MEMORANDUM DE SCALABRINI “PRO EMIGRATIS CATHOLICIS” À SANTA SÉ (05-05-1905)
DEPOIS
DE SUAS VISITAS PASTORAIS NO BRASIL E
NOS EUA.
Tenho a honra de apresentar à alta consideração de V. E. algumas
considerações e propostas relativas às condições presentes e futuras do
catolicismo nas duas Américas. Observações e propostas que são o fruto de
longos estudos realizados nos locais e mais da experiência de beneméritos
missionários e de ilustres prelados os quais consagraram toda a sua vida para a
difusão do catolicismo naquelas regiões. Nunca como agora, no ato de escrever
sobre tal assunto, me senti tomado de maior comoção e invoquei com maior
intensidade de afeto as luzes do Céu e a graça daquela eloquência que deriva do
esplendor da palavra materializada por cifras e fatos, para poder transmitir
aos outros as minhas íntimas convicções sobre este importantíssimo assunto.
Aquilo que eu vi nas minhas viagens através dos Estados Unidos do Norte e do
Brasil está diante de mim como estivesse presente e as emoções que experimentei
não se apagarão nunca do meu coração.
Visitei cidades populosas e
comunidades nascentes, campos fecundados pelo trabalho e imensas planuras que
não tocadas pela mão do homem, conheci emigrantes que alcançaram o auge da
riqueza, outros que viviam no conforto, e muito mais o obscuro imenso exército
dos miseráveis, que lutam pela vida contra os perigos do deserto, as insídias
dos climas insalubres, contra a rapina humana, sozinhos num supremo abandono,
na penúria de todos os confortos religiosos e civis e de todas as coisas; senti
os corações palpitarem em uníssono com o meu quando eu lhes falava com a
linguagem da pátria em nome da fé comum.
Vi, espetáculo doloroso, a fé se
apagar em milhões de almas por falta de alimento espiritual, e também
infelizmente, por indignidade de seus ministros.
Vi reflorescer em populações inteiras,
como uma primavera de almas, sob o sopro de um santo apostolado, as práticas da
vida cristã e as inefáveis esperanças da religião.
Vi, numa palavra, que se a Igreja de
Deus não alcança naquelas regiões maior importância daquela que tem agora, seja
na liderança da vida coletiva, seja naquela individual; se as almas se perdem
aos milhões, isto se deve em grande parte, mais do que à atividade, embora
grande, dos inimigos da fé viva, à falta de um trabalho religioso bem
organizado e bem adequado a cada ambiente e à escassez do clero, e me convenci
firmemente que é urgente tomar providências e que é grave erro, para não dizer
culpa, de todos nós designados para o governo da Igreja, deixar que se
prolongue um estado de coisas, causa de tanto dano para as almas e que reduz,
perante os inimigos de Deus, a importância social da Igreja Católica.
Um dos fatos da história moderna de
índole político-social e, portanto, religiosa (pois os acontecimentos humanos,
na sua infinita variedade, refletem sempre a unidade psíquica de onde emanam) é
certamente a tomada de posse, pelas nações européias, de todos os continentes
habitados por raças, consideradas retrógradas ou refratárias à civilização e
pertencentes, em matéria de religião, às formas mais baixas de idolatria.
E para permanecer no assunto destas
minhas considerações, a conquista das Américas sobre raças indígenas foi
verdadeiramente surpreendente nos seus efeitos políticos, sociais e religiosos.
A América, todos o sabem, é um dos
Continentes mais vastos do mundo: estende-se por 40 milhões de quilômetros
quadrados, isto é quatro vezes a Europa, e se alonga nos dois hemisférios quase
dividida ao meio pelo equador; ao Norte tocando o círculo polar e ao Sul
chegando até o 60° grau de latitude; de modo que abriga todos os climas, do
tórrido ao gelado, passando por zonas subtropicais e temperadas e possui os
produtos e as riquezas de todos os climas. Banhada por três grandes oceânos,
rica de tudo quanto a fertilidade da terra e a indústria humana pode
proporcionar, a América possui em sua configuração, nos seus golfos, nas suas
baías tão amplas e sinuosas, nos seus grande rios navegáveis por milhões de
quilômetros, os espaços e as vias naturais preparados para os povos pela
Providência, a qual quis reservar por último este berço para a humananidade
civil, aonde as diversas estirpes pudessem se dirigir como a terra prometida
comum e onde estabelecer-se, multiplicar-se e aonde progredir para vantagem
delas e para a maior gloria de Deus. Atualmente a América conta com 18 Nações
independentes governadas com sistema republicano e diversas possessões
coloniais pertencentes a Estados europeus com uma população de cerca 150
milhões; mas distribuindo àquele vasto continente a densidade da população da
Itália (também subtraindo do cálculo as zonas equatoriais e polares) ele poderá
abrigar mais de 2.500 milhões de habitantes, isto é um terço a mais de quantos
existem agora espalhados em toda a superfície da terra.
