O Estado brasileiro mantém presas 833 estrangeiras
e praticamente todas foram flagradas transportando drogas no País, informou a
advogada criminalista Sônia Drigo, cofundadora e ex-presidente do Instituto
Terra Trabalho e Cidadania (ITTC) e integrante do Grupo de Estudos e Trabalho
Mulheres Encarceradas (GET Mulheres Encarceradas). A advogada diz ser contra a
permanência delas na prisão, já que, em sua visão, as estrangeiras praticaram
conduta de baixo poder ofensivo, pressionadas pela urgência de ganhar algum
dinheiro, pagar contas e ajudar a família. Para Sônia Drigo, elas deveriam
estar cumprindo penas alternativas, como, por exemplo, a prestação de serviços
comunitários.
"Prisão, para mim, continua sendo exceção e
assim deveria ser tratada e cumprida. Vivemos, principalmente na última década,
a banalização dos decretos de prisão. Pior de tudo é que estamos cansados,
esgotados mesmo, de saber que não funciona. Não trata, não educa, não protege.
Ao contrário, estigmatiza, desvia, adoece", alertou a especialista, em
entrevista à Agência CNJ de Notícias. Sônia Drigo é uma das presenças
confirmadas no II Encontro Nacional do Encarceramento Feminino, que o Conselho
Nacional de Justiça (CNJ) e o Departamento Penitenciário Nacional do Ministério
da Justiça (Depen/MJ) vão realizar em 21 e 22 de agosto, em Brasília/DF. Com a
participação de vários conferencistas, o evento tem o objetivo de discutir
soluções para as dificuldades enfrentadas pelas mulheres no cárcere. A seguir,
os principais trechos da entrevista:
Durante o II Encontro Nacional do
Encarceramento Feminino, a senhora vai debater o Tráfico de Entorpecentes: o
Problema da Pequena Traficante e da "Mula" (portador de entorpecentes
contratado por aliciadores). Dessa forma, poderia traçar breve perfil da pequena
traficante? Há alguma diferença entre as duas?
Para mim, que sou advogada criminalista desde 1976,
são todas pessoas que praticaram condutas de menor potencial ofensivo, se é que
se pode aplicar esse termo. Infelizmente, quando os tribunais reconhecem a
figura privilegiada e substituem as penas privativas de liberdade por
restritiva de direitos, elas já cumpriram toda a pena. Os aliciadores,
distribuidores das drogas, é que deveriam ser identificados e impedidos de
entrar no País. Não é a droga que elas trazem na barriga, por fora ou por
dentro, que atemoriza a sociedade, e disso todos nós sabemos.
Qual a dimensão do envolvimento de
mulheres estrangeiras no tráfico de drogas no Brasil?
Meu primeiro contato com a realidade das mulheres
presas foi em 1997, na antiga Penitenciária Feminina do Tatuapé/SP. Nessa
época, eram aproximadamente 50 presas estrangeiras em todo o estado; muitas
delas, africanas e bolivianas, e algumas chinesas e espanholas; ficavam todas
misturadas às presas brasileiras. O tratamento dado pelo sistema era o do
isolamento: não havia intérpretes, as cartas não eram entregues, aprendiam a
língua portuguesa e recebiam roupa íntima e material de higiene por
solidariedade das presas brasileiras. A maioria dizia que havia concordado em
trazer droga em troca de US$ 5 mil. Parecia preço padrão. Umas, para pagar
tratamento médico de familiares, outras, na esperança de melhorar de vida,
achando que fariam por uma única vez. Nessa época tinha o agravante de que a
documentação de extradição não acompanhava o ritmo do cumprimento da pena.
Assim, elas ficavam presas "administrativamente" por meses, esperando
a ordem e a passagem de volta. Poucos consulados davam atendimento; raros davam
ajuda material.
Diante desse quadro, qual foi a sua
reação?
Nessa época, eu, a irmã e advogada norte-americana
Michael Mary Nolan, além de outras pessoas envolvidas com essa realidade,
constituímos o Instituto Terra Trabalho e Cidadania (ITTC). Conseguimos um
Protocolo (sem ônus para o Estado) com a Secretaria de Administração
Penitenciária de São Paulo para "cuidar" das presas estrangeiras,
fazer o papel de familiares delas. Sem prestar assistência jurídica, mas
encaminhar os assuntos mais urgentes: contato com familiares, recebimento das
cartas, independentemente de tradutor (isso depois da morte de uma espanhola
que tinha seis meses de cartas fechadas na administração sem saber),
distribuição de algum material de higiene e roupa íntima na entrada, contatos
com os consulados, reuniões com a Justiça Federal para agilização dos processos
e garantia dos tradutores durante todo o processo e não só no interrogatório,
nos aeroportos, no momento do flagrante. Era comum ouvir delas que o policial
que atendeu a ocorrência só falava espanhol ou inglês. As africanas sofriam,
pois seus costumes e tradições não eram conhecidos, muito menos respeitados,
gerando "faltas" pela desobediência das normas da casa. Seus bens
pessoais não eram guardados e as passagens aéreas de volta eram perdidas.
Como é a situação nos dias de hoje?
