A formação da sociedade brasileira em muito deve à presença do
imigrante. E não foi somente com a imigração europeia do final do século 19 que
o país pôde se desenvolver econômica e culturalmente. Da imigração portuguesa à
africana, o Brasil contou com a força de trabalho de milhares de pessoas das
mais diferentes origens, e o quadro hoje não é diferente. Segundo o Censo de
2010, quase 300 mil imigrantes viviam no Brasil há pelo menos cinco anos e em
residência fixa. Número 87% maior do que o registrado dez anos antes.
Tal aumento torna necessária a revisão de algumas leis, já que no país
ainda está em vigor o anacrônico Estatuto do Estrangeiro, criado durante o
regime militar. Com um caráter inovador, o Ministério da Justiça organizou uma
Comissão de Especialistas para discutir o assunto e viabilizar um anteprojeto
de lei de migrações. Dos nove especialistas, quatro são professores da USP.
Após um ciclo de encontros na Universidade entre 22 e 25 de janeiro, foi
iniciado nesta segunda-feira (3) um novo ciclo em Brasília (DF).
“Provavelmente porque São Paulo é uma cidade tão importante do ponto de
vista da mobilidade humana internacional, nós tenhamos desenvolvido aqui
estudos na área jurídica que foram reconhecidos pelo Governo Federal como
estudos importantes”, aponta a professora Deisy Ventura, membro da Comissão e
professora do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da USP. “Acredito
também que a nossa prática, resultado de anos de trabalho de extensão
universitária com comunidades de imigrantes, nos tenha preparado para este
momento”.
A professora forma, junto a Pedro Dallari, André de Carvalho Ramos e
Rossana Rocha Reis, o grupo de representantes da USP que participará da redação
do anteprojeto de lei. Por estar situada em São Paulo, a Universidade e a
experiência destes especialistas mostra sua relevância ao poder trazer um ponto
de vista internacional, que é a questão da imigração nas grandes metrópoles.
“Tenho a impressão de que se chegarmos a uma lei que seja capaz de dar conta
das demandas atuais da de mobilidade humana, o Brasil pode se tornar um
paradigma muito importante”, conta a professora.
Medo que vem de fora
A questão da imigração é cercada de preconceitos e mitos que muitas
vezes se provam incoerentes. Reflexo de uma política excludente, o modo como o
estrangeiro é tratado não é um problema que surgiu durante a ditadura, com o
Estatuto. A professora conta que no início do século 20, quando foi encorajada
a imigração europeia no Brasil, já existiam regras como a de que os
trabalhadores que viessem da Itália deveriam ser distribuídos de maneira
limitada em cada empresa. A atitude discriminatória tinha como objetivo o esmorecimento
do movimento sindical e de grupos anarquistas e comunistas em nosso país.
“O fato é que, historicamente, o Estado moderno se afirma criando
vínculos entre os direitos e nacionalidade”, explica Deisy. “O povo é um dos
elementos constitutivos do Estado. Define-se aquela população que vive naquela
jurisdição e dá-se direitos a ela e não a outra”. O resultado de tudo isso é
que nunca houve uma circulação tão intensa de pessoas, mas nunca foi tão
difícil para alguém se radicar em outro Estado. “O estrangeiro pode ficar como
turista, pode ir para fazer compras ou fazer um curso. Mas para se radicar num
local é cada vez mais difícil”, lembra a professora, no momento em que os
paradigmas das políticas migratórias são os paradigmas da Europa e dos Estados Unidos,
também extremamente restritivos.
O estrangeiro pode
ficar como turista, ir para fazer compras ou um curso. Mas para se
radicar num local é cada vez mais difícil.
Deisy Ventura: Estado moderno já nasce criando vínculos entre direitos e
nacionalidade
“Porque dificultar para uma pessoa que quer ser brasileira?”, questiona
a pesquisadora. “A ideia da segurança é sempre levantada, mas será mesmo que um
criminoso internacional vai pedir residência? Não é essa a realidade”. A
professora reconhece que há criminosos em todas as nacionalidades, mas a Lei de
Migrações não é feita para legislar em seu favor, e diz que isso é um problema
da polícia, de segurança. A Lei estudada pela Comissão de Especialistas deve
atender à massa dos trabalhadores, estrangeiros que vêm trabalhar, assim como
muitos de nossos avós ou pais em outros cenários.
