quinta-feira, 22 de maio de 2014

Percepções distorcidas de uma nova saga

Veiculada por parte da mídia, ideia equivocada de que o recente fluxo de haitianos ao Brasil é enorme, descontrolado e prejudicial ao País pode levar setores da sociedade a discriminar imigrantes e violar os direitos humanos, alerta professora da USP

PAULO HEBMÜLLER

Ao longo de 90 anos, a antiga Hospedaria dos Imigrantes de São Paulo, localizada no Brás, recebeu 3,5 milhões de pessoas (1,9 milhão de estrangeiros de 75 nacionalidades e etnias e 1,6 milhão de brasileiros de outros Estados) que carregavam – muito mais do que malas e bagagens – sonhos, expectativas e o desejo de trabalhar por uma vida melhor. O auge dessa saga se deu na virada do século 19 para o 20: entre 1886 e 1915, chegaram cerca de 2,8 milhões de pessoas, parcela de uma diáspora mundial que, desde 1820, transferiu aproximadamente 50 milhões de pessoas, especialmente da Europa, para o continente americano.

Parte das instalações do prédio é dedicada a contar essa história: fechado para reforma desde 2010, um renovado Museu da Imigração reabrirá suas portas no próximo dia 31. De acordo com os idealizadores do projeto, além de manter um coração “museologicamente” tradicional, a ideia do centro cultural é refletir sobre a imigração na contemporaneidade. Afinal, os fluxos migratórios, motivados pelas mais diversas razões, seguem intensos. Basta circular pelos bairros do entorno da antiga hospedaria (o próprio Brás, a Mooca e o Belenzinho, por exemplo) para comprovar que os redutos antes ocupados por italianos e outros imigrantes europeus, com o passar das décadas, receberam também brasileiros de outras regiões e, mais recentemente, estrangeiros que continuam chegando à cidade, como bolivianos, chineses e africanos.
“Uma mudança importante em relação ao passado é que nossos avós e bisavós vinham para ficar no País. Hoje as pessoas ficam enquanto tiverem trabalho, característica dos novos ciclos de imigração no mundo a partir da década de 1980”, avalia Deisy Ventura, professora do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da USP. Uma das razões da mudança é que a produção na economia globalizada é descentralizada. No caso da indústria têxtil, que atrai especialmente trabalhadores bolivianos e coreanos a São Paulo, pequenas oficinas costuram para distribuidoras que mais tarde repassam o material à grande comercialização. “Famílias que hoje encontramos em São Paulo poderão ser encontradas daqui a poucos anos em Buenos Aires e depois em Lima, por exemplo. Elas se movem na expectativa de fazer economias e voltar a seu país numa situação um pouco melhor após alguns anos de peregrinação em função do trabalho.”

Contra os pobres – O tema da imigração tem voltado à pauta em função de episódios recentes que – teme a professora – podem distorcer percepções da opinião pública. O principal deles é a chegada a São Paulo de centenas de haitianos, concentrada em poucos dias entre o final de abril e o início de maio. Para Deisy Ventura, essa realidade está longe de ser um problema. “A questão de fato são as milhares de pessoas que vêm trabalhar aqui e que eu gostaria que fossem tratadas do mesmo jeito que eu gostaria que nossos bisavós tivessem sido tratados quando chegaram”, diz.
Nesse e em outros casos, a professora enxerga um conjunto de discriminações no qual entra o racismo, mas também, sobretudo, o preconceito contra os pobres. “Isso é uma grande incompreensão histórica, porque os nossos antepassados eram muito pobres. Quem veio para o Brasil? Essencialmente pessoas do meio rural empobrecido na Itália, na Alemanha, na Polônia e mesmo do Japão.” Já os estrangeiros dos países ricos, que em geral vêm com vistos solicitados pelo empregador, “são muito bem-vindos”, compara.
De fato, salienta a docente, a recente chegada dos imigrantes do Haiti a São Paulo foi desorganizada e parece ter apanhado desprevenido o poder público nas três esferas, embora já há alguns anos o País venha recebendo fluxos constantes da ilha. De acordo com dados do governo do Acre (principal entrada da rota haitiana no Brasil) e da Embaixada brasileira em Porto Príncipe, 32 mil pessoas ingressaram no País por aquele Estado nos últimos três anos. Mais de 90% delas são do Haiti, enquanto o segundo maior grupo é de senegaleses, com 7,6%. Estima-se que em poucas semanas, entre abril e maio, cerca de 1.500 pessoas deixaram o Acre e Rondônia e desembarcaram na capital paulista.

