Empregado durante muitos meses como funcionário administrativo nos serviços franceses de imigração, o sociólogo Alexis Spire revela os bastidores dessa “máquina de triagem”. Se oficialmente os agentes do Estado simplesmente aplicam a lei, ao mesmo tempo dispõem de certa margem de interpretação dos regulamentos
O guichê não é um lugar de poder como os
outros. Pertencendo à paisagem cotidiana das administrações contemporâneas, é a
encarnação das relações de dominação que se estabelecem entre um utilizador e
uma instituição. No serviço de subvenção familiar, no Polo de Emprego ou ainda
na Previdência Social, ele é a arena na qual os mais desfavorecidos lutam
contra o Direito para fazer valer os seus direitos. Mas, no caso das
administrações encarregadas da imigração, essa relação de dominação burocrática
se multiplica em diversas circunstâncias agravantes: o solicitante estrangeiro
se encontra atado por procedimentos e regras dos quais ele não domina nem a
lógica nem, às vezes, o idioma que as enuncia; quando contesta a decisão, é
frequentemente lembrado do seustatusde não cidadão. Diante dele, o
funcionário detém um poder ligado ao seu conhecimento do regulamento e à
interpretação que está em condições de fazer sobre ele.
Quer
trabalhem no guichê, na instrução dos processos ou na direção de um
departamento, os funcionários encarregados do controle de imigração têm o
sentimento de ser dotados de certo poder, reforçado pelo fato de que o exercem
sobre indivíduos que raramente conhecem seus direitos. A nebulosidade das
regras que devem ser aplicadas pode até aumentar seu poder de apreciação. A
primeira manifestação desse fenômeno aparece nas intermináveis filas de espera
que se formam na porta dos escritórios de imigração e dos consulados. Em outros
serviços públicos, as autoridades se esforçam para reduzir a espera, adaptando
a organização do trabalho ao fluxo de solicitantes. Mas, quando se trata de
imigração, são os estrangeiros que precisam se adaptar às regras da burocracia.
Tudo acontece como se a insuficiência de meios materiais e humanos incitasse os
agentes a colocar sobre os estrangeiros o peso do mau funcionamento da
administração. O tempo de espera constitui a base de uma forma de dominação que
os estrangeiros aceitam mais ou menos facilmente, de acordo com seu status ou
recursos. Os solicitantes de asilo que devem esperar diversas horas, às vezes
no frio, antes de poder ter acesso ao guichê só reclamam muito
excepcionalmente, mesmo quando são mandados embora por causa de um questionário
mal preenchido. Por comparação, os postos que acolhem os migrantes da
Comunidade Europeiatêm filas muito menos longas, maseles elevam mais a voz:
alguns, por exemplo, vão ao guichê perguntar onde está seu processo e reclamam
por ter de perder um dia de trabalho por causa desses procedimentos
administrativos.
Organização
do trabalho
As questões
relacionadas à organização do trabalho também têm um papel determinante. Como
cada agente é obrigado a tratar de um número fixo de processos por dia, alguns
escolhem privilegiar os processos “fáceis”, a fim de terminar mais cedo o dia
de trabalho. Os processos de renovação são, então, sistematicamente preferidos
aos de primeira solicitação. Essa prática pode se articular aos estereótipos
relativos aos temperamentos e qualidades das categorias de estrangeiros. Os
chineses que pedem asilo agradam, pois têm a reputação de apresentar
questionários impecavelmente preenchidos, diferentemente dos estrangeiros
vindos da África subsaariana, conhecidos por ter processos que exigem uma
verificação mais demorada. Numa configuração em que o trabalho burocrático é
avaliado exclusivamente do ponto de vista do número de processos instruídos, os
agentes adotam preferências que respondem em grande parte – mas não somente –
aos estereótipos que incorporaram e às regras profissionais que lhes são
impostas.
A segunda
forma de poder que entra em jogo no guichê reside na capacidade de fazer o
estrangeiro retornar diversas vezes e, assim, atrasar a decisão definitiva. É
uma maneira de, ao mesmo tempo, testar a motivação do solicitante e traduzir um
sentimento de suspeita de outra forma que não a decisão desfavorável. Tal
utilização burocrática do tempo apresenta a vantagem, entre outras, de não ser
objeto de nenhuma contestação. Num contexto de restrição dos fluxos
migratórios, o medo de dar um visto a uma pessoa errada sempre pesa mais do que
o de pronunciar uma decisão de recusa ilegítima. Em um caso, o funcionário
corre o risco de ser repreendido por seu chefe por não ter sido suficientemente
firme, enquanto no outro ele tem poucas chances de receber uma crítica por ter
sido “severo” demais, a menos que o seja por um hipotético julgamento do
tribunal administrativo do qual ele não tomará sequer conhecimento.
O poder dos
agentes de guichê não se limita àsua maneira de administrar os fluxos. Eles têm
também a capacidade de adaptar os textos. Se a diferença entre as instruções
contidas nas circulares e as práticas que delas provêm sempre foi muito
predominante na política francesa de imigração, ela tende a se tornar cada vez
mais importante. Durante os “Trinta Gloriosos” [anos que se seguiram ao
pós-guerra], a imigração não era um “problema político”, e a grande maioria das
circulares permanecia interna à administração: não era levada ao conhecimento
do público e tinha como única função harmonizar as práticas dos funcionários
dentro do conjunto do território.
