Mesmo com diploma de faculdade ou até mestrado, haitianos acabam em subempregos por falta de oportunidades
"O que eu ganho é para pagar
aluguel e comer. Isso não é vida", conta Berhman Garçon, haitiano, de 36
anos, formado em jornalismo pela Université Polyvalente d'Haiti e mestrando em
antropologia pela Unicamp.
Apesar dos cursos universitários, ele
nunca conseguiu um emprego em sua área profissional no Brasil, desde de que se mudou
para Campinas há cerca de cinco anos. Para sobreviver, conta que já trabalhou
como garçom em restaurante e recepcionista em hotel. No momento, está
desempregado, vivendo de bicos e de trabalhos esporádicos de edição de vídeo
que realiza para clientes no exterior.
Ele conta que trabalhava como diretor
de programação de TV no grupo Rádio Tele Megastar e que migrou para o Brasil
após o terremoto de 2010, quando "a situação piorou muito" no Haiti e
os pagamentos começaram a atrasar.
Sua história se repete com a grande
maioria dos imigrantes haitianos que possuem formação de ensino superior,
revela uma pesquisa da Fundação Getúlio Vargas à qual a BBC Brasil teve acesso
com exclusividade.
A partir da análise dos dados
oficiais do Ministério do Trabalho, os pesquisadores da FGV constataram que uma
parcela muito pequena dos trabalhadores haitianos graduados tem um emprego
compatível com sua qualificação no Brasil.
De acordo com os números mais
recentes da Rais (Relação Anual de Informações Sociais), havia 440 imigrantes
haitianos com curso superior trabalhando com carteira assinada no Brasil em
2014. Desse total, apenas 15 (3,4%) exerciam funções que exigem diploma
universitário.
A grande maioria dos haitianos
graduados ocupava cargos que demandam apenas ensino fundamental (302) ou médio
(58). Esses grupos representam juntos 82% dos haitianos com curso superior
empregados no Brasil.
O restante tinha empregos de nível
técnico (59) ou sem exigência de qualificação (5). Apenas um ocupava um emprego
com requisito de pós-graduação.
Vale destacar que é possível
encontrar 30.457 registros de haitianos com vínculos formais de trabalho na
Rais, mas a grande maioria não tem formação universitária.
O levantamento da FGV foi feito a
pedido do governo. Seu resultado foi divulgado
nesta terça-feira em Brasília,
como parte das discussões do seminário "Imigração como Vetor de
Desenvolvimento do Brasil".
Outras
nacionalidades
A comparação dos dados dos imigrantes
haitianos com os de outras nacionalidades mostra uma grande disparidade.
Segundo o levantamento da FGV, há
quase 156 mil estrangeiros empregados com carteira assinada no país, sendo que
48.199 têm curso superior.
Do total de graduados, a grande
maioria (71,7%) está de fato exercendo profissões que exigem o ensino superior,
além de 9,8% ocuparem cargos de exigência técnica.
Uma pequena parcela das pessoas com
ensino superior está em ocupações que, geralmente, exigem pós-graduação, ou em
funções que não necessariamente demandam qualificação universitária, como
ministrantes de cultos religiosos e profissionais relacionados às artes – essas
categorias seguem a Classificação Brasileira de Ocupações.
Dessa forma, o estudo da FGV aponta
que, de maneira geral, apenas 15,4% dos imigrantes com diploma universitário
não trabalham em funções equivalentes a sua qualificação e estão empregadas em
cargos que exigem apenas ensino fundamental ou médio.
Preconceito
Há cerca de cinco anos no Brasil,
Berhman Garçon fala bem português e, embora não tenha conseguido revalidar seu
diploma, diz que isso não tem sido seu principal obstáculo. Na sua vivência,
ele identifica outros fatores que dificultam a obtenção de uma vaga no mercado
jornalístico.
"Falo inglês, francês, creole,
espanhol, português. Mas primeiro tem o preconceito. Eu sou negro. Então, se
tem uma vaga, mesmo que eu tenha mais qualificação que os outros, eu não
consigo", diz ele.
