quarta-feira, 28 de agosto de 2013

VIOLÊNCIA E FLUXOS MIGRATÓRIOS


Violência e migração aparecem historicamente como verdadeiras irmãs siamesas. De fato, ao longo dos séculos, toda violência, aberta ou subterrânea, declarada ou silenciosa, contém potenciais deslocamentos humanos. Estes, embora diferenciados no tempo e no espaço, desencadeiam enormes fluxos migratórios. Em numerosos casos, tai movimentos de massa constituem o lado visível de uma violência estrutural e invisível. Uma espécie de termômetro das turbulências ocultas em curso. Se isso é evidente, por exemplo, nas formas de violência marcadas pelo subdesenvolvimento, a pobreza, a miséria e o desemprego (África, Ásia, América Latina, Caribe, Leste Europeu), o é com muito maior razão nas regiões de conflitos armados por motivos políticos, ideológicos ou religiosos (Oriente Médio, Norte da África, Paquistão, Iraque, Afeganistão). 
Neste caso, o preconceito e a discriminação, a intolerância e a xenofobia provocam fluxos de migração cada vez mais intensos, complexos e dramáticos. Vale ilustrar com alguns fatos atuais. Na Síria, dilacerada pela guerra civil desde 2011, a cifra de crianças recolhidas em campos de refugiados é estimada em mais de um milhão; cerca de mil foram mortas juntamente com seus pais. No Egito, os mortos vitimados pelas mobilizações e turbulências recentes, em razão da mudança de governo, ultrapassam os 800, segundo representantes da Fraternidade Muçulmana. No Líbano, Iraque, Afaganistão e Paquistão, atentados frequentes causam centenas de vítimas, entre mortos e feridos. A chamada “primavera árabe”, depois de certa esperança, representa atualmente um enorme ponto de interrogação, para não falar de puro e simples “inverno”. Em lugar de flores parece trazer espinhos e frutos amargos. Mudam os nomes dos governantes, mas permenece o regime teocraticamente autoritário.
Os resultados de semelhantes tensões e guerras aparecem com uma visibilidade cada vez mais preocupante e desafiadora no sul da Itália. Barcaças precárias, apinhadas de “retirantes” ou “refugiados”, chegam continuamente nos portos da Ilha de Lampedusa e da região de Siracusa e Sicilia. A lotação de cada embarcação tem pulado sistematicamente de 50 para 100, depois para 250, chegando até a 400 imigrantes. Todos fugindo dos frequentes massacres e em busca de socorro. Nesses desembarques, cresce progressivamente a presença de mulheres, crianças e famílias inteiras. Alguns barcos afundam antes de atracar, exigindo o socorro imediato, mas nem sempre eficaz, da Guarda Costeira italiana. Aumentam dramaticamente os casos de afogamento e morte. Os alojamentos para imigrantes encontram-se superlotados, ocasionando revolta e distúrbios crescentes. O prefeito e as autoridades locais se unem aos agentes que ali trabalham para alertar que a situação vem se tornando incontrolável.
Por outro lado, a Itália vem enfrentando uma grave crise socioeconômica e política (uma crise que, de resto, golpeia toda zona do euro). Mas vejamos mais de perto o quadro italiano: crescimento negativo em todos os setores e por longo período, intenso fechamente de pequenas e médias empresas, diminuição do consumo familiar de produtos essenciais, desemprego crescente especialmente entre a população juvenil, onda de suicídios por falência, aposentadoria em declínio, tensões intra-governamentais – são os principais ingredientes dessa crise estrutural. Milhares de jovens italianos, de ambos os sexos, boa parte com curso superior completo, emigram para os Estados Unidos, a Inglaterra, a Alemanha, a Austrália... numa tentativa de um futuro menos obscuro. Não poucos refazem o caminho que seus antepassados, ao cruzarem o Atlântico, desbravaram na passagem do século XIX para o século XX. 
Além disso, a Ministra da Integração da Itália, cidadã italiana negra, originária da República Democrática do Congo, recentemente sofreu algumas manifestações discriminatórias de autoridades de primeiro escalão. Cecile Kyenge foi comparada a um orangotango por ninguém menos que o Senador Roberto Calderoni, vice-presidente do Senado, do partido Lega Norte, conhecido por sua insistente oposição ao movimento de imigração. Seguiram-se outras manisfestações de flagrante preconceito, do tipo “Por quê não vai fazer política no Congo?” Diante de tal situação, o que fazer?
Essa é a pergunta que todos se fazem. Pergunta do governo, das associações e organizações não governamentais, dos movimentos sociais e da Igreja. A esse respeiro, a recente visita do Papa Francisco à Ilha de Lampedusa representou um alerta geral sobre a condição desumana dos imigrantes que, para fugir dos confrontos sangrentos nos países de origem, continuam buscando a Europa. A visita do Santo Padre, além de um grito à consciência dos cidadãos e governantes do velho continente, repercutiu em todo o mundo. Mas a situação tem piorado devido ao aumento da violência armada do outro lado do Mediterrâneo. As autoridades italianas, por sua vez, procuram estender o apelo do Papa a todo o continente europeu. “O Mediterrâneo não é uma fronteira somente italiana” – dizem – “mas da Comunidade Europeia como um todo”. Palavras que ecoam vazias aos ouvidos moucos de grande parte das autoridades dos outros países da comunidade.
Tanto que têm sido praticamente nulas, ou quando muito tímidas, as respostas dos demais países. Os governos da Alemanha e da França (para não falar dos outros), encontram-se sob fogo cruzado: ao mesmo tempo que se vêem interpelados pela chegada constante dos refugiados e pelos pedidos de socorro da Itália, têm de enfrentar a intransigência de grupos internos de ideologia fortemente neo-nazista. Verificaram-se recentes confrontos entre esses grupos e imigrantes que conseguiram ultrapassar a Itália, chegando a cidades da França e Alemanha. Nesses e em outros países do velho continente, em lugar do sentimento de solidariedade e acolhida diaante da situação dos imigrantes, cresce a intolerância e a perseguição. Na mesma medida em que crescem as levas de refugiados do sul para o norte do Mediterrâneo, parece aumentar o medo da população e dos governos. Não é indiferente o fato de que a maioria dos imigrantes seja muçulmana!
A pergunta sobre “o que fazer?” permanece aberta e mais viva do que nunca, inclusive para os diversos setores da Igreja. Sem dúvida, a pressão crescente de refugiados sobre a costa sul italiana, aliada à visita profética do Pontífice, nos interroga a todos. Trata-se de uma situação simultaneamente emergencial e estrutural. Esses imigrantes ao mesmo tempo que denunciam a violência de seus países e a necessidade de fugir da terra natal, anunciam a necessidade urgente de mudanças nas relações internacionais, seja de um ponto de vista socioeconômico, seja de um ponto de vista político-cultural. Profetas do amanhã, sem duvida, mas profetas inconscientes, perseguidos e em desesperada fuga. Como transformar semelhante fuga em uma nova busca?

Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS

Luxemburgo, 24 de agosto de 2013

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