Todos os povos contribuíram para
formar esta nacionalidade e com os cálculos estatísticos poder-se-ia
estabelecer em qual proporção o sangue de cada povo europeu entra na formação
do tipo americano. Assim os impérios primitivos dos Incas e dos Astecas, dos
Quíchuas, dos Guaranis, às tribos vagantes dos Peles Vermelhas do Norte e às
inúmeras que vagavam no Sul, sem nome e sem paradeiro fixos, sucedem agora
pessoas civilizadas e populosas cidades.
As formas da imigração européia na
América, depois do breve período belicoso
da conquista, são totalmente diferentes
de todas as outra imigrações registradas pela história. Não hordas de
povos bárbaros, que semeiam carnificina e ruínas, mas falanges de pacíficos
trabalhadores que procuram em terras alheias fortuna e enriquecimento. Não mais
o ímpeto de uma enxurrada que arrasta tudo, mas o espraiar plácido das águas
que fecundam. Não mais opressões de povos, mas fusões, adaptações, nas quais as
diversas nacionalidades se encontram, se cruzam, se revigoram e dão origem a
outros povos sobre os quais, embora na diferença, predominam determinados
caracteres e determinadas tendências religiosas e civis como características de
um mesmo povo. Uma tal emigração reflete uma lei da natureza. O mundo físico
como o mundo humano estão sujeitos a esta força misteriosa que agita e mistura,
sem destruir os elementos da vida, que trasporta os organismos nascidos em
determinados pontos e os dissemina pelo espaço, tranformando-os e
aperfeiçoando-os de modo a renovar a cada instante o milagre da criação.
E é em força desta lei que a América,
se tornou, de um século para cá o grande cadinho das velhas nações europeias e
parece destinada a exercitar uma alta influência sobre os destinos da
humanidade. Este grandioso fato econômico e político que principiou no século
XIX, e se prolonga no XX, explica o grande interesse que os Governos europeus
demonstram em acompanhar cada um a sua emigração nas diversas Nações americanas
e no subsidiar sociedades de proteção, de previdência, de beneficência, de
instrução, institutos de emprego, observadores comerciais, em resumo, no
encorajar todas aquelas instituições que transformam a emigração de um país de
um agregado informe em um organismo vivo, no qual palpita o sentimento nacional
dos expatriados e pelo qual se mantém viva a simpatia pela pátria de origem nas
populações americanizadas.
A Igreja Católica é chamada pelo seu
apostolado divino e pela sua tradição secular a imprimir a sua marca a este
grande movimento social que tem por finalidade a organização econômica e a
fusão dos povos cristãos. Como sempre e em todos os lugares, também neste
grande conflito de interesses ela tem uma nobre e bela missão a cumprir,
primeiro promovendo a incolumidade da fé, a sua propagação e a salvação das
almas, para depois, mâe comum e rainha
entre os diversos grupos, assistí-los aparando arestas de cada
nacionalidade, amainando as lutas de interesses das diversas pátrias,
harmonizando, numa palavra, a variedade das origens na pacificadora unidade da
fé.
Ninguém pode contestar à Igreja aquele
lugar de mãe e moderadora dos povos que lhe cabe por direito divino e por
consenso universal, pois todos os católicos acreditam e todos os não católicos
de boa fé admitem a verdade do axioma que onde está a Igreja, ali está a obra
imortal de Deus misericordioso: “Immortale Dei miserentis opus, quod est
ecclesia”.
As considerações, os fatos e as cifras
citadas nos conduzem naturalmente a seguinte pergunta: “O que a Igreja deve
fazer para manter vivo e ativo o sentimento religioso e firme a fé católica
naqueles povos, aos quais se abre o futuro rico de tantas promessas e aos quais
anualmente os povos católicos da Europa enviam tão grande contingente de
imigrantes?” A pergunta é simples, mas não assim a resposta, a qual para ser
adequada, deve ser variada e ao mesmo tempo abrangente, geral e particular;
isto é, geral para a autoridade de quem emana, particular e variada conforme os
ambientes nos quais se deve aplicar; às diversas necessidades às quais
intenciona acudir, às leis, aos costumes de cada país, e diria até, de cada
coletividade cristã que vai se formando. “A fenômenos novos, organismos novos,
adequados à necessidade”.
