Uma nova legislação para regular a entrada e a
permanência de estrangeiros e definir normas de proteção para o brasileiro que
deixa o país foi aprovada em primeiro turno pela Comissão de Relações
Exteriores e Defesa Nacional (CRE) no mês passado. De autoria do senador
Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP), o Projeto de Lei do Senado (PLS) 288/2013
estabelece a chamada Lei de Migração, em substituição ao Estatuto do
Estrangeiro (Lei 6.815/1980), em vigor. Para Aloysio, a proposta altera
profundamente o espírito da lei vigente, elaborada no período do regime militar
e baseada em princípios de segurança nacional, dando ao estrangeiro um
tratamento de ameaça à soberania, ao emprego e à cultura do país.
— O projeto traz a perspectiva do acolhimento. O Brasil é
hoje um importante destino de imigração. Os que deixam seus países por
catástrofes naturais, como o caso do Haiti, ou abalos sociais, como os casos do
Oriente Médio ou África, ou vêm com o amparo da lei ou serão vítimas de
exploração em nosso país — argumenta o senador e atual presidente da CRE.
A opinião é compartilhada pelo senador Ricardo Ferraço
(PMDB-ES), que foi relator do PLS 288/2013 na CER.
— A proposta é mais adequada ao espírito do século 21, da
globalização, enterrando o “entulho autoritário” representado pelo Estatuto do
Estrangeiro.
O senador acredita que a legislação não pode servir para
dificultar a imigração e que é preciso constatar a realidade migratória no
mundo e criar um ambiente legal para que o governo brasileiro possa desenvolver
políticas mais estruturadas para essa realidade.
Para Ferraço, a nova Lei da Migração apresenta enfoques
de cooperação tanto na área humanitária quanto trabalhista e é preciso
compreender que a força de trabalho dos imigrantes pode contribuir com a
economia brasileira hoje como contribuiu ao longo da história. O senador lembra
que hoje convivem no país regimes de acolhida e de autorização para trabalho
que são diversos e muitas vezes criados de forma circunstancial.
Mudanças
A proposta de Lei de Migração foi aprovada na forma de
substitutivo de Ferraço e passará por turno suplementar de votação amanhã, após
o que deverá ser encaminhada para a Câmara dos Deputados. No substitutivo,
foram incorporadas sugestões do Executivo, muitas constantes de anteprojeto
elaborado por comissão de especialistas criada pelo Ministério da Justiça em
2013.
Aloysio relata que a apresentação do PLS 288/2013 serviu
como catalisador de uma série de propostas que estavam sendo discutidas e o
Executivo passou a trabalhar com foco no projeto do Senado.
— A tramitação da proposta ficou suspensa até que
chegassem as sugestões do Executivo, mesmo porque há disposições de ordem
prática dos órgãos envolvidos que precisavam ser consideradas. A discussão foi
bastante amadurecida — afirmou.
A proposta traz entre os princípios e garantias que devem
reger a política migratória brasileira a “universalidade, indivisibilidade e
interdependência dos direitos humanos”, o que na prática implica tratar os
estrangeiros igualmente aos cidadãos nacionais.
Também consagra o repúdio à xenofobia, a não
criminalização da imigração, a acolhida humanitária e a garantia à reunião
familiar. O projeto prevê uma série de direitos e garantias para os imigrantes,
como o acesso à justiça e medidas destinadas a promover a integração social.
Regulamenta a expedição de documento de trânsito vicinal para residentes em
cidades que fazem fronteira com o Brasil e cria mecanismos de proteção ao
apátrida (aquele que não tem nacionalidade alguma).