Para Deisy Ventura, a imagem equivocada de que o fluxo de haitianos ao Brasil é enorme, descontrolado e representa um grave problema pode justificar a oposição de setores da sociedade à imigração oriunda de alguns países. “Há 45 milhões de deslocados forçados no mundo atualmente, de acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur). Perto desse contexto, foi um quinhão muito pequeno que nos tocou”, considera a professora, que já lecionou na França e na Suíça. Os deslocamentos realmente graves, explica, expulsam dezenas ou centenas de milhares de pessoas que não podem retornar, como os refugiados da guerra na Síria, por exemplo.
Potência – O governo brasileiro esteve entre os que mais ajudaram o Haiti depois do terremoto de 2010, que devastou várias cidades e matou cerca de 230 mil pessoas no país. Desde 2004 o Brasil exerce o comando militar da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah), e chegou a promover um jogo de futebol da seleção brasileira contra a seleção haitiana. Tudo isso contribuiu para criar uma imagem positiva do País e colocá-lo como alternativa no mapa da secular diáspora haitiana.
Para Deisy Ventura, enquanto o Brasil estiver em evidência internacional, os imigrantes virão. Eles conhecem os problemas que o País tem, dos quais tomam conhecimento pelos que já estão aqui. Porém, a precariedade das condições de vida no lugar de origem entra na conta e, se o cálculo apontar para vantagens em fazer a mala para trabalhar em terras brasileiras, a balança penderá para a viagem. “O Brasil ainda não está acostumado com essa situação. Ser potência não é só tirar foto em cúpula e ser reconhecido ou prestigiado pelos chefes de Estado dos países mais importantes. Ser potência tem custo, e um deles é que as pessoas querem vir para cá”, lembra a professora.
Sob a ótica dos direitos humanos
Dos estrangeiros que entraram no Brasil pelo Acre nos últimos três anos, dois terços foram trazidos por coiotes (atravessadores ilegais), e apenas um terço possuía visto das Embaixadas brasileiras. Facilitar a regularização migratória para quem quer vir trabalhar é um dos focos do anteprojeto da nova Lei de Migrações e Promoção dos Direitos dos Migrantes no Brasil. Ao lado de três outros professores da USP, Deisy Ventura integra uma comissão de nove especialistas nomeada pelo Ministério da Justiça para redigir o texto. No dia 6 de maio, uma audiência pública na USP debateu a primeira versão do anteprojeto.

“O que é definidor de todo o texto é a concepção das migrações sob o viés dos direitos
humanos”, defende Deisy. “Pensar sob a perspectiva dos direitos altera toda a sua estrutura”, afirma, referindo-se à lei vigente – o Estatuto do Estrangeiro (lei 6.815, de 1980), promulgado ainda durante a ditadura militar, “é um instrumento de segurança nacional, como diversos outros da época”.
Na audiência do dia 6, Rossana Reis, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e integrante da comissão, explicou que havia uma grande preocupação em adequar o texto às diretrizes da Constituição de 1988. “Eliminou-se o vocabulário de segurança nacional e o vocabulário de risco, e incorporou-se o vocabulário dos direitos humanos, do direito internacional, da cooperação, do fortalecimento dos laços sociais que unem os brasileiros e os povos vizinhos, e assim por diante”, disse Rossana. Também são integrantes da comissão os professores da USP Pedro Dallari, do IRI, e André de Carvalho Ramos, da Faculdade de Direito.
“Nosso ponto de partida foi: o que o Brasil ganha com a dificuldade da regularização migratória? O que há de positivo para um país em que os estrangeiros que estejam aqui sejam clandestinos? Eles vêm e permanecem irregulares, e isso gera clandestinidades em cascata. Esse cidadão é muito mais vulnerável ao crime organizado, à precariedade econômica e à dificuldade de integração social”, explica Deisy Ventura.

