Depois de
temporadas vivendo em Madri e Nova York, o escritor português Hugo Gonçalves
chegou em 2011 ao Rio, atraído pelo estilo de vida da cidade, pela exuberância
do país e pela perspectiva de um Brasil em ascensão, distante do clima de
melancolia e desistência que via contaminar seu país natal com a crise
econômica.
O encantamento
gradualmente foi vencido pelas dificuldades do dia a dia e pelas mudanças no
cenário político e econômico, desconstruindo aquele otimismo, que, assim como a
Gonçalves, atraíra uma nova onda de imigrantes europeus para o Brasil nos anos
do boom – tão bem simbolizado pela capa da revista britânica Economist com o Cristo Redentor decolando do Corcovado.
Gonçalves se
despediu do Rio, da casa onde morava na Gávea, na zona sul, e dos amigos
cariocas em março deste ano, exemplificando uma reversão que começa a ser
observada no fluxo de imigrantes para o Brasil.
Depois de anos de
crescimento vertiginoso, o número de estrangeiros que vieram viver, estudar ou
trabalhar no país teve a primeira queda desde 2009. No ano passado, 99.796
estrangeiros entraram no Brasil, contra 102.366 em 2013, de acordo com
levantamento da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getulio
Vargas (DAPP/FGV).
A diferença
numérica é pequena, mas interrompe uma trajetória de aumento expressivo que
vinha sendo observado ano a ano e que havia feito a entrada de estrangeiros
dobrar de 50 mil para 102 mil entre 2009 e 2013.
Os números foram
compilados a partir de uma base de dados da Polícia Federal, que registra todas
as entradas de estrangeiros com vistos que não sejam o de turista.
Rumo a Lisboa
"Quando
cheguei, era o garoto completamente deslumbrado e apaixonado por todas as coisas
belas do Brasil. E são muitas, eu sublinho isso", lembra Gonçalves.
"Mas quando vim embora, senti-me um pouco como o homem que já passou pelas
desilusões da vida. Foi como o fim de um casamento."
Os anos no Brasil
renderam dois livros – um deles compilando as crônicas que escreveu durante o
período aqui, e o outro com um enredo baseado justamente no contexto da
diáspora de portugueses com a crise na Europa e na vida desses imigrantes no
Rio – intitulado Enquanto Lisboa arde, o Rio de
Janeiro pega fogo .
Aos 39 anos,
Gonçalves está de volta a Lisboa (embora ainda esteja no "Rio de
Janeiro" em seu perfil do Skype) e agora vê o movimento começar a se
inverter: amigos brasileiros dizendo que querem ir viver em Portugal – alguns
já chegando, outros fazendo movimentos para ir.
Falta política
estratégica
Bárbara Barbosa,
pesquisadora da DAPP/FGV, diz que é cedo para falar em uma tendência de queda
na migração para o Brasil, sendo preciso esperar mais alguns anos para ver como
o fluxo vai se comportar.
“A tendência pode
ser de estabilização, depois de anos em que tivemos uma subida repentina de
entrada de imigrantes, o que incluiu a entrada de muitos grupos com vistos
humanitários, sobretudo de haitianos”, afirma Barbosa.
“A recuperação dos
países frente à crise de 2008 também pode ter tido influência. Se a situação
melhorou, isso leva menos pessoas a quererem sair de seus países”, considera.
Mas o levantamento
é parte de uma pesquisa mais ampla encomendada pelo Ministério do Trabalho
justamente para desenvolver políticas para atrair mais imigrantes ao Brasil –
de olho sobretudo na entrada de mão de obra qualificada para impulsionar a
economia.
"O Brasil
sofre há muito tempo do deficit de competências, e esse estudo só corrobora a
necessidade de se ter uma política de estratégica, de Estado, para atrair mão
de obra qualificada – e isso inclui desde pessoas com curso superior a
profissionais com conhecimento técnico muito específico", afirma Margareth
da Luz, também da Fundação Getulio Vargas.
A pesquisa da FGV
levantou dados sobre o contingente de trabalhadores imigrantes no Brasil, as
dificuldades que enfrentam, os entraves apresentados pela atual legislação e as
estratégias adotadas por países que têm políticas específicas para buscar
atrair mão de obra estrangeira qualificada.
Os resultados estão
sendo apresentados nesta terça-feira em Brasília, no seminário "Imigração
como Vetor de Desenvolvimento do Brasil", promovido pela FGV e pelo
ministério para discutir formas de aprimorar a política de imigração no país.
"Hoje existe
uma disputa internacional de países por esse capital humano, sobretudo os
países desenvolvidos, que já estão em processo de envelhecimento (da população)
há muito tempo. O Brasil também está entrando em fase de envelhecimento e não
pode ficar para trás", considera a doutora em antropologia.
Apesar de ter sido
constituído por diferentes levas de imigração ao longo de sua história e pela
entrada forçada de escravos africanos, o Brasil do presente é um país fechado.
A legislação que
rege a entrada e permanência de imigrantes ainda é o Estatuto do Estrangeiro,
redigido pelo governo João Figueiredo em 1980, em plena ditadura militar.
Mais fácil casar?
A lei é calcada em
uma visão ultrapassada de imigrantes como uma potencial ameaça, afirma Paulo
Sérgio de Almeida, presidente do Conselho Nacional de Imigração (CNIg), do
Ministério do Trabalho.
"Há muitos
anos que essa lei não condiz mais com a realidade do país, está superada. Há
uma necessidade de aprovar com urgência a nova lei."
