Veiculada por parte da mídia, ideia
equivocada de que o recente fluxo de haitianos ao Brasil é enorme,
descontrolado e prejudicial ao País pode levar setores da sociedade a
discriminar imigrantes e violar os direitos humanos, alerta professora
da USP
PAULO HEBMÜLLER
Ao longo de 90 anos, a antiga
Hospedaria dos Imigrantes de São Paulo, localizada no
Brás, recebeu 3,5 milhões de pessoas (1,9 milhão de estrangeiros de 75
nacionalidades e etnias e 1,6 milhão de brasileiros de outros Estados) que
carregavam – muito mais do que malas e bagagens – sonhos, expectativas e o desejo de trabalhar por uma vida
melhor. O auge dessa saga se deu na virada do século 19 para o 20: entre 1886 e
1915, chegaram cerca de 2,8 milhões de pessoas, parcela de uma diáspora mundial
que, desde 1820, transferiu aproximadamente 50 milhões de pessoas,
especialmente da Europa, para o continente americano.
Parte das
instalações do prédio é dedicada a contar essa história: fechado para reforma
desde 2010, um renovado Museu da Imigração reabrirá suas portas no próximo dia
31. De acordo com os idealizadores do projeto, além de manter um coração
“museologicamente” tradicional, a ideia do centro cultural é refletir sobre a imigração na contemporaneidade. Afinal, os fluxos migratórios, motivados
pelas mais diversas razões, seguem intensos. Basta circular pelos bairros do
entorno da antiga hospedaria (o próprio Brás, a Mooca e o Belenzinho, por
exemplo) para comprovar que os redutos antes ocupados por italianos e outros
imigrantes europeus, com o passar das décadas, receberam também brasileiros de
outras regiões e, mais recentemente, estrangeiros que continuam chegando à cidade, como bolivianos,
chineses e africanos.
“Uma mudança importante em relação ao
passado é que nossos avós e bisavós vinham para ficar no País. Hoje as pessoas
ficam enquanto tiverem trabalho, característica dos novos ciclos de imigração
no mundo a partir da década de 1980”, avalia Deisy Ventura, professora do
Instituto de Relações Internacionais (IRI) da USP. Uma das razões da
mudança é que a produção na economia globalizada é descentralizada. No caso da
indústria têxtil, que atrai especialmente trabalhadores bolivianos e coreanos a
São Paulo, pequenas oficinas costuram para distribuidoras que mais tarde
repassam o material à grande comercialização. “Famílias que hoje encontramos em
São Paulo poderão ser encontradas daqui a poucos anos em Buenos Aires e depois
em Lima, por exemplo. Elas se movem na expectativa de fazer economias e voltar
a seu país numa situação um pouco melhor após alguns anos de peregrinação em
função do trabalho.”
Contra os pobres – O tema da imigração tem voltado à pauta em função de episódios
recentes que – teme a professora – podem distorcer percepções da opinião pública. O principal deles
é a chegada a São Paulo de centenas de haitianos, concentrada em poucos dias
entre o final de abril e o início de maio. Para Deisy Ventura, essa realidade
está longe de ser um problema. “A questão de fato são as milhares de pessoas
que vêm trabalhar aqui e que eu gostaria que fossem tratadas do mesmo jeito que
eu gostaria que nossos bisavós tivessem sido tratados quando chegaram”, diz.
Nesse e em outros casos, a professora enxerga
um conjunto de discriminações no qual entra o racismo, mas também, sobretudo, o
preconceito contra os pobres. “Isso é uma grande incompreensão histórica,
porque os nossos antepassados eram muito pobres. Quem veio para o Brasil?
Essencialmente pessoas do meio rural empobrecido na Itália, na Alemanha, na
Polônia e mesmo do Japão.” Já os estrangeiros dos países ricos, que em geral vêm
com vistos solicitados pelo empregador, “são muito bem-vindos”, compara.
De fato, salienta a docente, a recente
chegada dos imigrantes do Haiti a São Paulo foi desorganizada e parece ter
apanhado desprevenido o poder público nas três esferas, embora já há alguns anos o País venha recebendo
fluxos constantes da ilha. De acordo com dados do governo do Acre (principal entrada da rota haitiana no Brasil) e da
Embaixada brasileira em Porto Príncipe, 32 mil pessoas ingressaram no País por
aquele Estado nos últimos três anos. Mais de 90% delas são do Haiti, enquanto o
segundo maior grupo é de senegaleses, com 7,6%. Estima-se que em poucas
semanas, entre abril e maio, cerca de 1.500 pessoas deixaram o Acre e Rondônia
e desembarcaram na capital paulista.
Para
Deisy Ventura, a imagem equivocada de que o fluxo de haitianos ao Brasil é
enorme, descontrolado e representa um grave problema pode justificar a oposição
de setores da sociedade à imigração oriunda de alguns países. “Há 45 milhões de
deslocados forçados no mundo atualmente, de acordo com o Alto Comissariado das
Nações Unidas para Refugiados (Acnur). Perto desse contexto, foi um quinhão
muito pequeno que nos tocou”, considera a professora, que já lecionou na França
e na Suíça. Os deslocamentos realmente graves, explica, expulsam dezenas ou
centenas de milhares de pessoas que não podem retornar, como os refugiados da
guerra na Síria, por exemplo.
