A imagem do título, ampla e popularmente conhecida, ilustra bem a atual
crise europeia, notadamente na zona do euro. Constata-se, de cara, que o
sistema financeiro, tido historicamente como intermediário e facilitador dos
negócios em geral, abre um tremendo vórtice na econoia globalizada, um
verdadeiro ralo sem fundo para o erário público e privado. Devora a si mesmo e
devora as finanças dos países onde a crise é mais aguda. Ao invés de investir
na produção de bens e consequente geração de novos empregos, especula com a
poupança alheia numa rede internacional que desconhece franteiras, língua,
cultura e nação, cego às cores da bandeira e das necessidades de cada país.
Cria uma bolha financeira que, cedo ou tarde, desmascara o próprio vazio,
abandonando credores e poupadores.
Por isso é que, além de ilustrar esse mecanismo do capital que se morde
a si mesmo, a imagem do título explica também o deslocamento massivo dos
trabalhadores e de suas famílias. Aos milhares e milhões seguem a rota do
dinheiro, sangue vivo da economia. Onde este é mais abundante e mais dinâmico,
certamente cairão algumas migalhas da mesa dos ricos para o chão onde se
arrastam os pobres. Quando os gatos se banqueteiam, os ratos se nutrem das
sobras! Não obstante os obstáculos e leis migratórias restritivas, as pessoas
pressionam as fronteiras atrás de uma oportunidade que não encontram nos países
de origem. Este se enfraquece ao morder a própria cauda do financiamento
público, não deixando outra alternativa aos emigrantes que, em desespero, se
lançam onde o capital volátil e digital poderá encontrar algum ramo para
pousar. Não raro, antes de pousar já se volatizou completamente e desapareceu
pelas vias obscuras de uma administração corroída pelo vírus da corrupção.
Os governos, por sua vez, que também deveriam ser intermediários das
forças sociais dos respectivos países, para salvar da falência o capital
financeiro costumam reequilibrar as contas com o erário público. Transferem à
iniciativa privada o montante necessário, sempre crescente, para socorrer o
setor bancário. Ao mesmo tempo, abandonam ao caos a saúde, a educação, o
transporte, a segurança, o deficit habitacional, e assim por diante. Não é à
toa que, em plena crise, os bancos seguem cobrando taxas elevadas e auferindo
lucros abusivos, às vezes estratosféricos. Os governantes fazem o papel de uma
espécie de correia de transmissão onde os tributos se transladam do bolso de
todos os cidadãos para as contas bancárias das classes dominantes, não poucas
delas localizadas em verdadeiros paraísos fiscais. O cão volta a morder a si
mesmo, deixando na mão os setores mais pobres da população de baixa renda,
enquanto procura salvar a todo custo as camadas mais ricas.
Do ponto de vista socioeconômico e político, a imagem do "cão que
morde a própria cauda" é ainda mais viva. Tomemos o exemplo da Itália. O
Produto Interno Bruto (PIB) no decorer de 2012 caiu em 2,4%, enquanto a renda e
o poder aquisitivo das famílias recuaram em quase 10%. O desemprego geral chega
à casa dos 17%, mas o alarme maior vem do desemprego juvenil, o qual no início
de 2013 alcançou a marca inédita e preocupante de 38%. Esta cifra é ainda mais
alarmante para a Espanha (55%) e a Grécia (60%), ao passo que na Alemanha não
passa de 8%. Milhares de pequenos, micros e médios empreendedores decretam
falência, fecham as portas e, sempre na Itália, o número de pessoas
consideradas pobres se aproxima dos 7 milhões. Em Milão, por exemplo, omeçam a
surgir experiências como "supermercados populares" com o fim de
socorrer os que caem na desgraça.
A União Europeia é claramente constituída de um núcleo duro que blindou
sua economia contra a crise - com destaque para a Alemanha de Angela Merkel - e
vários países de periferia que atravessam um caos econômico e político, onde é
difícil ver a luz no fim do túnel. Como se isso não bastasse, o governo
italiano ainda se vê às voltas com outro tipo de caos, o risco de
ingovernabilidade depois das últimas eleições. Nenhum partido adquiriu a
maioria necessária para governar com certa segurança, dificultando a elaboração
de um programa mínimo. Na economia capitalista, como bem sabemos, produção,
crescimento e consumo andam de mãos dadas como irmãos siameses. Se um cai leva
consigo o outro. Volta a imagem do cão: gira sobre si mesmo sem conseguir uma
via de saída.
Semelhante quadro gera, por fim mas não em último lugar, a fuga em massa
de capital humano e social. Ao cnsumir os próprios recursos financeiros num
dinamismo morbidamente autofágico, o Estado abandona os cidadãos à própria
sorte. Estes, órfãos da terra em que nasceram e sepultaram seus familiares,
correm atrás de uma nova pátria em outros países. Recente pesquisa revela que
milhares de italianos, em em sua maioria jovens e mulheres, grande parte
laureados, encontram-se em New York na tentativa de encontrar trabalho. Embora
em menor medida, alguns buscam outras cidades dos Estados Unidos ou se deslocam
dentro do velho continente europeu, em direção a Londres, Frankfurt ou Paris.
Jovens que refazem o caminho de seus antepassados no final do século XIX e
início do século XX.
Repete-se o cenário e a imagem: "o cão volta a morder a
cauda". A crise representa um dessangramento continuo das forças jovens e
dos principais cérebros do país, comprometendo ainda mais a retomada da
pesquisa científica e do desenvolvimento econômico e social. Instala-se o
círculo vicioso e vorticoso, abismo devorador das energias que poderiam alavancar
uma solução a médio ou longo prazo. Uma dinâmica perniciosa e espiral que
expande cada vez mais o núcleo do vórtice, esticando a corda do equilíbrio a um
ponto alarmente e irreversível. Se os brotos de uma sociedade são forçados a
migrar em busca de terras mais férteis, o tronco envelhece de forma senil e
irremediável. Anula ou retarda a possibilidade de uma primavera florifda e de
uma aurora renovada. Se o sangue novo deixa um organismo vivo, este perde sua
vitalidade e qualquer chance de rejuvenescimento.
Alfredo Gonçalves, CS, é Conselheiro e Vigário Geral dos Missionários
de São Carlos em Roma.
Fonte:
Alfredo J. Gonçalves / Revista Missões
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