Almeida refere-se
ao projeto da Lei da Imigração, aprovado em julho deste ano pela Comissão de
Relações Exteriores do Senado. O projeto, afirma, corrige distorções atuais,
transferindo o foco da questão da segurança nacional para priorizar os direitos
do imigrante, além de criar um sistema de vistos de trabalho e residência mais
flexível.
A nova lei
possibilitará emitir de vistos de trabalho sem necessidade de vínculo
empregatício. No sistema atual, os estrangeiros de fora do Mercosul precisam de
um contrato em mãos ainda no exterior para solicitar um visto de trabalho e
residência.
Por essas e outras,
muitos tentam o caminho sem documentos – o casamento ainda é uma das
"soluções" mais fáceis para se estabelecer no país.
O projeto visa
ainda reduzir as exigências e burocracias que costumam assustar estrangeiros e
empresas que buscam patrocinar a vinda de expatriados para o Brasil.
De acordo com
estudo de 2015 da consultoria canadense Brookfield Global Relocation Services,
o Brasil é o segundo país que mais impõe dificuldades aos expatriados, atrás
apenas da China.
Almeida afirma que
atrair profissionais de alta qualificação é de "grande relevância"
para promover o avanço tecnológico e contribuir com o desenvolvimento.
O desafio do 'fico'
Porém, atrelada à
capacidade de atrair esses imigrantes, estaria também a de mantê-los aqui. E,
assim como na experiência do português Hugo Gonçalves, a espanhola Maite Nef
Moreno demonstra ser algo longe de acontecer automaticamente.
Maite é
gerente-geral de uma agência do banco Santander e chegou ao Rio "com todo
o entusiasmo" em 2012, parte de um grupo de cerca de 50 estrangeiros que a
empresa "importou" para trabalhar no Brasil, vindos de países como
México, Portugal, Chile, Espanha.
Agora, está prestes
a embarcar para Barcelona para entrevistas de emprego visando à sua realocação
– ela quer voltar para a Espanha ou ir trabalhar para o banco em algum outro
país. Maite acredita que, como expatriada, teria oportunidade de ascensão mais
rápida na empresa se permanecesse aqui. Mas cansou do Rio e do Brasil.
Sua queixa é
sobretudo de choque cultural no ambiente de trabalho, onde é responsável por
uma equipe de 14 pessoas. "Para mim está sendo muito complicado trabalhar
com brasileiros. É um desgaste muito grande. Eu estranho muito a falta de
compromisso, seriedade, profissionalismo, ambição de crescimento profissional.
Para mim são coisas básicas."
Choque de
burocracia
A outra grande dor
de cabeça é comum tanto a estrangeiros quanto a brasileiros: os trâmites
burocráticos que desafiam os limites da paciência. "É sempre um problema.
Você nunca consegue resolver nada de uma vez. Sempre falta um papel. Sempre tem
algum motivo para voltar no dia seguinte", diz Maite.
Hugo Gonçalves
perdeu as contas da quantidade de vezes que teve que ir para a Polícia Federal
resolver questões de seu visto. O atendimento para estrangeiros é realizado
apenas no Aeroporto Internacional do Galeão, a cerca de 20 km do centro da
cidade.
"Passada a
altura do deslumbramento, da paixão, da exuberância que o Brasil tem, a vida do
dia a dia assentou, caiu em mim, e comecei a ver que, por trás dessa película
de exuberância, a vida é muito dura. Comecei a perceber a agressividade latente
na sociedade; e não falo só de violência, basta você andar no trânsito para sentir
a agressividade. Ou ler o jornal e ver tantos casos de acidentes causados pela
negligência do poder público, pela falta de noção do outro. Isso começou a me
desgastar muito."
"Ao fim de
praticamente quatro anos eu estava muito cansado de morar aí. Todos os dias eu
sentia que passava mais tempo a resolver problemas do que propriamente
vivendo."
Gonçalves ri ao
lembrar dos comentários que ouviu de amigos cariocas quando passou dois meses
de férias no Rio, em 2010, e foi contaminado pela vontade de ficar.
"Todos diziam
que passar férias no Rio é muito diferente de morar no Rio. Mas, como todos os
apaixonados, eu estava meio cego."
Oportunidades
díspares
Do grupo de 50
estrangeiros com quem chegou, Maite estima que 70% já tenham voltado, e acha
que só uma ou duas pessoas vão ficar no longo prazo.
"O país não
convida a ficar. Tem uma crise econômica aparecendo, não dá para ter uma boa
expectativa de crescimento. E acho que o pior ainda está para vir. Depois da
Olimpíada ainda vai ser muito pior. Todo país tem uma crise depois da
Olimpíada", diz ela, natural de Barcelona, que sediou os jogos em 1992.
Maite afirma que a
experiência no Brasil foi muito rica e não se arrepender de nada, mas mesmo a
lição de vida que levará para casa tem uma nota amarga.
"Eu aprendi
muito aqui. Eu sempre acreditei que todo mundo tem o que merece, porque todo
mundo tem uma oportunidade. No Brasil eu aprendi que não, nem todo mundo tem
uma oportunidade. Isso mudou a minha visão de mundo", diz a espanhola.
Paulo Sérgio de Almeida,
do CNIg, afirma que não se pode negar a influência do cenário econômico sobre
os fluxos migratórios – seja no Brasil ou em qualquer parte do mundo.
Ele diz que número
de migrantes não tem tido o aumento consistente que vinha tendo, e que a crise
atual pode de fato levar a uma diminuição no número de imigrantes.
Mas ele vê a
aprovação do novo projeto de lei como o passo mais urgente para abrir caminhos
para a entrada – e eventual permanência – de estrangeiros.
"Se você não
tem uma porta de entrada na qual as pessoas possam bater, não adianta debater
as outras questões. As pessoas simplesmente não conseguem entrar."
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