Potência – O governo brasileiro esteve entre os que mais ajudaram o Haiti
depois do terremoto de 2010, que devastou várias cidades e matou cerca de 230
mil pessoas no país. Desde 2004 o Brasil exerce o comando militar da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti
(Minustah), e chegou a promover um jogo de futebol da seleção brasileira contra a seleção haitiana. Tudo isso
contribuiu para criar uma imagem positiva do País e colocá-lo
como alternativa no mapa da secular diáspora haitiana.
Para Deisy Ventura, enquanto o Brasil
estiver em evidência internacional, os imigrantes virão. Eles conhecem os
problemas que o País tem, dos quais tomam conhecimento pelos que já estão aqui.
Porém, a precariedade das condições de vida no lugar de origem entra na conta
e, se o cálculo apontar para vantagens em fazer a mala para trabalhar em terras
brasileiras, a balança penderá para a viagem. “O Brasil ainda não está
acostumado com essa situação. Ser potência não é só tirar foto em cúpula e ser
reconhecido ou prestigiado pelos chefes de Estado dos países mais importantes.
Ser potência tem custo, e um deles é que as pessoas querem vir para cá”, lembra
a professora.
Sob a ótica dos
direitos humanos
Dos
estrangeiros que entraram no Brasil pelo Acre nos últimos três anos, dois
terços foram trazidos por coiotes (atravessadores ilegais), e apenas um terço
possuía visto das Embaixadas brasileiras. Facilitar a regularização migratória
para quem quer vir trabalhar é um dos focos do anteprojeto da nova Lei de
Migrações e Promoção dos Direitos dos Migrantes no Brasil. Ao lado de três
outros professores da USP, Deisy Ventura integra uma comissão de nove
especialistas nomeada pelo Ministério da Justiça para redigir o texto. No dia 6
de maio, uma audiência pública na USP debateu a primeira versão do anteprojeto.
“O
que é definidor de todo o texto é a concepção das migrações sob o viés dos
direitos
humanos”, defende Deisy. “Pensar sob a perspectiva dos direitos altera toda a sua estrutura”, afirma, referindo-se à lei vigente – o Estatuto do Estrangeiro (lei 6.815, de 1980), promulgado ainda durante a ditadura militar, “é um instrumento de segurança nacional, como diversos outros da época”.
humanos”, defende Deisy. “Pensar sob a perspectiva dos direitos altera toda a sua estrutura”, afirma, referindo-se à lei vigente – o Estatuto do Estrangeiro (lei 6.815, de 1980), promulgado ainda durante a ditadura militar, “é um instrumento de segurança nacional, como diversos outros da época”.
Na
audiência do dia 6, Rossana Reis, professora da Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e integrante da comissão, explicou que havia
uma grande preocupação em adequar o texto às diretrizes da Constituição de
1988. “Eliminou-se o vocabulário de segurança nacional e o vocabulário de
risco, e incorporou-se o vocabulário dos direitos humanos, do direito
internacional, da cooperação, do fortalecimento dos laços sociais que unem os
brasileiros e os povos vizinhos, e assim por diante”, disse Rossana. Também são
integrantes da comissão os professores da USP Pedro Dallari, do IRI, e André de
Carvalho Ramos, da Faculdade de Direito.
“Nosso
ponto de partida foi: o que o Brasil ganha com a dificuldade da regularização
migratória? O que há de positivo para um país em que os estrangeiros que
estejam aqui sejam clandestinos? Eles vêm e permanecem irregulares, e isso gera
clandestinidades em cascata. Esse cidadão é muito mais vulnerável ao crime
organizado, à precariedade econômica e à dificuldade de integração social”,
explica Deisy Ventura.
O padre Antenor (no
centro): melhor atitude é a integração, não a rejeição
Para
a professora, o caso do menino boliviano Brayan Yanarico Capcha, assassinado em
junho do ano passado num assalto à casa da família, na zona leste de São Paulo,
mostrou essa vulnerabilidade: sem regularização, seus pais não podiam abrir
conta bancária e por isso guardavam todo o seu dinheiro em casa. Só depois do
crime a Prefeitura firmou um convênio com a Caixa Econômica Federal para
facilitar a abertura de contas aos estrangeiros. A regularização também
“dribla” a necessidade dos coiotes, porque basta ao imigrante que quer vir
trabalhar dirigir-se à Embaixada brasileira e solicitar o visto.
O texto cria também a Autoridade Nacional
Migratória, em substituição à Polícia Federal (PF) nos serviços de imigração.
As competências da PF em investigações relacionadas a estrangeiros e ao
controle de fronteiras não mudariam em nada, mas os trâmites comuns com os imigrantes não ficariam mais a seu encargo.
A comissão recebe sugestões sobre o
texto até o próximo dia 23 pelo e-mailanteprojeto.migrações@gmail.com. O texto final
será encaminhado ao governo federal. A aprovação cabe ao Congresso Nacional.