A proposta também estabelece uma nova regulamentação para
os tipos de visto a serem concedidos: de trânsito, turismo e negócios,
temporário, permanente, diplomático e oficial e de cortesia. Procura incentivar
a admissão de mão de obra especializada necessária ao desenvolvimento
econômico, social, cultural, científico e tecnológico do Brasil e à captação de
recursos e geração de emprego e renda, desde que condicionados a critérios
exigidos pela legislação específica, sem discriminação. O visto temporário
poderá ser concedido, por exemplo, para cientistas estrangeiros mesmo sem
vínculo empregatício com instituição de pesquisa brasileira.
Outra novidade do projeto é a tipificação do crime de
tráfico internacional de pessoas para fins de migração, a fim de combater a
ação dos chamados coiotes. Regula ainda o tema do asilo político e da reunião
familiar e dispõe sobre a repatriação, a deportação e a expulsão, mas sem fazer
referências à extradição, que, segundo o autor, deve ser tema de lei específica
fruto de cooperação judiciária internacional.
A proposta também inova ao criar normas para o emigrante
brasileiro relacionadas à previdência social, sequestro de crianças ou
adolescentes, direitos de tripulantes de embarcações ou armadoras estrangeiras,
benefícios fiscais e de sepultamento. Também permite que o brasileiro que tenha
trabalhado no exterior possa contribuir retroativamente para a Previdência
Social na condição de segurado facultativo e facilita o reingresso de pertences
para brasileiros que retornam ao país.
Otimismo
e cautela
A aprovação do PLS 288/2013 pelo Senado foi recebida com
um misto de otimismo e cautela pelas organizações de acolhimento e de defesa
dos direitos dos imigrantes no país.
A presidente do Instituto Migrações e Direitos Humanos
(IMDH), Rosita Milesi, ressalta que o projeto deixa clara a necessidade de
cuidar da plena integração do migrante à sociedade brasileira, da atenção ao
brasileiro residindo fora do país, da proteção às crianças e adolescentes, além
de repudiar a discriminação, o racismo e xenofobia.
— São princípios da maior importância para uma política
migratória de acolhida, respeito e integração dos imigrantes — considera.
Rosita destaca, porém, pontos que despertam preocupação
das organizações. Um deles é que, com a revogação do Estatuto do Estrangeiro, o
Conselho Nacional de Imigração deixaria de existir, uma vez que não há menção
ao órgão no novo texto. As organizações defendiam a sua transformação em
Conselho Nacional de Migração, incluindo também a atenção aos brasileiros que
vivem no exterior. Na justificativa para o projeto, Aloysio sugere a criação de
uma Agência Nacional de Migração, mas lembra que tal iniciativa é exclusiva do
Executivo.
O direito a voto, já conferido por outros países, também
é umas das reivindicações das organizações não contempladas na proposta, mas só
pode ser atendida por emenda constitucional. Aloysio já apresentou proposta
(PEC 25/2012) em que defende a concessão do direito a voto aos imigrantes nas
eleições municipais.
Rosita também mostrou preocupação com as disposições
sobre valores a serem pagos para a obtenção de documentos e outros serviços
relativos à migração, que muitas vezes é um impedimento para a regularização
dos migrantes.
— Esperamos que não onerem mais ainda o migrante que
busca superar a burocracia e custear sua regularização migratória — observa.
Haitianos
despertaram interesse da opinião pública
A onda de imigrações de haitianos que teve início em
2010, após o Haiti ser praticamente destruído por um terremoto, chamou a
atenção para o problema da migração para o Brasil. De acordo com a Polícia
Federal, mais de 39 mil haitianos ingressaram no Brasil entre 2010 e 2014. Os
registros do governo do Acre já contabilizam cerca de 4,7 mil outros até março
de 2015. Eles estão recebendo os chamados vistos humanitários, criados pela
Resolução 97 do Conselho Nacional de Imigração em 2012.
A aprovação da Lei de Migração pode ajudar o Brasil a
enfrentar situações como a dos haitianos de forma mais estruturada, não só por
criar a figura do visto temporário por acolhida humanitária, mas também por
criar instrumentos penais para combater o tráfico internacional de pessoas para
fins de migração.