Scalabrini faleceu no dia 01 de junho
de 1905 e a absorção Institucional foi lenta e progressiva no decorrer da
história.
Pio X em 1908 com a reforma da Cúria
Romana cria novas Congregações entre as quais a Sagrada Congregação
Consistorial. Em 1912 com o moto próprio “Cum omnes catholicos o Pontífice”
cria um “Ofício especial para a
emigração” junto a Congregação Consistorial com a finalidade “de procurar e
proporcionar todo o necessário para a saúde das almas, para melhorar as
condições dos emigrantes de rito latino”.
Pio X em 1914 institui o “Pontifício
Colégio Urbano dos Sacerdotes para a Emigração Italiana”. Eram admitidos
sacerdotes do clero secular por dois anos, em consenso com o próprio bispo, com
objetivo de se preparar (lingua, costumes...) para trabalhar com os emigrantes
italianos.
Bento XV em 1914 pede à Sagrada
Congregação Consistorial que envie aos Ordinários da Itália a Carta “Il dolore
e le preocupazioni” (06-12-1914) na qual estabelece a celebração de um dia
nacional da emigração cujos proventos são destinados a manutenção do Pontifício
Colégio Urbano.
Pio XII coloca junto à Secretaria de
Estado um “Ufficio Migrazioni” com duas secções: uma para a emigração livre e
outra para aquela forzada (refugiados).
Em 1951 aprova a fundação da “Comissão
Católica Internacional para as Migrações” (CCIM) com sede em Genebra.
Em 10 de agosto de 1952 é publicada a
Constituição Apostólica “Exul Familia” carta magna da assistência pastoral aos
emigrados. Com ela se estende a todo mundo católico a celebração do dia anual
para os emigrantes.
Paulo VI no dia 15 de Agosto de 1967
sob a orientação do Vat. II renova a organização da Curia Roma aonde a
Congragação Consistorial assume a denominação de Congregação dos Bispos. Esta
no dia 22-08-1969 publica o moto próprio “Pastoralis Migratorum Cura” e a “Instrução
Nemo est” com objetivo de atualizar a Constituição Apostólica “Exul família” segundo os princípios
conciliares e à nova realidade migratória.
Em 1970 com o moto próprio
“Apostolicae Caritatis” constitui um novo organismo desvinculando da
Congregação dos Bispos o “Setor emigração”, que recebe o nome de “Pontifícia Comissão para a Pastoral das
Migrações e do Turismo”
João Paulo II em 1988 através da
“Constituição Pastor Bonus” realiza a intuição de Scalabrini ampliando a visão
e abrangendo a todas as categorias migratórias com a criação do “Pontifício
Conselho da Pastoral para os migrantes e itinerantes” (Ver artigos 150 e 151 de
PB)
Em 2004 o Pontifício Conselho da
Pastoral para os migrantes e itinerantes lança o último documento que temos
sobre as migrações “Erga migrantes caritas Cristi”, com orientações para toda a
Igreja sobre o cuidado e o acompanhamento dos migrantes. Atualmente a PASTORAL
DO MIGRANTE E A PASTORAL DA MOBILIDADE HUMANA estão presentes e atuantes em
todos os Continentes e se
constituem importantes ações da Igreja
no mundo das migrações, dando-lhe autoridade moral para dialogar com os
governos e a sociedade.
Podemos concluir afirmando que a
motivação profunda de Scalabrini, do seu constante compromisso político, social
e religioso em favor de todos os emigrantes repousa essencialmente na visão
espiritual da existência humana, na sua consciência de bispo e cidadão e
encontra o seu complemento num objetivo mais árduo e elevado: “a redenção
moral, social e espiritual do
emigrante”. Uma obra que se constroi num processo permanente e uma ação para a
qual todos somos convocados a realizar com amor, persistência e responsabilidade:
Igrejas, Governos, Sociedade Civil e pessoas de boa vontade.
Rio de Janeiro, 19 de Março de 2013
Pe. Mário Geremia CS - Pastoral do Migrante
Arquidiocese do Rio de Janeiro
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