O perfil delas continua o mesmo. O número aumentou
mais de 10 vezes, mas, em sua maioria, são pessoas simples, de pouca
escolaridade, com filhos, sem profissão definida, em busca de receber um
dinheiro "fácil" para pagar uma emergência ou cuidar melhor da
família. Ficam reunidas em uma penitenciária, o que faz toda diferença para o
aprendizado do nosso idioma e costumes. Hoje, são raros os casos de permanência
na prisão além do tempo devido, e algumas conseguem receber o livramento
condicional, em garantia à progressão do regime. Muitas não conseguem endereço,
trabalho. O ITTC continua prestando esse serviço e recebeu recentemente o
Premio Innovare. Se falta quase tudo para as brasileiras, o mesmo se dá com as
estrangeiras. No fundo, são todas mulheres com os mesmos sonhos e dificuldades.
Qual o contingente de estrangeiras
presas no Brasil?
Segundo relatório do Ministério da Justiça com
dados de junho/2012, tínhamos o registro de 833 mulheres estrangeiras presas no
Brasil, e destas, 589 em São Paulo, prevalecendo entre elas as bolivianas e as
africanas, quase a totalidade por conta do envolvimento com o tráfico de
drogas. O que leva as estrangeiras a se envolver com o tráfico, como disse
anteriormente, são as mesmas razões que levam as brasileiras a cometer pequenos
tráficos ou furtos de xampu, carne ou óleo de amêndoas: para ajudar a família,
principalmente filhos, falta de escolaridade e profissionalização e o uso/abuso
de drogas lícitas e ilícitas. Constatamos grande número de mulheres com
transtornos mentais que não conseguem de maneira geral criar rotina de trabalho
e de rendimentos fora do crime. E o tráfico, pequeno ou grande, é muito
rentável, rápido e não requer habilidade. Os clientes batem à sua porta.
A senhora acha adequada a pena de
prisão para o caso da pequena traficante e da chamada "mula"?
Prisão para mim continua sendo exceção e assim
deveria ser tratada e cumprida. Vivemos, principalmente nesta última década, a
banalização dos decretos de prisão. Pior de tudo é que estamos cansados,
esgotados mesmo, de saber que não funciona. Não trata, não educa, não protege.
Ao contrário, estigmatiza, desvia, adoece.
Quando essas mulheres são presas, o que
acontece, geralmente, com as que são mães? O Estado oferece algum tipo de
apoio?
Indiferentemente de elas serem brasileiras ou
estrangeiras, o Estado não tem essa preocupação. O destino da criança é o
abrigo quando não há vizinha ou tia ou avó. Hoje menos, mas filhos de
estrangeiras (e de brasileiras) presas já foram dados em adoção sem o
conhecimento delas. Para todas, defendo a permanência dos filhos junto às mães,
na forma da lei, em espaços dignos destinados aos berçários e a creches, com
acompanhamento de equipe multidisciplinar, a não ser que esse não seja o desejo
da mãe ou do pai, quando houver bom relacionamento. Aliás, não se fala em criar
berçários e creches em unidades masculinas, como se os homens não fossem também
responsáveis pela guarda ou pelos cuidados com os filhos. Isso mostra bem o
papel da mulher na sociedade ainda hoje.
Durante o II Encontro Nacional do
Encarceramento Feminino, a senhora pretende apresentar alguma proposta relativa
a essa temática?
No I Encontro, a Dra. Ela Wiecko
(subprocuradora-geral da República e ouvidora do Ministério Público Federal) me
abriu os olhos quando disse que o perfil da mulher presa se alterará por
completo quando o tráfico deixar de ser crime. Isso é fantástico, pois a
maioria comete ou é presa por tráfico. Essas mulheres são tratadas como grandes
criminosas. Quando a legislação permitir o uso de todas ou de algumas drogas,
teremos outros dados, e aí sim poderemos dar tratamento médico a quem precisa,
ou social, a quem necessita.
Como a senhora vê a iniciativa conjunta
do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Departamento Penitenciário Nacional
(Depen) de realizar este seminário?
Infelizmente, não foi realizado no ano passado,
como ficou compromissado no final do I Encontro, em 2011, e na Carta de
Brasília. Precisamos trocar experiências, cobrar atitudes, dialogar. Mais do
que isso, precisamos acabar com o preconceito. Não é verdade que a segurança de
todos está vinculada ao número de prisões e ao aumento das penas ou diminuição
da idade penal. Se não damos tratamento digno e justo aos maiores de 18 anos, o
que será feito desses jovens? Onde ficarão? Precisamos de segurança pública,
desarmar a sociedade, cumprir as nossas leis desde o primeiro momento e não só
em favor daqueles que conseguem recorrer aos tribunais superiores. Precisamos
que o CNJ e o Depen cobrem das autoridades os encaminhamentos recomendados nos relatórios
dos mutirões. Espero que façam isso de forma enérgica, exemplar mesmo. As mães
presas, os filhos que nascem na prisão, as idosas, as doentes mentais, mulheres
e homens presos nas condições atuais não podem esperar. O risco da demora ou da
omissão é grave demais quando pensamos nas gerações já comprometidas pela falta
de assistência.
Serviço
Evento: II Encontro
Nacional do Encarceramento Feminino
Data: 21 e 22 de agosto de 2013
Local: Escola de Magistratura Federal – 1ª
Região (Esmaf). Setor de Clubes Esportivo Sul, Trecho 2, Lote 21 – Brasília/DF.
Fone: (61) 3217-6646
Público-alvo: juízes e servidores
que atuam na área criminal e de execução penal, nas esferas federal e estadual,
secretários de Administração Penitenciária dos Estados, diretores de
penitenciárias, agentes penitenciários, integrantes do Ministério da Saúde, do
Ministério Público federal e estadual e profissionais de saúde
Inscrições: até 20 de agosto
Jorge Vasconcellos
Agência CNJ de Notícias
Agência CNJ de Notícias
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