Pe.
Alfredo J. Gonçalves, CS – Roma, Itália
Tomando o pão como
metáfora de tudo aquilo que o ser humano necessita para se manter materialmente
saudável, de pé e com energia para o trabalho e a existência, ele (o pão)
representa o alimento do corpo. Mas podemos ampliar a metáfora, estendendo-a a
tudo o que o homem e a mulher precisam para conquistar e/ou garantir a própria
dignidade. Neste caso o termo “pão” se aplica não somente à comida, mas também à
terra e tudo o que ela fornece, ao emprego e salário decente, à saúde e ao
teto, à educação e segurança, ao transporte e lazer... Enfim, pão como sinônimo
dos direitos básicos para uma cidadania real, justa e digna.
Isso quer dizer que,
numa perspectiva ampla e abrangente, reivindicar “o pão nosso de cada dia” tem
a ver com a organização e a luta por uma política que se preocupe com serviços
públicos fundamentais ao bem-estar do cidadão e de sua família. Ou seja, não
basta comer, não basta respirar, não basta sobreviver! O que se busca é viver
com a dignidade de seres humanos. Cruzamos aqui com a espinha dorsal de todo o corpus da Doutrina Social da Igreja (DSI).
Esta, efetivamente, tem como linha mestra ou princípio fundamental – DNA da DSI
– a defesa da dignidade humana. Desde a a carta encíclica Rerum Novarum (1891), do Papa Leão XIII, o espírito da chamada
“questão social” atravessa e irriga todos os documentos da Igreja referentes às
condições socioeconômicas e político-culturais de pessoas, sociedades e povos.
Mas, diferentemente dos
animais, a vida humana não se limita a uma existência razoavelmente
confortável, do ponto de vista material. Para homens e mulheres, viver é mais
que isso, muito mais! Na verdade, a sobrevivência pura e simples não passa de
uma base material para um salto infinitamente mais alto e ambicioso. O ser
humano dispõe de memória, de imaginação e de vontade. Além disso, é chamado a
ser livre, a fazer escolhas, a optar em meio a um grande leque de caminhos que
se lhe apresentam cotidianamente no decorrer de sua existência. Tudo isso lhe
confere um status diferente dos demais seres vivos. A existência física se abre
a uma dimensão rica e ilimitada, em vista de uma vida bem mais recheada de
aventura, inovação e criatividade.
Introduz-se a esta
altura o conceito de superação. O ser humano não se reduz a sobreviver, ele
procura a cada passo superar os próprios limites e adversidades. Em sua
trajetória de algumas décadas, cada ponto de chegada representa um novo ponto
de partida. Mais ainda, esse impulso de superação contínua é tanto mais forte
quanto maiores são os obstáculos que se lhe impõem. As próprias dificuldades o
desafiam e o estimulam a superar-se. Longe de uma repetição mecânica e
repetitiva na provisão das coisas que necessita para garantir a existência
corporal, homens e mulheres nascem com a capacidade de inventar, criar e
recriar o próprio ambiente. Se, por um lado, constituem os seres vivos mais
frágeis e indefesos ao nascer, de outro, dispõe de um cérebro privilegiado que
os leva a aperfeiçoar as inovações técnicas no sentido de melhorar seu habitatus vital. Não sem razão o ser
humano é aquele que melhor se adapta às circunstâncias externas, positivas ou
negativas, pois é capaz de transformar a matéria (terra, água, pedra, ferro,
madeira, etc.) em vista de objetivos não materiais.