"Já mandei muitos currículos, já
fui a empresas pedir emprego. Dizem que vão chamar se houver oportunidade, mas
é papo furado", reclama.
Além disso, Garçon vê uma
desconfiança das empresas brasileiras com os estrangeiros.
"Eles têm medo de lidar com os
estrangeiros, receio de que ele não vai conseguir fazer (o trabalho). Como você
vai saber se eu vou conseguir fazer, se não me dá oportunidade?",
questiona.
Sem perspectivas reais de conseguir
um emprego em sua área, Garçon está investindo R$ 250 num curso rápido de
operador de empilhadeira.
"É a possibilidade de um plano
B. Como eu não consegui um trabalho de jornalista, ter uma vaga para operar
empilhadeira vai me ajudar a pagar meu aluguel até eu voltar para o Haiti.
Quero voltar ano que vem", planeja.
Fluxo novo
O pesquisador Wagner Faria de
Oliveira, da Diretoria de Análise de Políticas Públicas (DAPP) da FGV,
identifica outros elementos que podem explicar essa diferença.
Ele nota que a imigração haitiana é
mais recente que de outras nacionalidades, como pessoas que vêm dos países
vizinhos da América do Sul e de nações europeias como Portugal, Espanha e
Itália.
"Geralmente esses imigrantes que
seguem fluxos mais antigos (de migração) conseguem se integrar melhor no
mercado de trabalho, pois já possuem redes de apoio", explica.
"As pessoas costumam migrar por
questões econômicas, em busca de melhores oportunidades, mas esse não é o único
fator que conta. O fato de já existirem redes, comunidades de pessoas daquele
país, torna o fluxo mais facilitado", acrescenta.
Além disso, diz Oliveira, mais um
fator que dificulta a integração dos haitianos é a língua. Enquanto a maioria
dos imigrantes que vêm para cá falam português ou espanhol, o haitiano fala
creole (uma língua derivada do francês).
"É bem mais difícil para eles
aprender o português", observa o pesquisador da FGV.
Revalidação de
diploma
Outro problema que atrapalha a
inserção dos imigrantes com curso superior é a dificuldade para conseguir
revalidar diplomas estrangeiros no Brasil, já que não há regras unificadas no
país - cada universidade tem autonomia para adotar seu procedimento, o que é
garantido na Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional.
Segundo Oliveira, o Ministério da
Educação tem tentado acelerar esse processo por meio de resoluções do Conselho
Nacional de Educação.
"Há um esforço de tentar
resolver, mesmo mantendo a autonomia universitária. Uma das sugestões que se
colocou foi você ter, por exemplo, uma lista de cursos de universidades que já
foram aprovados e esse curso já passaria a ser validado automaticamente, caso
seja feita uma requisição em outra universidade", diz.
"Hoje, mesmo se uma pessoa de um
curso x de uma universidade y já tenha tido seu diploma validado, se outra
pessoa do mesmo curso pedir a validação em outra universidade, vai começar um
processo novo", explica.
Atualmente, o Congresso Nacional está
debatendo um novo Estatuto do Estrangeiro para substituir a legislação de 1980.
Embora a proposta em discussão traga regras que podem facilitar a entrada de
estrangeiros, como a não exigência de um vínculo empregatício prévio para
liberação de um visto de trabalho, a FGV aponta para a falta de debate sobre
medidas específicas para atração de mão de obra qualificada para o país.
O presidente do Conselho Nacional de
Imigração, Paulo Sérgio de Almeida, reconhece o problema. Ele diz que a
discussão sobre facilitar a revalidação do diploma está engatinhando no
Mercosul. E mesmo na União Europeia, onde isso está mais adiantado, ainda é um
processo recente.
"Não é uma discussão fácil. O
Brasil tem que avançar muito nesse assunto para que não ocorra o desperdício de
talentos. Isso é uma perda gigantesca não só para ela como pessoa mas também
para o país que a acolhe", disse à BBC Brasil.
"Isso não esta sendo enfrentado
nesse novo debate da nova lei migratória", admitiu.
BBCBRASIL
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