Sob a sombra de uma árvore numa praça da pequena Brasileia (AC), na
fronteira do Brasil com a Bolívia e o Peru, moradores levantavam hipóteses para
um misterioso acontecimento do mês anterior: por dois dias seguidos, o
cemitério da cidade amanheceu com túmulos violados e dois crânios sumiram dos
caixões.
"Só pode ter sido coisa de haitiano", diz o aposentado Osvaldo,
referindo-se aos cerca de 1.300 imigrantes da ilha caribenha que vivem na
cidade à espera de vistos para ingressar no país. "Eles já estão tão
à vontade aqui que começaram até a fazer magia negra, vodu, aquelas coisas que
eles fazem lá no país deles".
Embora a polícia avalie que o caso -- tipificado no Código Penal como
vilipêndio de cadáver -- foi provavelmente obra de alunos de medicina de
Cobija, cidade no lado boliviano da fronteira, a história se somou às queixas
de moradores locais contra o crescente número de imigrantes em Brasileia.
Por ora, não há registro de conflitos graves entre habitantes locais e
estrangeiros. Mas a solidariedade com que os residentes acolheram as primeiras
levas de haitianos, entre o fim de 2010 e início de 2011, tem dado lugar à
irritação e até a comportamentos xenofóbicos.
"Ninguém sabe a procedência desse povo", diz à BBC Brasil
Aparecido, dono de uma loja de roupas. "Sabemos que o país deles tem
epidemia de cólera, hepatite, aids. Eles não têm controle de nada, não fazem prevenção
sexual."
Ele ressalta, porém, que não é contra a vinda do grupo ao país. "O
Brasil é grande, tem espaço para muita gente, mas o município de Brasileia não
tem espaço para essa quantidade de pessoas que estão aqui hoje".
Segundo estimativa do governo local, os imigrantes já representam 10% da
população urbana de Brasileia, município com cerca de 20 mil habitantes. O
grupo é formado sobretudo por haitianos, mas recentemente a cidade passou
também a receber imigrantes africanos (há 72 senegaleses e dois nigerianos
ali), da República Dominicana e até de Bangladesh.
Quase todos chegaram ao Brasil seguindo uma rota inaugurada pelos
haitianos. Após voarem até o Equador, viajam de ônibus para o Peru e, de lá,
cruzam a fronteira em Assis Brasil (AC). Vão, então, para o município vizinho
de Brasileia, maior cidade da região fronteiriça e onde o governo estadual
concentra sua assistência humanitária.
Lá, enquanto aguardam pelo visto, dormem num abrigo -- um clube
esportivo desativado cuja capacidade ideal é para 200 pessoas. Lá recebem três
refeições diárias, vacinas e atendimento médico. Todos podem circular
livremente pela cidade e pelo município adjacente de Epitaciolândia.
Tratados com prioridade pelo governo, os haitianos geralmente recebem
seus documentos em algumas semanas ou até dias.
Alguns então partem para outras regiões do país em busca de emprego,
enquanto outros esperam por empresários que venham contratá-los. Mulheres e
idosos têm tido mais dificuldade para encontrar trabalho e deixar o abrigo. Já
entre os imigrantes de outros países, a espera pode se arrastar por meses.
Num salão de beleza a duas quadras do abrigo em Brasileia, uma gerente
de vendas que não quis ter seu nome citado acrescenta outros itens à lista de
reclamações dos moradores.
"Ninguém mais quer usar a academia pública no parque", diz
ela. "Eles estão urinando e defecando no gramado à noite."
Até a semana passada, os cerca de 1.300 imigrantes tinham apenas dois
banheiros no abrigo. Desde então, o governo estadual instalou 30 banheiros
químicos no local.
A gerente de vendas diz ainda que os haitianos estão sobrecarregando os
serviços na cidade e que moradores têm tido dificuldade para agendar consultas
médicas. "Você vai na lan house, no banco, no Correio, na papelaria e
só dá eles. O problema é que estão vindo muitos, e eles estão dominando a cidade."
A manicure Leuda Reis, que trabalha no salão, diz já ter atendido
clientes haitianas. "Como elas estão acostumadas a ganhar as coisas aqui
no Brasil, querem que a gente faça tudo quase de graça. Elas têm dinheiro, mas
não querem pagar um valor justo."
Um mototaxista faz queixa similar: afirma que, acostumados à economia
informal no Haiti, eles tentam pechinchar as corridas. "Já nem pego mais
haitiano", diz, citando ainda a dificuldade para compreender sua língua --
a maioria fala apenas creole.
Mais vendas
Mas nem todos estão insatisfeitos com a crescente população estrangeira
na região. Em Epitaciolândia, o bar do comerciante José Batista passou a ter
senegaleses como principal clientela. Há dois meses à espera de vistos, os 72
imigrantes do país africano elegeram o local para petiscar ou variar as
refeições.
"No abrigo é sempre a mesma comida, estávamos enjoados", diz
Balla Tacko, que pretende montar uma loja em São Paulo se receber seu visto.
No bar, eles consomem principalmente espetinhos de carne, por R$ 1 cada.
Álcool, jamais -- bebidas são vetadas pelo Islã, a fé seguida por todo o grupo.
Batista conta que, ao contrário de muitos clientes locais, os
senegaleses "não dão trabalho e são tudo gente boa."
Para mantê-los, ele lhes oferece descontos e permite que preparem a
comida ao seu jeito. "Eles gostam do sabor bem forte, com muita
pimenta", explica.
Perto do alojamento em Brasileia, o comerciante Francisco Jerônimo
também tem tirado proveito do maior fluxo de imigrantes.
No domingo, enquanto vendia doces e refrigerante a um grupo de
haitianos, uma moradora se aproximou do balcão e lhe perguntou, com cara de
nojo, como estava fazendo para lidar "com toda essa gente".
"Essa gente dobrou as minhas vendas", respondeu. Mas
acrescentou, pondo-se em acordo com a residente: "Só tenho medo das
doenças que eles trazem junto".
BBC BRASIL
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