Um problema apontado pela especialista é que, devido à porosidade de
nossas fronteiras, os imigrantes conseguem entrar no país com facilidade, mas
sem a regularização destes grupos estamos gerando um “problema social” que,
cedo ou tarde, vai acabar repercutindo na vida de todos. O estigma de que a
criminalidade aumenta com a presença do estrangeiro, para a pesquisadora, é uma
mentira. “Não existe nenhum estudo sério que demonstre o aumento da
criminalidade com a entrada de imigrantes. Ao contrário, temos visto aqui em
São Paulo migrantes vítimas de assalto, latrocínio”.
Não existe nenhum
estudo sério que demonstra o aumento da criminalidade com a entrada de
imigrantes.
A pesquisadora lembra o caso Bryan – em que o garoto de cinco anos,
filho de um casal boliviano, foi morto durante um assalto em sua casa – como de
grande importância para o reconhecimento de que os migrantes necessitavam abrir
conta em banco. “É uma questão elementar. O sujeito torna-se vulnerável a
assalto porque guarda todo o seu dinheiro em casa”, explica. “Com a aprovação
desse projeto, daqui alguns anos os brasileiros vão se perguntar como pode ter
sido diferente”, prevê.
Vamos falar de direitos
Com a Lei de Anistia, em 2009, a situação de mais de 40 mil migrantes no
Brasil foi regularizada. Entretanto, sua interpretação foi aberta aos
diferentes órgãos que atenderam a este público, que tornaram novamente a
obtenção de residência um desafio. Alguns órgãos queriam exigir mais documentos
do que a lei tinha determinado – por exemplo, exigindo a comprovação de renda.
Afinal, lembra Deisy, assim como 50% dos brasileiros estão no mercado
informal em função das características do mercado de trabalho, é muito difícil
que um imigrante, alguém que está pedindo a residência, consiga algo assim.
“O que o Estado ganha ao dificultar o pedido de residência?”, questiona
a pesquisadora. “Que a pessoa que está aqui, viva em situação precária. Se ela
pediu a residência, naturalização, é porque ela quer se radicar aqui”. Ao
manter o estrangeiro na clandestinidade, se fortalece o tráfico de humanos, os
serviços de “coiote” e os empregadores que exploram a mão de obra. “Por que o
imigrante vai pagar para o ‘coiote’ se a lei for uma lei acolhedora? Ela vai
pagar as taxas para o Estado, e não para um passador de seres humanos”.
Trabalhar com o imigrante
Ao longo de quatro anos, a pesquisadora esteve em contato direto – a
partir de pesquisas e projetos de extensão universitária – com grupos de
imigrantes em São Paulo. “A partir do convívio com os imigrantes, nos
demos conta do quanto é importante dar conhecimento a eles dos direitos que já
têm”, ressalta. O Sistema Único de Saúde (SUS) , por exemplo, não discrimina a
nacionalidade. “É um orgulho que a gente deve ter, mas muitos não sabem ou
temem, pela questão do idioma, não serem tratados e atendidos”.
As atividades que germinaram no Projeto Cosmópolis
(Leia mais em Cosmópolis pensa São Paulo e seus
imigrantes como “resumo do mundo”) ainda a surpreendem. A convivência
com os grupos de estrangeiros colabora para a criação de uma lei mais
acolhedora e menos restritiva. É também importante o papel da Universidade em
esclarecer aos imigrantes quais são seus direitos – além de estimular a
organização dos grupos para que possam elaborar as suas demandas ao poder
público. “É um trabalho lento de conscientização sobre direitos que nos ensinou
muito do que há por fazer entre brasileiros e entre estrangeiros. Por outro
lado, acredito que a redação da lei surgiu no momento muito oportuno, em que
nós começamos com o Cosmópolis”. A partir de entrevistas com agentes públicos,
os integrantes do projeto já puderam notar como o Estado tem dificuldade em
lidar com o migrante.
A professora espera poder, a partir da nova Lei de Migrações, contribuir
para a mudança da mentalidade acerca dos direitos dos estrangeiros. “Tenho
muito orgulho de que a USP tenha essa participação no novo paradigma da
mobilidade humana”, revela Deisy, ao confessar suas esperanças de que o Brasil
deixe de apenas criticar o norte e apresente uma alternativa real de política
migratória. “Tenho certeza de que isso vai ser reconhecido no mundo e vai criar
um motivo real de orgulho por sermos brasileiros”.
USP
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