sexta-feira, 22 de março de 2013

Padre Mario Geremias : “A redenção moral, social e espiritual do emigrante”.


MEMORANDUM DE SCALABRINI “PRO EMIGRATIS CATHOLICIS” À SANTA SÉ (05-05-1905) DEPOIS DE SUAS VISITAS PASTORAIS  NO BRASIL E NOS EUA.
Tenho a honra de apresentar  à alta consideração de V. E. algumas considerações e propostas relativas às condições presentes e futuras do catolicismo nas duas Américas. Observações e propostas que são o fruto de longos estudos realizados nos locais e mais da experiência de beneméritos missionários e de ilustres prelados os quais consagraram toda a sua vida para a difusão do catolicismo naquelas regiões. Nunca como agora, no ato de escrever sobre tal assunto, me senti tomado de maior comoção e invoquei com maior intensidade de afeto as luzes do Céu e a graça daquela eloquência que deriva do esplendor da palavra materializada por cifras e fatos, para poder transmitir aos outros as minhas íntimas convicções sobre este importantíssimo assunto. Aquilo que eu vi nas minhas viagens através dos Estados Unidos do Norte e do Brasil está diante de mim como estivesse presente e as emoções que experimentei não se apagarão nunca do meu coração.
Visitei cidades populosas e comunidades nascentes, campos fecundados pelo trabalho e imensas planuras que não tocadas pela mão do homem, conheci emigrantes que alcançaram o auge da riqueza, outros que viviam no conforto, e muito mais o obscuro imenso exército dos miseráveis, que lutam pela vida contra os perigos do deserto, as insídias dos climas insalubres, contra a rapina humana, sozinhos num supremo abandono, na penúria de todos os confortos religiosos e civis e de todas as coisas; senti os corações palpitarem em uníssono com o meu quando eu lhes falava com a linguagem da pátria em nome da fé comum.
Vi, espetáculo doloroso, a fé se apagar em milhões de almas por falta de alimento espiritual, e também infelizmente, por indignidade de seus ministros.
Vi reflorescer em populações inteiras, como uma primavera de almas, sob o sopro de um santo apostolado, as práticas da vida cristã e as inefáveis esperanças da religião.
Vi, numa palavra, que se a Igreja de Deus não alcança naquelas regiões maior importância daquela que tem agora, seja na liderança da vida coletiva, seja naquela individual; se as almas se perdem aos milhões, isto se deve em grande parte, mais do que à atividade, embora grande, dos inimigos da fé viva, à falta de um trabalho religioso bem organizado e bem adequado a cada ambiente e à escassez do clero, e me convenci firmemente que é urgente tomar providências e que é grave erro, para não dizer culpa, de todos nós designados para o governo da Igreja, deixar que se prolongue um estado de coisas, causa de tanto dano para as almas e que reduz, perante os inimigos de Deus, a importância social da Igreja Católica.
Um dos fatos da história moderna de índole político-social e, portanto, religiosa (pois os acontecimentos humanos, na sua infinita variedade, refletem sempre a unidade psíquica de onde emanam) é certamente a tomada de posse, pelas nações européias, de todos os continentes habitados por raças, consideradas retrógradas ou refratárias à civilização e pertencentes, em matéria de religião, às formas mais baixas de idolatria.
E para permanecer no assunto destas minhas considerações, a conquista das Américas sobre raças indígenas foi verdadeiramente surpreendente nos seus efeitos políticos, sociais e religiosos.
A América, todos o sabem, é um dos Continentes mais vastos do mundo: estende-se por 40 milhões de quilômetros quadrados, isto é quatro vezes a Europa, e se alonga nos dois hemisférios quase dividida ao meio pelo equador; ao Norte tocando o círculo polar e ao Sul chegando até o 60° grau de latitude; de modo que abriga todos os climas, do tórrido ao gelado, passando por zonas subtropicais e temperadas e possui os produtos e as riquezas de todos os climas. Banhada por três grandes oceânos, rica de tudo quanto a fertilidade da terra e a indústria humana pode proporcionar, a América possui em sua configuração, nos seus golfos, nas suas baías tão amplas e sinuosas, nos seus grande rios navegáveis por milhões de quilômetros, os espaços e as vias naturais preparados para os povos pela Providência, a qual quis reservar por último este berço para a humananidade civil, aonde as diversas estirpes pudessem se dirigir como a terra prometida comum e onde estabelecer-se, multiplicar-se e aonde progredir para vantagem delas e para a maior gloria de Deus. Atualmente a América conta com 18 Nações independentes governadas com sistema republicano e diversas possessões coloniais pertencentes a Estados europeus com uma população de cerca 150 milhões; mas distribuindo àquele vasto continente a densidade da população da Itália (também subtraindo do cálculo as zonas equatoriais e polares) ele poderá abrigar mais de 2.500 milhões de habitantes, isto é um terço a mais de quantos existem agora espalhados em toda a superfície da terra.