O padre Antenor (no centro): melhor atitude é a integração, não a rejeição
Para a professora, o caso do menino boliviano Brayan Yanarico Capcha, assassinado em junho do ano passado num assalto à casa da família, na zona leste de São Paulo, mostrou essa vulnerabilidade: sem regularização, seus pais não podiam abrir conta bancária e por isso guardavam todo o seu dinheiro em casa. Só depois do crime a Prefeitura firmou um convênio com a Caixa Econômica Federal para facilitar a abertura de contas aos estrangeiros. A regularização também “dribla” a necessidade dos coiotes, porque basta ao imigrante que quer vir trabalhar dirigir-se à Embaixada brasileira e solicitar o visto.
O texto cria também a Autoridade Nacional Migratória, em substituição à Polícia Federal (PF) nos serviços de imigração. As competências da PF em investigações relacionadas a estrangeiros e ao controle de fronteiras não mudariam em nada, mas os trâmites comuns com os imigrantes não ficariam mais a seu encargo.
A comissão recebe sugestões sobre o texto até o próximo dia 23 pelo e-mailanteprojeto.migrações@gmail.com. O texto final será encaminhado ao governo federal. A aprovação cabe ao Congresso Nacional.
Solidariedade para com os que chegam
No princípio eram os italianos – principalmente aqueles que queriam distância do fascismo nas décadas de 1920, 30 e 40. Depois, vieram os migrantes de outras regiões do País, os latino-americanos, os africanos e outros, num movimento incessante. Fazendo jus à sua história de acolhida, a Missão Paz de São Paulo, da Congregação dos Missionários Scalabrinianos – integrada pela Paróquia Nossa Senhora da Paz e por instituições como a Casa do Migrante –, foi também o centro de recepção dos haitianos que têm chegado à cidade e recebeu as atenções da mídia entre o final de abril e início de maio. Durante algumas noites, mais de 300 imigrantes dormiram em colchões no salão da comunidade, na região do Glicério, no centro da cidade.
“Tivemos um momento difícil na chegada deles, mas depois, com a solidariedade e a generosidade de muitas pessoas, e que o povo brasileiro sempre manifesta, encontramos respostas para essa situação”, diz o padre Antenor Dalla Vecchia, pároco da Igreja Nossa Senhora da Paz. Doações de roupas, comida, artigos de higiene e outros itens começaram a chegar de toda parte. Acostumada a trabalhar com regularização e documentação de estrangeiros – a Casa do Migrante abriga atualmente 110 pessoas de 15 nacionalidades –, a Missão exortou o poder público a assumir suas responsabilidades.
Uma unidade móvel do Centro de Apoio ao Trabalho foi deslocada ao pátio da paróquia, e só nos primeiros três dias foram fornecidas cerca de 300 Carteiras de Trabalho aos haitianos. A Prefeitura também criou um abrigo provisório, na vizinhança da igreja, para receber 120 pessoas. No primeiro domingo de maio, pouco mais de 30 pessoas dormiriam no salão da igreja. Todos os demais imigrantes já estavam encaminhados para emprego em São Paulo ou outros Estados, principalmente na região Sul do Brasil.
Ajudando a receber e guardar as doações estava o jovem Antoine Michel, de 24 anos, há quase dez meses no Brasil. Ainda desempregado – ele aguarda uma vaga para trabalhar com trator ou retroescavadeira –, Michel conta que quer mesmo uma oportunidade para estudar e chegar à faculdade de Engenharia, seu sonho.
Johnny Midi, 24 anos, e Kenson Milhomme, 27, também passavam regularmente na igreja – menos para procurar emprego e mais para ver se encontravam algum conhecido recém-chegado e para ajudar na comunicação entre os haitianos, a equipe da Missão e os empresários que iam oferecer vagas. Ambos estão no Brasil há quase dois anos, falam português e já trabalharam em outros Estados. Midi foi empregado em empresas metalúrgicas do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, mas conta não ter se adaptado ao frio dos invernos sulistas. Muitas cidades do interior desses Estados, por sinal, possuem colônias de centenas de haitianos contratados por empresas de setores como metalurgia, frigoríficos ou floricultura, entre outros, e que formam redes de comunicação nas quais acabam chamando familiares para fazer a viagem também.
No entanto, Midi e Kenson – que trabalhou na construção civil em Piracicaba – não sabem se farão o mesmo. Confirmando o que diz a professora Deisy Ventura, sua perspectiva é de permanecer no Brasil enquanto tiverem boas oportunidades de trabalho e de conseguir uma vida melhor. Os dois também querem entrar na universidade, mas consideram que agora, gastando várias horas por dia em deslocamentos da zona leste, onde moram, até a zona norte, local do novo emprego, não é possível conciliar trabalho e estudo.

As doações enviadas aos imigrantes haitianos e Antoine Michel (acima), que busca oportunidade para estudar engenharia: desejo de uma vida melhor
Foi numa das idas à paróquia que os dois conheceram compatriotas recém-chegados e a empresária Yone Yamassaki, dona de uma padaria no bairro da Casa Verde. Além deles, a empresária contratou outros quatro haitianos para trabalhar como confeiteiros, padeiros e auxiliar de limpeza. Yone é descendente de imigrantes japoneses, de um lado, e tem sangue indígena e português de outro. “Senti que tinha a obrigação de recebê-los, porque meus avós vieram do Japão numa situação parecida”, diz. Para ela, os novos funcionários, ainda no primeiro mês no emprego, são muito educados e interessados, e estão se integrando bem aos colegas brasileiros, que se divertem ao aprender expressões em francês.
“Na medida em que se oferecem possibilidades aqui e não há oportunidades em seu próprio país, as pessoas vão chegando. Veja a Europa. Por mais restrições e barreiras que se criem, os imigrantes sempre encontram um caminho”, diz o padre Dalla Vecchia. “A melhor atitude não é a rejeição ou a ansiedade de que elas vão ‘tirar o nosso lugar’, mas sim encontrar estratégias para que essas pessoas se integrem e façam parte da comunidade brasileira. A população, o poder público, as instituições e as ONGs têm que ter essa atitude de acolher essa diversidade que, no fundo, só virá a nos enriquecer.”


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