domingo, 4 de setembro de 2011

Literatura de imigrantes

A moça ao falar procurou evitar que outros a ouvissem. Precaução inútil, pois estávamos em Londres e ninguém por perto, certamente, entendia português. Ela me confidenciou: "Estou aqui há dois anos trabalhando e estudando. Mas ultimamente tenho vivido sob grande tensão". Disse-me que conseguira falar inglês sem sotaque para não ser identificada como estrangeira em lugares públicos. Gostaria de continuar morando na Europa, mas era discriminada e até mesmo hostilizada por jovens radicais. Ficou então calada, com olhar triste, amargando seu drama de imigrante.

Lembrei-me de quanto a economia e a cultura de nosso país devem aos imigrantes. "Um rio imita o Reno" de Vianna Moog (mais do que o romance "Canaã" de Graça Aranha) testemunha a vivência de imigrantes europeus entre nós. Josué Guimarães também escreveu um ótimo romance sobre o tema: "A ferro e fogo". Merece referência especial a portentosa trilogia de Érico Veríssimo - "O tempo e o vento". A imigração permeia a trama e está presente em vários personagens.

Há outro aspecto importante a ser valorizado: a contribuição para nossa literatura de nomes como o do austríaco Otto Maria Carpeaux, ensaísta que nos familiarizou com romancistas, poetas, pensadores estrangeiros sobre os quais tínhamos informações escassas e incompletas. Ele chegou ao Brasil em plena Segunda Guerra Mundial e integrou-se, a parti daí, não só à cultura, mas a todos os aspectos da vida brasileira. Produziu uma vasta obra de historiador e crítico literário.

Fazem parte da minha biblioteca todos os livros que Carpeaux escreveu em nosso país, a partir de "A cinza do purgatório" (1942). Esses livros, por sinal, se tornaram acessíveis em sua totalidade ao leitor atual através da publicação da obra "Ensaios Reunidos", vol. I, editada pela Topbooks em 1999. Nos "Ensaios Reunidos", vol. II, a Topbooks publicou em 2005 os estudos que Otto Maria Carpeaux não chegou a enfeixar em livro. Nesses dois volumes está toda a produção ensaística desse imigrante austríaco que trouxe uma contribuição fundamental para nossa evolução literária. Sua monumental "História da Literatura Ocidental", em oito volumes, foi escrita sem que ele pudesse consultar as grandes fontes bibliográficas - particulares, de seu acervo pessoal, e públicas, de bibliotecas europeias. As primeiras foram extraviadas nos países de onde viera, na fuga do nazismo. As outras ficaram fora de seu alcance pela distância, não somente geográfica, mas política e ideológica criada pelo conflito que ensanguentou o mundo. Em 2008, o Senado Federal - numa iniciativa que destoa de muita coisa errada que lá se faz - reeditou a "História da Literatura Ocidental" (3.ª ed.) em quatro volumes. Carpeaux foi extraordinário ensaísta não só por sua incomensurável, quase inacreditável erudição, como pelo estilo preciso, claro, sintético.

Outro escritor estrangeiro perseguido pelo nazismo, o húngaro Paulo Rónai, promoveu várias iniciativas de grande e duradoura repercussão em nossa literatura: coordenou a primorosa tradução de toda "A Comédia Humana" de Honoré de Balzac. São 89 livros (que ele prefaciou) em 16 volumes. Organizou, ainda, com Aurélio Buarque de Holanda, uma antologia do conto mundial, "Mar de histórias", em 10 volumes (que vi, pela primeira vez, nas mãos do poeta Berilo Wanderley). E deixou duas obras clássicas sobre tradução: "Escola de tradutores" e "A tradução vivida".

Roger Bastide, sociólogo que Gilberto Freyre chamava de "francês abrasileirado", ensinou na Universidade de São Paulo, criando escola com suas ideias e metodologia de trabalho. Stefan Zweig ligou-se ao nosso país através de "Brasil, país do futuro", na mesma linha de "Por que me ufano de meu país" do Conde de Afonso Celso. São livros que não têm qualquer valor literário. Um escritor católico francês - Georges Bernanos - que viveu de 1938 a 1945 no Brasil escreveu romances que, por suas densas abordagens filosóficas, éticas e religiosas, continuam atuais. Sua principal obra é "Diário de um Pároco de aldeia": uma leitura cheia de revelações fulgurantes...

Ivan Maciel de Andrade

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