Politização
da imigração
Desde o
início dos anos 1980, a
imigração passou a ser o foco de uma intensa politização. A maioria dos
documentos oficiais agora se tornoupública e alimenta, no caso dos mais
simbólicos, o debate político. Os altos funcionários que os escrevem se
encontram, então, obrigados a utilizar eufemismos, deixando aos agentes
intermediários o cuidado de aplicar aquilo que não puderam deixar explícito. O
que pode parecer mera interpretação da regra se transforma às vezes em
transgressão pura e simples da lei: em alguns escritórios de imigração, os
agentes exigem dos solicitantes de asilo, por exemplo, que apresentem um
documento atestando sua identidade, mas a Convenção de Genebra os dispensa
disso. O objetivo não é apenas acrescentar um obstáculo ao percurso do
solicitante de asilo, mas principalmente identificá-lo para, em seguida,
organizar melhor sua recusa. Longe de conceberem a regra jurídica como um
imperativo, os agentes a consideram mais como uma obrigação que poderia
prejudicar a eficiência burocrática. Na relação de guichê, o direito ocupa
assim um posto secundário ou até subsidiário.
Sendo o
valor de um guichê proporcional ao prestígio das pessoas que ele acolhe, os
funcionários da imigração são relegados ao nível mais baixo da hierarquia
administrativa. Essa forma de desprezo não é apenas simbólica. Manifesta-se
também pelas condições de trabalho mais difíceis do que em outros lugares: os
serviços encarregados de acolher os candidatos à imigração administram um
número considerável de processos num contexto de penúria de meios materiais e
humanos. Em muitos escritórios de imigração, o centro de recepção aos
estrangeiros fica distante dos outros serviços de acolhida ao público. Outra
separação física opõe o exterior do prédio, onde se formam durante a noite
longas filas de espera propícias aos empurrões e, às vezes, até àsbrigas para
guardar o lugar, e o interior, onde os policiais de uniforme mantêm a ordem à
força.
A
antiguidade dos prédios e do material colocado àdisposição expõe os agentes ao
sentimento de que foram abandonados, ou até sacrificados, pela hierarquia. Os
locais são frequentemente muito pequenos para o número de pessoas que se
apresentam, os instrumentos de trabalho são defeituosos e encontramos as mesmas
imagens de armários entupidos de processos de uma administração à outra. Em
certo serviço de mão de obra estrangeira, por exemplo, a janela que dava para o
exterior foi condenada e a ventilação não funciona mais. Em outro escritório de
imigração, os recém-chegados devem compartilhar o tempo todo os instrumentos
indispensáveis ao trabalho de guichê (tesoura, grampeador, carimbo de data...),
por falta de equipamentos disponíveis em quantidade suficiente.
Estereótipos
A estigmatização que pesa sobre os guichês de
imigração não se mede somente por esses sinais externos de ilegitimidade. Como
em todas as administrações, as mulheres são maioria, mas sua presença não é
condenada aos postos subalternos: a desvalorização associada à acolhida dos
estrangeiros permite a elas, com mais frequência do que em outras esferas
burocráticas, se tornarem chefes de departamento. A equipe oriunda da imigração
ou dos departamentos franceses ultramarinos é também mais numerosa do que em
outros serviços mais prestigiosos, o que é consequência em grande parte da sua
posição dominada na administração: como na indústria, os trabalhos ingratos são
dados àqueles que são mais estigmatizados. A super-representação de
funcionários naturalizados ou oriundos dos departamentos ultramarinos revela
sua estigmatização mais do que exprime a vontade de instrumentalizá-los para se
prevenir contra qualquer acusação de racismo. O statusde relegação
dos serviços encarregados da imigração implica também o recurso constante e
maciço a funcionários temporários como paliativo para a falta de pessoal e como
resposta às necessidades mais urgentes. Nos escritórios de imigração, os
agentes em situação incerta podem compor até um quarto dos efetivos. Alguns
“temporários” têm diversos anos de trabalho, outros são estudantes ou jovens em
condições precárias que fracassaram nos concursos do funcionalismo público.
Remunerados com o salário mínimo por contratos de duração determinada, privados
dostatusde funcionários, eles não estão em posição de contestar suas
condições de trabalho. Aos olhos dos titulares, a presença desses temporários
sem verdadeira qualificação carrega um significado ambivalente. De um lado
lembra a proteção e a estabilidade que o Estado garante aos titulares; de
outro, constitui a prova viva do lugar desvalorizado que ocupa seu trabalho na
hierarquia dos postos da instituição. É, no entanto, graças a essa mão de obra
que muitos serviços conseguem enfrentar o afluxo de processos.
Para além
da diversidade das instituições e administrações em questão, a especificidade
dos guichês da imigração deve-se, então, a uma tensão entre a posição de
relegação que ocupam na hierarquia administrativa e o poder que essa mesma
posição lhes oferece em comparação com outros serviços. Essa tensão faz deles
dominantes dominados. Eles têm o poder de mudar para sempre a vida dos
estrangeiros que recebem; decidem (ou recusam a) autorizá-los a ter acesso ao
território, permitir-lhes exercer esse ou aquele emprego ou ainda se podem ter
o companheiro ou os filhos consigo. No entanto, são submetidos a condições de
trabalho difíceis e confrontados em permanência à penúria de meios materiais e
humanos. Em posição de relegação, os guichês de imigração constituem, então,
singulares locais de poder. Os estrangeiros que vão até lá pedir um visto ou
uma permanência mergulham em um clima de insegurança jurídica que constitui a
maior garantia de sua docilidade. Os que entram ali não têm, na maioria das
vezes, a menor condição de saber se irão sair com um visto, uma convocação ou
um convite para deixar o território.
*Alexis Spire, sociólogo, é autor
de Accueillir ou reconduire. Enquête sur les guichets de l’immigration[Acolher
ou reconduzir. Pesquisa sobre os guichês da imigração], Raisons d’Agir, Paris,
2008.
Le Monde Diplomatique Brasil:
NIEM
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