Todos os povos contribuíram para formar esta nacionalidade e com os cálculos estatísticos poder-se-ia estabelecer em qual proporção o sangue de cada povo europeu entra na formação do tipo americano. Assim os impérios primitivos dos Incas e dos Astecas, dos Quíchuas, dos Guaranis, às tribos vagantes dos Peles Vermelhas do Norte e às inúmeras que vagavam no Sul, sem nome e sem paradeiro fixos, sucedem agora pessoas civilizadas e populosas cidades.
As formas da imigração européia na América, depois do breve período belicoso     da conquista, são totalmente diferentes  de todas as outra imigrações registradas pela história. Não hordas de povos bárbaros, que semeiam carnificina e ruínas, mas falanges de pacíficos trabalhadores que procuram em terras alheias fortuna e enriquecimento. Não mais o ímpeto de uma enxurrada que arrasta tudo, mas o espraiar plácido das águas que fecundam. Não mais opressões de povos, mas fusões, adaptações, nas quais as diversas nacionalidades se encontram, se cruzam, se revigoram e dão origem a outros povos sobre os quais, embora na diferença, predominam determinados caracteres e determinadas tendências religiosas e civis como características de um mesmo povo. Uma tal emigração reflete uma lei da natureza. O mundo físico como o mundo humano estão sujeitos a esta força misteriosa que agita e mistura, sem destruir os elementos da vida, que trasporta os organismos nascidos em determinados pontos e os dissemina pelo espaço, tranformando-os e aperfeiçoando-os de modo a renovar a cada instante o milagre da criação.
E é em força desta lei que a América, se tornou, de um século para cá o grande cadinho das velhas nações europeias e parece destinada a exercitar uma alta influência sobre os destinos da humanidade. Este grandioso fato econômico e político que principiou no século XIX, e se prolonga no XX, explica o grande interesse que os Governos europeus demonstram em acompanhar cada um a sua emigração nas diversas Nações americanas e no subsidiar sociedades de proteção, de previdência, de beneficência, de instrução, institutos de emprego, observadores comerciais, em resumo, no encorajar todas aquelas instituições que transformam a emigração de um país de um agregado informe em um organismo vivo, no qual palpita o sentimento nacional dos expatriados e pelo qual se mantém viva a simpatia pela pátria de origem nas populações americanizadas.
A Igreja Católica é chamada pelo seu apostolado divino e pela sua tradição secular a imprimir a sua marca a este grande movimento social que tem por finalidade a organização econômica e a fusão dos povos cristãos. Como sempre e em todos os lugares, também neste grande conflito de interesses ela tem uma nobre e bela missão a cumprir, primeiro promovendo a incolumidade da fé, a sua propagação e a salvação das almas, para depois, mâe comum e rainha  entre os diversos grupos, assistí-los aparando arestas de cada nacionalidade, amainando as lutas de interesses das diversas pátrias, harmonizando, numa palavra, a variedade das origens na pacificadora unidade da fé.
Ninguém pode contestar à Igreja aquele lugar de mãe e moderadora dos povos que lhe cabe por direito divino e por consenso universal, pois todos os católicos acreditam e todos os não católicos de boa fé admitem a verdade do axioma que onde está a Igreja, ali está a obra imortal de Deus misericordioso: “Immortale Dei miserentis opus, quod est ecclesia”.
As considerações, os fatos e as cifras citadas nos conduzem naturalmente a seguinte pergunta: “O que a Igreja deve fazer para manter vivo e ativo o sentimento religioso e firme a fé católica naqueles povos, aos quais se abre o futuro rico de tantas promessas e aos quais anualmente os povos católicos da Europa enviam tão grande contingente de imigrantes?” A pergunta é simples, mas não assim a resposta, a qual para ser adequada, deve ser variada e ao mesmo tempo abrangente, geral e particular; isto é, geral para a autoridade de quem emana, particular e variada conforme os ambientes nos quais se deve aplicar; às diversas necessidades às quais intenciona acudir, às leis, aos costumes de cada país, e diria até, de cada coletividade cristã que vai se formando. “A fenômenos novos, organismos novos, adequados à necessidade”.