Solidariedade para
com os que chegam
No
princípio eram os italianos – principalmente aqueles que queriam distância do
fascismo nas décadas de 1920, 30 e 40. Depois, vieram os migrantes de outras
regiões do País, os latino-americanos, os africanos e outros, num movimento
incessante. Fazendo jus à sua história de acolhida, a Missão Paz de São Paulo,
da Congregação dos Missionários Scalabrinianos – integrada pela Paróquia Nossa
Senhora da Paz e por instituições como a Casa do Migrante –, foi também o
centro de recepção dos haitianos que têm chegado à cidade e recebeu as atenções
da mídia entre o final de abril e início de maio. Durante algumas noites, mais
de 300 imigrantes dormiram em colchões no salão da comunidade, na região do
Glicério, no centro da cidade.
“Tivemos
um momento difícil na chegada deles, mas depois, com a solidariedade e a
generosidade de muitas pessoas, e que o povo brasileiro sempre manifesta,
encontramos respostas para essa situação”, diz o padre Antenor Dalla Vecchia,
pároco da Igreja Nossa Senhora da Paz. Doações de roupas, comida, artigos de
higiene e outros itens começaram a chegar de toda parte. Acostumada a trabalhar
com regularização e documentação de estrangeiros – a Casa do Migrante abriga
atualmente 110 pessoas de 15 nacionalidades –, a Missão exortou o poder público
a assumir suas responsabilidades.
Uma unidade móvel
do Centro de Apoio ao Trabalho foi deslocada ao pátio da paróquia, e só nos
primeiros três dias foram fornecidas cerca de 300 Carteiras de Trabalho aos
haitianos. A Prefeitura também criou um abrigo provisório, na vizinhança da
igreja, para receber 120 pessoas. No primeiro domingo de maio, pouco mais de 30
pessoas dormiriam no salão da igreja. Todos os demais imigrantes já estavam
encaminhados para emprego em São Paulo ou outros Estados, principalmente na
região Sul do Brasil.
Ajudando
a receber e guardar as doações estava o jovem Antoine Michel, de 24 anos, há
quase dez meses no Brasil. Ainda desempregado – ele aguarda uma vaga para
trabalhar com trator ou retroescavadeira –, Michel conta que quer mesmo uma
oportunidade para estudar e chegar à faculdade de Engenharia, seu sonho.
Johnny
Midi, 24 anos, e Kenson Milhomme, 27, também passavam regularmente na igreja –
menos para procurar emprego e mais para ver se encontravam algum conhecido
recém-chegado e para ajudar na comunicação entre os haitianos, a equipe da
Missão e os empresários que iam oferecer vagas. Ambos estão no Brasil há quase
dois anos, falam português e já trabalharam em outros Estados. Midi foi
empregado em empresas metalúrgicas do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, mas
conta não ter se adaptado ao frio dos invernos sulistas. Muitas cidades do
interior desses Estados, por sinal, possuem colônias de centenas de haitianos
contratados por empresas de setores como metalurgia, frigoríficos ou
floricultura, entre outros, e que formam redes de comunicação nas quais acabam
chamando familiares para fazer a viagem também.
No entanto, Midi e Kenson – que
trabalhou na construção civil em Piracicaba – não sabem se farão o mesmo.
Confirmando o que diz a professora Deisy Ventura, sua perspectiva é de
permanecer no Brasil enquanto tiverem boas oportunidades de trabalho e de
conseguir uma vida melhor. Os
dois também querem entrar na universidade, mas consideram que agora, gastando
várias horas por dia em deslocamentos da zona leste, onde moram, até a zona
norte, local do novo emprego, não é possível conciliar trabalho e estudo.
As doações enviadas
aos imigrantes haitianos e Antoine Michel (acima), que busca oportunidade para estudar
engenharia: desejo de uma vida melhor
Foi
numa das idas à paróquia que os dois conheceram compatriotas recém-chegados e a
empresária Yone Yamassaki, dona de uma padaria no bairro da Casa Verde. Além
deles, a empresária contratou outros quatro haitianos para trabalhar como
confeiteiros, padeiros e auxiliar de limpeza. Yone é descendente de imigrantes
japoneses, de um lado, e tem sangue indígena e português de outro. “Senti que
tinha a obrigação de recebê-los, porque meus avós vieram do Japão numa situação
parecida”, diz. Para ela, os novos funcionários, ainda no primeiro mês no
emprego, são muito educados e interessados, e estão se integrando bem aos colegas
brasileiros, que se divertem ao aprender expressões em francês.
“Na
medida em que se oferecem possibilidades aqui e não há oportunidades em seu
próprio país, as pessoas vão chegando. Veja a Europa. Por mais restrições e
barreiras que se criem, os imigrantes sempre encontram um caminho”, diz o padre
Dalla Vecchia. “A melhor atitude não é a rejeição ou a ansiedade de que elas
vão ‘tirar o nosso lugar’, mas sim encontrar estratégias para que essas pessoas
se integrem e façam parte da comunidade brasileira. A população, o poder
público, as instituições e as ONGs têm que ter essa atitude de acolher essa
diversidade que, no fundo, só virá a nos enriquecer.”
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