segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Os apátridas

Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS

De alguma forma, somos todos apátridas. Experimentamos no corpo e na alma a condição de estrangeiros na face da terra, a caminho de uma pátria definitiva. Órfãos de um paraíso perdido ou protagonistas de um reino a ser construído, seguimos a passos titubeantes em permanentes avanços e recuos. Errantes por caminhos nem sempre conhecidos e quase sempre inóspitos, às vezes prevalece a saudade do passado, outras vezes a ansiedade do futuro.
Mas essa condição de apátridas é infinitamente mais pungente naqueles que, pelos mais diversos motivos, se vêem forçados a deixar o solo onde estão enterrados seus antepassados, e aventurar-se por uma terra estrangeira. Emigrantes e imigrantes, refugiados, deportados e exilados, itinerantes e ciganos, marítimos e trabalhadores dos caminhos, entre tantos outros. Uma pequena parte sofre o golpe da separação ou da despedida, mas lentamente logra recuperar-se e restabelecer a própria dignidade. Com o passar do tempo, adquire meios para desfrutar uma razoável cidadania. Poderíamos chamá-los de vencedores!

A grande maioria, entretanto, após o primeiro golpe, segue vítima de outros cada vez mais graves, especialmente quando se vê necessitada de documentação, trabalho, habitação, escola para os filhos, saúde, etc. Sem papéis, em situação irregular, é tida como população imigrante, anônima, clandestina – não raro vulnerável a todo tipo de exploração e a uma política de criminalização. Mais do que derrotados, em geral não tiveram maiores oportunidades.

Pior ainda é a sorte dos que ficam pelo caminho. Entre o pólo de origem e o pólo de destino, são inúmeras as barreiras que se levantam a quem resolve migrar. Não conseguindo vencê-las boa parte perece, por exemplo, nos desertos inóspitos dos Estados Unidos, nas florestas selvagens da África, nas ondas bravias do mar Mediterrâneo ou do Caribe, nas travessias perigosas da Ásia. Ou então se quedam em países considerados como lugares de trânsito. Nesta perspectiva, os 72 assassinados em San Fernando, estado de Tamaulipas, México, representam uma pequena amostra dos milhões de mártires sem rosto, sem nome e sem família, que tombam pelos caminhos árduos da emigração/imigração.

Uma retrospectiva às chamadas migrações históricas, na segunda metade do século XIX e primeiras décadas do século XX, mostra que elas seguiam um curso mais ou menos ordenado, com origem e destino previamente determinado, e com fins a uma instalação definitiva. Os imigrantes atravessavam os mares para estabelecer-se em no novo continente e aí cultivar a terra, erguer cidades e criar suas famílias. Hoje, em sua grande maioria, os deslocamentos migratórios são antes movimentos repetidos e erráticos, muitas vezes desordenados, motivados pela fuga da pobreza, da miséria e da fome, das catástrofes “naturais”, dos conflitos armados, e assim por diante. Fuga que nem sempre se converte em busca!

As migrações hodiernas são, ao mesmo tempo, mais intensas, contadas em centenas de milhões de pessoas que se deslocam em todas as partes do mundo; mais diversificadas, envolvendo novos povos, nações e culturas; e mais complexas, onde as rotas se cruzam e recruzam com maior freqüência. Longe de se estabelecerem de forma definitiva, as pessoas tendem a seguir migrando, uma, duas, três ou mais vezes. É um vaivém circular ou pendular, temporal e periódico, em busca de oportunidades de trabalho ou de uma sobrevivência que se revela cada vez mais precária. Um exército de trabalhadores, estimados em mais de 500 milhões, girando ao sabor dos ventos da economia.

Os vôos curtos, da zona rural para a zona urbana, podem ser seguidos de vôos médios, em direção à capital do próprio país ou à capital do país vizinho. Em muitos casos, ambos constituem etapas para vôos mais longos e arriscados, com fôlego para atravessar oceanos e continentes e que, em numerosos casos, escravizam os migrantes a uma dívida impagável. É difícil o país que atualmente não esteja marcado pela migração, como lugar de origem, de trânsito ou de destino, ou tudo isso combinado.

Outra característica do fenômeno migratório é que, no passado mais ou menos remoto, a mobilidade geográfica era, com freqüência, sinônimo de mobilidade social. Migrar era correr ao encontro de um futuro mais promissor. A migração costuma abrir veredas para carreiras insuspeitadas. A ousadia de deixar a terra, a família e os amigos, temperada pela coragem, abrigava normalmente uma promessa de vida nova. Hoje em dia, ao contrário, em suas idas e vindas, os migrantes tendem antes a descer no nível social. Partir pode representar não um ganho, mas uma queda progressiva e sem volta. Se em algumas décadas atrás a migração podia simbolizar um trampolim para a ascensão social, atualmente não é raro que ela inicie um processo de descida para o “fundo do poço”, ou seja, para os porões mais sórdidos e ocultos da sociedade.

Felizes daqueles que, em tais casos, ainda conseguem retornar à família e ao próprio país. Grande parte não dispõe de meios para isso, enquanto muitos consideram vexatório um regresso com os bolsos vazios. A vergonha pode mantê-los ocultos da própria família por longos meses ou anos. A migração, que se apresentava como uma luz no fim do túnel para uma porção de jovens sadios e cheios de energia, muitas vezes termina em becos sem saída. Os sonhos e esperanças se estilhaçam contra os muros da fronteira ou contra as crises econômicas, restando apenas os escombros de um amargo pesadelo. Pesadelo de desemprego e subemprego, de perseguição policial, da disputa entre as gangues do tráfico, da prisão e até da morte.

Resulta que, no cenário do fenômeno migratório, a cada movimento pode aprofundar-se a condição de apátrida. Apátridas nos países de destino, porque falam outra língua, têm outros costumes e vêem “roubar” o trabalho dos nativos; apátridas nos países de trânsito, porque causam perturbações, podem ser portadores de droga, sempre intrusos e indesejados; apátridas nos países de origem, porque desde o momento que partiram já são considerados estrangeiros. Pátria aqui equivale a dispor de um mínimo de condições de vida para manter a própria dignidade de ser humano. Os apátridas o são na medida em que, vítimas das crises econômicas, dos traficantes de seres humanos, da exploração trabalhista e sexual e de tantas outras armadilhas, se tornam incapazes de garantir uma cidadania digna e justa.

Na saída e na chegada, cá e lá, carregam o estigma de apátridas. Mas também, ao romper fronteiras, contribuem para a idéia de uma pátria desvinculada de um Estado. Uma pátria acima das leis e dos limites territoriais da nação. Uma pátria universal.

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