Scalabrini faleceu no dia 01 de junho de 1905 e a absorção Institucional foi lenta e progressiva no decorrer da história.
Pio X em 1908 com a reforma da Cúria Romana cria novas Congregações entre as quais a Sagrada Congregação Consistorial. Em 1912 com o moto próprio “Cum omnes catholicos o Pontífice” cria  um “Ofício especial para a emigração” junto a Congregação Consistorial com a finalidade “de procurar e proporcionar todo o necessário para a saúde das almas, para melhorar as condições dos emigrantes de rito latino”.
Pio X em 1914 institui o “Pontifício Colégio Urbano dos Sacerdotes para a Emigração Italiana”. Eram admitidos sacerdotes do clero secular por dois anos, em consenso com o próprio bispo, com objetivo de se preparar (lingua, costumes...) para trabalhar com os emigrantes italianos.
Bento XV em 1914 pede à Sagrada Congregação Consistorial que envie aos Ordinários da Itália a Carta “Il dolore e le preocupazioni” (06-12-1914) na qual estabelece a celebração de um dia nacional da emigração cujos proventos são destinados a manutenção do Pontifício Colégio Urbano.
Pio XII coloca junto à Secretaria de Estado um “Ufficio Migrazioni” com duas secções: uma para a emigração livre e outra para aquela forzada (refugiados).
Em 1951 aprova a fundação da “Comissão Católica Internacional para as Migrações” (CCIM) com sede em Genebra.
Em 10 de agosto de 1952 é publicada a Constituição Apostólica “Exul Familia” carta magna da assistência pastoral aos emigrados. Com ela se estende a todo mundo católico a celebração do dia anual para os emigrantes.
Paulo VI no dia 15 de Agosto de 1967 sob a orientação do Vat. II renova a organização da Curia Roma aonde a Congragação Consistorial assume a denominação de Congregação dos Bispos. Esta no dia 22-08-1969 publica o moto próprio “Pastoralis Migratorum Cura” e a “Instrução Nemo est” com objetivo de atualizar a Constituição Apostólica  “Exul família” segundo os princípios conciliares e à nova realidade migratória.
Em 1970 com o moto próprio “Apostolicae Caritatis” constitui um novo organismo desvinculando da Congregação dos Bispos o “Setor emigração”, que recebe o nome de  “Pontifícia Comissão para a Pastoral das Migrações e do Turismo”
João Paulo II em 1988 através da “Constituição Pastor Bonus” realiza a intuição de Scalabrini ampliando a visão e abrangendo a todas as categorias migratórias com a criação do “Pontifício Conselho da Pastoral para os migrantes e itinerantes” (Ver artigos 150 e 151 de PB)
Em 2004 o Pontifício Conselho da Pastoral para os migrantes e itinerantes lança o último documento que temos sobre as migrações “Erga migrantes caritas Cristi”, com orientações para toda a Igreja sobre o cuidado e o acompanhamento dos migrantes. Atualmente a PASTORAL DO MIGRANTE E A PASTORAL DA MOBILIDADE HUMANA estão presentes e atuantes em todos os Continentes  e se constituem  importantes ações da Igreja no mundo das migrações, dando-lhe autoridade moral para dialogar com os governos e a sociedade.
Podemos concluir afirmando que a motivação profunda de Scalabrini, do seu constante compromisso político, social e religioso em favor de todos os emigrantes repousa essencialmente na visão espiritual da existência humana, na sua consciência de bispo e cidadão e encontra o seu complemento num objetivo mais árduo e elevado: “a redenção moral, social e  espiritual do emigrante”. Uma obra que se constroi num processo permanente e uma ação para a qual todos somos convocados a realizar com amor, persistência e responsabilidade: Igrejas, Governos, Sociedade Civil e pessoas de boa vontade.
Rio de Janeiro, 19 de Março de 2013
Pe. Mário Geremia CS - Pastoral do Migrante
Arquidiocese do Rio de Janeiro

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