente a a colhe o dia, aproveitar a justa oportunidade, usufuir do momento pesente, mas sem esquecer os valores do passado e a responsabilidade com o futuro. Se e quando mal entendidas, as duas formas de filosofia do mundo greco-romano podem nos asfixiar num abismo sem fundo de um presente desfrutado até o extremo de uma embriaguez sem freios. Levado ao absoluto, o “aqui e agora” pode converter-se em um centro vorticoso, ao mesmo tempo fascinante e devorador, que em pouco tempo consome todas as energias, deixando para trás um vácuo de tédio e falta de sentido.
Seguindo a via larga do prazer sem limites, facilmente tropeçaremos com os becos sem saída do álcool, da droga e do sexo inconsequente – vícios que se revelam cada vez mais precoces nos adolescentes e jovens das gerações atuais. Mas o prazer descontrolado pode ir bem mais longe, chegando às formas patológicas do masoquismo, sadismo, pedofilia, entre tantas outras. Na sociedade contemporânea não há desculpas para ignorar o rastro de sofrimento que tudo isso deixa nos corpos e almas de tantas vítimas.
Órbita de Deus
Esta órbita de Deus não entra na sequência que elencamos, mas permeia transversalmente cada uma das anteriores. Tampouco constitui um caminho necessariamente alternativo às demais órbitas, pois, de uma forma ou de outra, vale insistir, nós circulamos em todas elas. Não se trata, ainda, de contrapor os ídolos (no plural e supostamente descritos nos itens anteriores) ao Deus verdadeiro. Mais do que ídolos, se configuram como dimensões da vida humana, podendo evidentemente ser idolatrados quando, e somente quando, absolutizados.
Aqui enfatizamos, antes, uma sintonia que nos coloca em intimidade com o Pai, na perspectiva mística de Jesus: o Senhor vem habitar nossa casa ou nós experimentamos o repouso indescritível da Casa de Deus. Tal sintonia não exclui as demais órbitas, quando estas seguem um meio termo de sabedoria e moderação, para reportar-se à máxima de Aristóteles. Porém, tendo a órbita de Deus um caráter absoluto, tende a relativizar as demais. Relativizar não significa diminuir ou descartar, mas colocar no lugar certo, dar-lhes o justo valor e tempero.
E agora cumpre fazer novamente a pergunta: que órbita privilegiamos? Encontramo-nos em grau de discernir o que nos é absoluto, fundamental e primordial daquilo que é secundário e, por isso mesmo, pode ser negociável? As várias órbitas que apresentamos constituem uma tentação e uma queda constantes, ou, ao contrário,  somos capazes de manter o núcleo, a meta, o foco de nossa opção de vida? Mesmo transitando por todas as órbitas, o deafio é ver nelas meios relativos para que ressaltem a órbita de Deus. Somente esta última, de fato, pode preencher os anseios mais profundos, imprescrutáveis e desconhecidos de cada pessoa.
Nem precisaria acrescentar que a vida, obra, palavras e prática de Jesus de Nazaré, bem como de tantos outros testemunhos ao longo da história (cristãos ou não), nos podem reconduzir ao que é esencial: simultaneamente à fonte e ao foco, à memória e à promessa, ao passado e ao futuro – tornando mais intenso o compromisso do presente. Aliás, é o que nos lembra uma das frases mais repetidas do Evagelho: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6).

Roma, Itália, 25 de maio de 2014

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