Vários são os fenômenos, aparentemente isolados, que ao
serem analisados de forma aprofundada desvelam, em realidade, uma relação entre
as políticas punitivas e/ou de controle populacional dos Estados e a lógica
econômica neoliberal.
Quando se analisa, por exemplo, a questão da imigração
na Europa, a perspectiva de outrora marcadamente punitiva do Estado
converteu-se nos últimos anos num discurso da "integração" baseado em
políticas multiculturais, em especial pelo crescimento dos fluxos migratórios
para os países que compõem a União Européia, marcada pela própria necessidade
dessa mão-de-obra em muitos setores da economia. Na área da saúde, dentre
muitas outras incluindo a política carcerária, esta relação é evidente.
Através das práticas psiquiátricas ligadas a conceitos
da biomedicina o imigrante que ingressa na Europa - principalmente aquele
considerado ilegal ou irregular - vem sendo sistematicamente rotulado/rebaixado
e tratado sob nosologias e terapêuticas que o distinguem dos cidadãos
comunitários, ora sendo visto como um ser exótico mesmo nos projetos de
psiquiatria transcultural, ora como um ser desprovido de autonomia e
racionalidade para conduzir a sua própria vida.
Assim, o imigrante pobre passa a ser visto como um
problema não apenas em termos políticos, econômicos e sociais, mas também, começa
a ser esquadrinhado pelo campo da saúde mental. Em 2005 o psiquiatra Joseba
Achotegui publica um artigo científico dando conta da descoberta de uma
síndrome que acomete preferencialmente os imigrantes que se encontram em
situação ilegal ou irregular.
Neste caso, o acesso às condições materiais é
preponderante para o afastamento ou proximidade do risco de se estar doente.
Achotegui defende que todos os imigrantes, assim como seus filhos (por
inerência), estariam destinados a obter, mais cedo ou mais tarde, esta
síndrome. Os imigrantes ilegais seriam enfermos desde o início de suas
"aventuras" migratórias. Apesar do "curioso detalhe" de que
esta síndrome ter sido descoberta no mesmo período em que barcos de pequeno
porte repletos de pessoas atravessavam de Ceuta e Norte da África para a Europa
sem as devidas permissões, ficando claras as influências do contexto político
na produção do saber psicopatológico. Trata-se assim de reduzir as experiências
migratórias a um fenômeno potencialmente traumático, cujas emoções derivadas
deste percurso são especialmente vividas pelos imigrantes não-europeus.
Não é um dado irrelevante que a Síndrome de Ulisses
passou, desde então, a ser promovida e utilizada como base de abordagem a
imigrantes extra-comunitários pelo sistema de saúde na Espanha e,
crescentemente, por toda a Europa. Tal perspectiva nos permite compreender a
permanência do pensamento colonial nas práticas políticas sanitárias
contemporâneas, que diante da presença dessa população específica e de baixa
renda reproduz o estigma do bárbaro.
Pensamos, então, que desvelar as raízes desse pensamento
abissal, fundante dessa relação entre dominantes (europeus) e dominados
(estrangeiros), expressão de uma violência simbólica e física, torna-se um
imperativo para compreensão não apenas dos fenômenos atuais no campo da
imigração (alvo ora de políticas de criminalização com o exercício da
prisão/deportação, ora alvo de controle sanitário do corpo na busca de uma
otimização dessa mão-de-obra barata), mas também nos fornece elementos para o
entendimento de um quadro global marcado pelo que muitos analistas denominam de
governação neoliberal, estado penal e/ou estado de
exceção.
Tal cenário se agudiza quando temos em mente o
crescimento global dos discursos da lei e da ordem explicitados tanto por
trabalhos acadêmicos, quanto nos meios midiáticos. Em nome da segurança da
sociedade, tornam-se necessárias políticas que contenham de forma efetiva as
massas de "indesejáveis", que se sustentarão com uma ofensiva ideológica
favorável à penalização da pobreza - se não pelo encarceramento, pela sua
patologização.
O medo e a insegurança tornam-se categorias
justificadoras de políticas de segurança mais ofensivas e acabam por legitimar
as práticas policiais/penais/sanitárias. A proliferação do sentimento de medo,
que vê o Outro como um eterno inimigo a ser combatido, se potencializa por
discursos midiáticos constante, responsável pela reprodução de variadas
práticas/discursos de exclusão. A sociedade disciplinar foi paulatinamente
substituída pela sociedade de controle, que se apresenta plena diante de novas
tecnologias que permitem a monitorização do indivíduo a tempo total, bem como o
desenvolvimento de novas drogas (fármacos) que potencializam o controle do
corpo.
A imigração traz o desafio contemporâneo de novas
formas de controle que não passam apenas pelo encarceramento, mas que
ultrapassam os muros dos hospitais expandindo-se ao quotidiano e à vida privada
transformando o corpo "problemático" em um potencial consumidor
de novos fármacos. O protótipo moderno para a sociedade disciplinar retrata um
processo definido pelo investimento do Estado em formatar o indivíduo com o
corpo São - o corpo útil à produção e dócil politicamente - gerido por uma
biopolítica da população.
O inimigo (em termos genéricos) é criado pela
contraposição ao estabelecimento da normalidade. A "limpeza" social
desde o princípio dos Hospitais Gerais, em meados do século XVII, já mantinha o
propósito de afastar socialmente o inerte, o vagabundo, o alcoólico, prostitutas,
doentes e qualquer indivíduo que não fosse a representação dos valores
necessários ao trabalho. Atualmente, o discurso de well-being no domínio da saúde promove a penalização (e legitima
processos de criminalização jurídica) de comportamentos e de grupos através da
retórica de domínio científico do corpo e da mente. Esta penalização não é
direta, passando, a priori, pela
culpabilização do indivíduo pelo mal que carrega. O indivíduo passa, não só, a
ser socialmente obrigado a tratar-se, mas desejoso de que isso aconteça. Nossa
intenção está em discutir, nos limites desse trabalho e a partir da diagnose da
Síndrome de Ulisses, as permanências e os novos cenários globais de controle
social e da violência destinados à população imigrante na U.E.
Ferreira, J. Flávio (CES/Coimbra)
Vieira, Fernanda Maria (UFRJ)
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