Já aqui escrevi que o Natal — enquanto história,
enquanto narrativa, enquanto midrash — nasceu contra o preconceito. O evangelho
da infância, apenas constante das narrações de Mateus e de Lucas — de resto,
largamente incompatíveis entre si —, está carregado de mensagens contra o
preconceito.
2. A mensagem mais divulgada é a mensagem contra o
preconceito social: Jesus nasce em condições altamente precárias. A sua família
é notoriamente uma família humilde e pobre. Está transitoriamente deslocada.
Procura debalde um alojamento para garantir o parto em condições mínimas de
dignidade, mas resta-lhe apenas um estábulo: “E envolveu-o em panos, e deitou-o
numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na estalagem” (Lc 2,7). Jesus
nasce na mais desconcertante pobreza e fragilidade. Esta circunstância, só por
si, é todo um evangelho. Jesus veio para os mais pobres, para os frágeis, para
os que são rejeitados.
3. A segunda mensagem dirige-se ao preconceito
territorial, do tipo nacional ou tribal. Jesus nasce fora da terra da sua
família, que era Nazaré, na Galileia. Maria dá à luz em Belém da Judeia, terra
de David. Essa localização garante o cumprimento da profecia que vem do Antigo
Testamento, embora nada nos assegure historicamente o acerto do lugar de
nascença. José e Maria ter-se-iam deslocado a Belém, por José ser descendente
de David, para efeitos de cumprir o recenseamento ordenado por Roma. Nesta
precisão, seja ela factual, seja ela romanceada, cabe todo um programa:
retratar Jesus como o ungido, como o Messias, por ter nascido na cidade
assinalada pelas profecias. Mas cabe também um outro sentido, mais prosaico,
mas muito presente nos ensinamentos futuros de Jesus: Ele nasce fora da sua
terra. É um deslocado: não tem casa nem lar para nascer. Se a isto somarmos a
referência de Mateus à fuga para o Egipto, para evitar a perseguição e a
matança de Herodes, então reforça-se a ideia de deslocação. O episódio da
matança dos primogénitos e da fuga para o Egipto é uma recuperação, na vida de
Jesus, da saga de Moisés. E, por isso, a sua verosimilhança é pequena. Mas o
seu significado e o seu sentido são transcendentes. Jesus e a família de Nazaré
também foram refugiados e foram refugiados por perseguição política e
político-religiosa. Se o nascimento em Belém, afirmado por Mateus e por Lucas,
só por si, já rompe com o preconceito tribal ou nacional, o refúgio no Egipto —
só narrado por Mateus — rompe-o definitivamente. Jesus nasce contra o
preconceito territorial: o seu Natal não discrimina contra os que vêm de fora e
contra os que têm de ir para fora. Se Jesus nasceu fora, longe de casa, e se
teve de fugir para o estrangeiro, logo na primeira idade, como poderia o seu
ensinamento forjar as bases de uma discriminação territorial ou nacional?
4. A terceira mensagem é complementar das duas anteriores, mas é ainda
mais global e mais universal: Jesus nasce contra o
preconceito racial e Jesus nasce para todos, mesmo para os cultos e ricos.
Evidentemente esta mensagem alimenta-se essencialmente da viagem e da visita
dos magos do Oriente. A tradição diz que são três e que seriam provenientes de
diferentes partes, pese embora Mateus se refira a eles sem fornecer esses
detalhes. O número três é decerto uma sugestão das três riquezas oferecidas —
ouro, incenso e mirra —–, presumindo que a cada uma delas correspondesse uma
pessoa. E naturalmente casa com o lugar sagrado que o número três ocupa na
simbologia cristã que vai da santíssima trindade aos três dias de ressurreição,
passando pelos três anos de vida pública e pelos 33 anos da vida de Jesus.
Pontifica aqui realmente a ideia de que vieram de longe, pois ela aponta
inequivocamente para a vocação de universalidade. Agora, não são apenas os
pastores de Lucas, gente das redondezas. Agora são também os sábios de Mateus,
gente cosmopolita e viajada. Mas mais do que isso: gente culta e bem
relacionada, a ponto de ser recebida por Herodes e de suscitar a reunião dos
príncipes, dos sacerdotes e dos escribas do povo (Mt 2,4). Jesus veio para
todos. E, a julgar pelas riquezas oferecidas, veio também para os ricos e os
poderosos. A sua universalidade não é apenas ligada ao território, à origem, à
raça; é outrossim social. Ele veio para os pobres, mas não só para eles.
Insiste-se: veio para todos. É esse o lugar mítico e místico dos magos.PAULO RANGEL
Portugal
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