terça-feira, 28 de agosto de 2012

Medicalizando a política: a saúde e a doença nos imigrantes



Vários são os fenômenos, aparentemente isolados, que ao serem analisados de forma aprofundada desvelam, em realidade, uma relação entre as políticas punitivas e/ou de controle populacional dos Estados e a lógica econômica neoliberal.
Quando se analisa, por exemplo, a questão da imigração na Europa, a perspectiva de outrora marcadamente punitiva do Estado converteu-se nos últimos anos num discurso da "integração" baseado em políticas multiculturais, em especial pelo crescimento dos fluxos migratórios para os países que compõem a União Européia, marcada pela própria necessidade dessa  mão-de-obra em muitos setores da economia. Na área da saúde, dentre muitas outras incluindo a política carcerária, esta relação é evidente.
Através das práticas psiquiátricas ligadas a conceitos da biomedicina o imigrante que ingressa na Europa - principalmente aquele considerado ilegal ou irregular - vem sendo sistematicamente rotulado/rebaixado e tratado sob nosologias e terapêuticas que o distinguem dos cidadãos comunitários, ora sendo visto como um ser exótico mesmo nos projetos de psiquiatria transcultural, ora como um ser desprovido de autonomia e racionalidade para conduzir a sua própria vida.
Assim, o imigrante pobre passa a ser visto como um problema não apenas em termos políticos, econômicos e sociais, mas também, começa a ser esquadrinhado pelo campo da saúde mental. Em 2005 o psiquiatra Joseba Achotegui publica um artigo científico dando conta da descoberta de uma síndrome que acomete preferencialmente os imigrantes que se encontram em situação ilegal ou irregular.
Neste caso, o acesso às condições materiais é preponderante para o afastamento ou proximidade do risco de se estar doente. Achotegui defende que todos os imigrantes, assim como seus filhos (por inerência), estariam destinados a obter, mais cedo ou mais tarde, esta síndrome. Os imigrantes ilegais seriam enfermos desde o início de suas "aventuras" migratórias. Apesar do "curioso detalhe" de que esta síndrome ter sido descoberta no mesmo período em que barcos de pequeno porte repletos de pessoas atravessavam de Ceuta e Norte da África para a Europa sem as devidas permissões, ficando claras as influências do contexto político na produção do saber psicopatológico. Trata-se assim de reduzir as experiências migratórias a um fenômeno potencialmente traumático, cujas emoções derivadas deste percurso são especialmente vividas pelos imigrantes não-europeus.
Não é um dado irrelevante que a Síndrome de Ulisses passou, desde então, a ser promovida e utilizada como base de abordagem a imigrantes extra-comunitários pelo sistema de saúde na Espanha e, crescentemente, por toda a Europa. Tal perspectiva nos permite compreender a permanência do pensamento colonial nas práticas políticas sanitárias contemporâneas, que diante da presença dessa população específica e de baixa renda reproduz o estigma do bárbaro.
Pensamos, então, que desvelar as raízes desse pensamento abissal, fundante dessa relação entre dominantes (europeus) e dominados (estrangeiros), expressão de uma violência simbólica e física, torna-se um imperativo para compreensão não apenas dos fenômenos atuais no campo da imigração (alvo ora de políticas de criminalização com o exercício da prisão/deportação, ora alvo de controle sanitário do corpo na busca de uma otimização dessa mão-de-obra barata), mas também nos fornece elementos para o entendimento de um quadro global marcado pelo que muitos analistas denominam de governação neoliberal, estado penal e/ou estado de exceção.
Tal cenário se agudiza quando temos em mente o crescimento global dos discursos da lei e da ordem explicitados tanto por trabalhos acadêmicos, quanto nos meios midiáticos. Em nome da segurança da sociedade, tornam-se necessárias políticas que contenham de forma efetiva as massas de "indesejáveis", que se sustentarão com uma ofensiva ideológica favorável à penalização da pobreza - se não pelo encarceramento, pela sua patologização.
O medo e a insegurança tornam-se categorias justificadoras de políticas de segurança mais ofensivas e acabam por legitimar as práticas policiais/penais/sanitárias. A proliferação do sentimento de medo, que vê o Outro como um eterno inimigo a ser combatido, se potencializa por discursos midiáticos constante, responsável pela reprodução de variadas práticas/discursos de exclusão. A sociedade disciplinar foi paulatinamente substituída pela sociedade de controle, que se apresenta plena diante de novas tecnologias que permitem a monitorização do indivíduo a tempo total, bem como o desenvolvimento de novas drogas (fármacos) que potencializam o controle do corpo.
A imigração traz o desafio contemporâneo de novas formas de controle que não passam apenas pelo encarceramento, mas que ultrapassam os muros dos hospitais expandindo-se ao quotidiano e à vida privada transformando  o corpo "problemático" em um potencial consumidor de novos fármacos. O protótipo moderno para a sociedade disciplinar retrata um processo definido pelo investimento do Estado em formatar o indivíduo com o corpo São - o corpo útil à produção e dócil politicamente - gerido por uma biopolítica da população.
O inimigo (em termos genéricos) é criado pela contraposição ao estabelecimento da normalidade. A "limpeza" social desde o princípio dos Hospitais Gerais, em meados do século XVII, já mantinha o propósito de afastar socialmente o inerte, o vagabundo, o alcoólico, prostitutas, doentes e qualquer indivíduo que não fosse a representação dos valores necessários ao trabalho. Atualmente, o discurso de well-being no domínio da saúde promove a penalização (e legitima processos de criminalização jurídica) de comportamentos e de grupos através da retórica de domínio científico do corpo e da mente. Esta penalização não é direta, passando, a priori, pela culpabilização do indivíduo pelo mal que carrega. O indivíduo passa, não só, a ser socialmente obrigado a tratar-se, mas desejoso de que isso aconteça. Nossa intenção está em discutir, nos limites desse trabalho e a partir da diagnose da Síndrome de Ulisses, as permanências e os novos cenários globais de controle social e da violência destinados à população imigrante na U.E.


Ferreira, J. Flávio (CES/Coimbra)
Vieira, Fernanda Maria (UFRJ)

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