Irrequietos, homens e
mulheres avançam, procurando sempre subir um degrau, um apenas, por menor que
seja. Ciência e tecnologia se unem na busca de um progresso que parece não ter
limites. Conquista sobre conquista, o ser humano progride a uma velocidade que
surpreende a si mesmo. O mundo “se desencanta”, como dizia Max Weber, deixa de
esconder mistérios. Na emancipação moderna, tudo se torna passível de
observação, de estudo, de transformação. Ao longo dos tempos, tudo se disseca:
de fato, a ciência disseca o corpo humano (no campo da medicina), disseca a
natureza (com a física e a biologia), disseca o universo (descobrindo seus segredos
ocultos), disseca a sociedade e o Estado (através da história)... Instrumentos,
máquinas, rodas, energia – e tantas outras invenções – multiplicam em centenas,
milhares, milhões de vezes a capacidade humana de ver, modificar, produzir.
Nem todos esses avanços,
porém, preenchem o vazio, a inquietude e a ansiedade de cada um de nós. O ser mortal
e finito se bate com a infinitude e aqui o impulso criativo se revela em toda
sua slidão e impotência. Em vão procuramos deixar marcas eternas no pergaminho
da história. O tempo as apaga e o vento as varre como pegadas na areia. Ou como
folhas secas e mortas, que o fogo consome, deixando apenas cinzas e ruínas. Até
mesmo estátuas e impérios, castelos e catedrais, edifícios e torres se reduzem
a escombros ou a monumentos fossilizados.
E então descobrimos que,
ao lado do “pão nosso de cada dia”, o mesmo profeta itinerante de Nazaré nos
propõe o “pão da vida eterna”. “Eu sou o pão vivo que desceu do céu. Quem come
deste pão viverá para sempre. E o pão que eu vou dar é a minha própria carne,
para que o mundo tenha vida”, afirma Jesus através do Quarto Evangelho (Jo 6,
51). O corpo ou pão material – a presença física do Mestre com seus gestos,
palavras e obras – se transfigura no pão espiritual. Da mesma forma que o
alimento diário sustenta o corpo, restituindo-lhe as energias e o mantendo de
pé, a intimidade com Jesus na Eucaristia sustenta a fé e a esperança, alimenta
a confiança no Pai e confere um sentido mais profundo à vida humana,
progetando-a para a imortalidade. Se é verdade que o pão material não nos livra
da morte, também é certo que o pão espiritual restitui-nos a uma vida eterna.
Vida eterna que não
significa, necessariamente, a vida para além da morte. Ela começa aqui e agora, na própria trajetória da
existência humana. No percurso desta, por mais adversidades que encontremos,
sempre é possível deixar marcas eternas. O amor, e somente ele, nos faz gravar
na história, com caracteres de fogo, gestos e palavras que tempestade alguma
será capaz de varrer. Morrem os profetas, morrem os santos, morrem os
mártires... Mas seu testemunho permanece para sempre impresso no coração das
pessoas, das culturas e dos povos... da História! O “pão da vida eterna” é justamente
essa força capaz de uma doação que a morte é incapaz de eliminar. É neste
sentido que o maior inimigo da morte não é a vida, e sim o amor. De fato, a
morte liquida a vida, mas não mata os vestígios que o amor semeia no terreno da
história. O amor, mesmo passando através da morte, conduz à ressurreição.
Por isso é que,
paradoxalmente, quem ama ressuscita antes mesmo de morrer. Não escapará da
morte, é certo, mas permanecerá vivo na memória e na fé daqueles que o
conheceram e conheceram sua passagem pela face da terra. Mais ainda, a própria
morte ressalta sua vida de amor e entrega, fazendo-o emergir e ressuscitar para
uma vida eterna. Os exemplos poderíam se multiplicar: Oscar Romero, Madre
Tereza de Calcutá, Irmã Dulce, Mahatma Gandhi, Marntin Luther King, Nelson
Mandela, para não falar de Francisco de Assis, João Paulo II, João XXIII e toda
a multidão dos que “passaram pela grande tribulação” (Ap 7, 14). Conclui-se,
assim, que a eternidade tem suas raízes na vida terrena, nutrida pelo “pão
nosso de cada dia”, mas se projeta para vida imortal, alimentada pelo “pão de
quem crê em mim”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário