Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
A expressão “sinais dos
tempos” remete ao Evangelho de Mateus. Jesus reprova a incredulidade dos
fariseus porque, sendo capazes de ler no céu os sintomas que anunciam chuva ou
sol, revelam-se ao mesmo tempo incapazes de ler na terra os sinais dos tempos (Mt 16,1-4). Estes
últimos, em linguagem teológica, representam as digitais de Deus no pergaminho
da história. Os dedos invisíveis do Criador costuram os fatos aparentemente
brutos e absurdos, conferindo-lhes um sentido mais profundo e oculto a olho nu.
No ditado popular, “Deus escreve direito por linhas tortas”. É justamente esse
significado teológico da história que escapa à percepção dos interlocutoes de do
Mestre da Galileia, aferrados que estão ao cumprimento estrito da lei.
Conhecem, sim, os acontecimentos, mas não os observam com os olhos da fé ou do
coração. Voltam-se para o passado, ignorando a irrupção divina no curso da
trajetória humana.
Nesa perspectiva, o
bispo de Piacenza, Itália, Giovanni Batista Scalabrini, foi capaz de ser um
homem do seu tempo. Nasceu em 1837 e faleceu em 1905, tendo se revelado um
protagonista do século XIX com os olhos voltados para o século XX.
Historiadores do porte de Peter Gay e Eric Hobsbawn cunharam esse período como
o século das revoluções e do movimento. Movimento aqui em duplo sentido: o das
máquinas e o das pessoas. Estas se moviam não somente do campo para a cidade,
mas também do velho continente europeu para as novas terras da América, da Austrália
e da Nova Zelândia. Quanto às máquinas, basta pensar na velocidade sem
precedentes do trem, do navio e do automóvel, inicialmente movidos a vapor. Tempos
modernos, com “sede de inovações” e em permanente “agitação febril”, como se lê
na abertura da Rerum Novarum, carta
encíclica do Papa Leão XIII (1891) que inaugura a Doutrina Social da Igreja.
Em termos mais
concretos, podemos ver isso na figura do próprio Scalabrini, que vê os
migrantes não apenas como vítimas da história, mas também como sujeitos,
protagonistas e profetas de novos tempos. Vale lembrar, de pasagem, que sua preocupação com os emigrantes é
contemporânea da preoupação da Igreja para com as condições de trabalho dos
operários. Se Leão XIII se volta para estes últimos, Scalabrini está atento
àqueles que sequer conseguiram trabalho na terra natal e são forçados a cruzar
os mares. Em outras palavras, a solicitude com a “questão social” na Igreja é
irmã gêmea da solicitude para com os desterrados e sem pátria ou, se quisermos,
da Pastoral dos Migrantes.
Nessa perspectiva,
podemos destacar quatro dmensões da ação pastoral de Scalabrini, homem de Deus,
da Igreja e do povo migrante: a) deixar-se interpelar pelos embates e combates da
história, especialmente em momentos de transformações estruturais; b) compadecer-se
de suas vítimas, com atenção particular àquelas deixadas à margem, como na
parábola do bom samaritano (Lc 10,25-37); c) tomar posição firme e profética em
seu favor, assumindo todas as consequências: e d) superando assim o natural
egocentrismo e isolamento a que somos tentados, por nossa condição humana.
Primeiramente, da mesma
forma que os fundadoes e fundadoras de outras Congregações Religiosas,
Scalabrini se impõe como um verdadeiro termômetro que mede a temperatura do seu
tempo. Seus escritos, suas obras e seu comportamento mostram uma pessoa atenta
a tudo que o cerca, que se deixa interpelar pelas condições de vida dos “mais
necessitados” (i più bisognosi). Interpelação única, mas em quatro dimensões:
saber escutar o rumor vivo e ativo dos fatos históricos; abrir-se ao grito
silencioso e silenciado dos que caem à beira da estrada e da vida; entrar em
diálogo com outras pessoas igualmente sensíveis ao sofrimento alheio; e, como
centro de tudo, cultivar uma intensa intimidade com Deus no silêncio da oração,
da meditação e da contemplação. Tanto que o século do movimento, com milhões de
trabalhadores que se deslocam em todas as direções, também o move e remove. Scalabrnii,
de fato, não limita seu zelo de pastor à circunscrição da diocese, mas seu
coração enxerga muito mais longe, inclusive do outro lado do oceano, onde os
emigrantes, sem o “sorriso da pátria e o conforto da fé”, “nascem e morrem como
bestas hmanas”.
Depois, diante das
incongruências, injustiças e contradições de tempos tão tumultuados, Scalabrini
se comove com a imagem das vítimas dessa agitação histórica. No seu relato
sobre a “Estação de Milão”, ícone para quem trabalha no campo da mobilidade
humana, transparece uma compaixão que mergulha suas raízes nas entranhas mais íntimas
de sua alma, arrancando-lhes palavras molhadas de lágrmas. “Eram migrantes!” –
escreve, fortemente interpelado. E acrescenta: “Parti comovido. Uma onda de
pensamentos mistos dava-me um nó no coração”. Faz lembrar os sentimentos de
Jesus diante das “multidões cansadas e abatidas, como ovelhas sem pastor” (Mt
9,35-38). Profundamente sensível àqueles que buscam “a pátria que lhes dará o
pão”, sofre com os que partem, com os que ficam e com os que se tornam
vulneráveis à cobiça e à falta de escrupulo dos “mercadores de carne humana”.
Mas não lhe basta o impacto,
a sensibilidade e a compaixão para com os trabalhadores e as famílias em fuga.
O chamado “pai e apóstolo dos migrantes” se questiona: “Diante de um estado de
coisas tão lastimável, eu me faço com frequência a pergunta: como poder
remediar?”. E o incansável pastor dá um terceiro passo: parte para a ação
solidária. Empreende viagens aos Estados Unidos, ao Brasil e à Argentina, em
busca de suas “ovelhas perdidas”. Mas também não basta a ação individual ou
personalista. Além do esforço pessoal, funda os diferentes Institutos para
levar adiante a sua intuição, a sua obra e o que hoje chamaos de “carisma
Scalabriniano”. O trabalho não pode depender de uma única pessoa, necessita de
uma estrutura mínima frente à intensidade e diversidade do fenômemo migratório
atual, bem como frente aos desafios de uma sociedade cada vez mais complexa.
Por fim, o binômio
gueto/comunidade serve para ilustrar a superação de nossa tendência ao
isolamento em tempos de “mares bravios”. Enquanto o gueto se encerra sobre si mesmo e se isola como caramujo, rompe
todo contato com o mundo exterior como a avestruz, promove uma hostilidade
recíproca e com isso se empobrece – a comunidade tende a abrir-se ao dinamismo
do diálogo, aceita o intercâmbio de ideias e valores, interage com o “outro,
diferente, estranho”, enriquecendo-se e enriquecendo o ambiente em que convive.
Na diocese, na Igreja e na história, em tempos de revolução e turbulência, Scalabrini
se revelou capaz de superar a tendência humana à fuga do mundo e à
auto-suficiência, abrindo-se aos desafios cada vez mais exigentes do mundo
contemporâneo.
Retomando as quatro
dimensões e aplicando-as à chamada sociedade pósmoderna, impõe-se hoje mais do
que nunca uma leitura atenta e sempre atualizada dos “sinais dos tempos”,
expressão usada pelo Papa Bento XVI para designar o fenômeno das migrações, e
retomada pelo Papa Francisco na mensagem para a Jornada do Migrante de 2014,
com o título Migrantes e refugiados: em
direção a um mundo melhor. Título que, de início, sem esquecer “o trabalho
escravo, hoje moeda corrente”, sublinha que “aquilo que anima tantos migrantes
e refugiados é o binômio fé e esperança”. Além disso, na mesma linha de
Scalabrini, o Pontífice convida-nos a superar a “desconfiança, o fechamento e a
exclusão”, em vista de um “espírito de profunda solidariedade e compaixão”. Nem
pecisaria insistir que se trata de uma forma de sair do gueto em direção à
convivência comunitária, como nos dois retratos da Igreja primitiva (At
2,42-47; 4,32-37).
Tomando como modelo a
Família de Nazaré, que também foi submetida “à experiência e ao rechaço” da
condição de deslocamento forçado, o Papa Francisco, em sintonia com o Documento
de Aparecida, conclusivo da V Assembleia dos bispos da América Latina e Caribe,
não deixa de lembrar que “as migrações podem fazer nascer possibilidades de uma
nova evangelização, abrir espaços ao crescimento de uma nova humanidade,
preanunciada no Mistério Pascal: uma humanidade onde cada terra estrangeira é
pátria e cada pátria é terra estrangeira”.
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