A maioria dos haitianos que chegam ao Brasil, o fazem
pelo Acre, depois de percorrer um longo caminho que leva de 15 a 20 dias e
inclui a República Dominicana, o Panamá, o Equador e o Peru. No caminho, são
submetidos a violência física, a roubos e à exploração dos coiotes. Estima-se
que cada imigrante paga entre US$ 2 mil e US$ 5 mil pela viagem em grupos até o
Acre. A rota ilegal se consolidou e hoje está servindo também a imigrantes de
outros países, com destaque para os senegaleses.
Integrante da CRE, Jorge Viana (PT-AC) elogiou a comissão
pela aprovação da proposta de Lei de Migração. O senador tem repetidamente
pedido por soluções para o problema da chegada dos haitianos ao Acre, que, como
explica, tem excedido a capacidade do estado de dar acolhimento. Ele quer que o
tema seja tratado de forma nacional, e não local.
Trabalho
O padre Paolo Parise, integrante da Missão Paz, que
acolhe migrantes e refugiados na cidade de São Paulo, revela que tem havido uma
corrida emergencial para atender os haitianos que procuram a instituição,
gerando superlotação no abrigo oferecido. Ele diz que muitos têm se
decepcionado com a realidade de oferta de trabalho e renda no Brasil e que
alguns pensam mesmo em voltar ao Haiti.
A Missão Paz oferece serviços para inclusão do imigrante,
como cursos de português, palestras sobre cultura e direitos e deveres no mundo
do trabalho no Brasil. Eles oferecem instrumentos para que os imigrantes
empregados denunciem qualquer tipo de exploração no trabalho.
A entidade também faz a intermediação entre os imigrantes
e os interessados em contratá-los. As empresas assinam um compromisso ético
para respeito aos direitos trabalhistas.
Parise diz que a emissão de carteiras
de trabalho já no Acre tem facilitado muito o encaminhamento dos haitianos ao
mercado de trabalho. Segundo o padre, o perfil de empregos para os haitianos
mudou: antes era maior na construção civil, mas hoje muitos têm se empregado
como auxiliares de serviços gerais e garçons.
Parise diz que a situação dos haitianos despertou o
interesse da opinião pública sobre a migração, mas que há outros imigrantes em
situações precárias, como os sírios, que hoje estão abrigados em mesquitas pela
cidade, ou os bolivianos, que são explorados em oficinas de costura e muitas
vezes não dispõem dos R$ 220 necessários para o processo de regularização no
país de cada um dos membros da família, e que, por isso, permanecem
irregulares.
Parise saudou a aprovação da nova Lei de Migração como
uma mudança de paradigma:
— O imigrante é gente, é humano, não é uma ameaça, não é
um perigo — pondera.
Dinâmica das migrações não mudou, diz historiadora
Marília Bonas, historiadora, museóloga e
diretora-executiva do Museu da Imigração do Estado de São Paulo, diz que os
movimentos de migração acontecem desde sempre e vêm do desejo humano de uma
vida melhor.
E o Brasil não foge a essa história, tendo havido
movimentos migratórios internos desde o tempo em que aqui só estavam as
populações indígenas, além da grande migração forçada dos africanos trazidos
como escravos. A identidade cultural do país é formada pela contribuição de
muitos migrantes, mas Marília diz que existe uma “romantização” da imigração
europeia ocorrida entre o fim do século 19 e o início do século 20.
— A razão da imigração europeia era a substituição da mão
de obra dos escravos libertos e o “embranquecimento” da população.
Ideologicamente havia uma percepção de superioridade da cultura europeia em
relação à cultura brasileira — reflete.
A historiadora pondera, no entanto, que os europeus
vieram porque estavam passando fome em suas terras de origem, e mais do que “empreendedores
que vieram fazer a América”, estavam fugindo da pobreza. A dinâmica das
migrações hoje não é diferente, argumenta Marília. A diferença é a sociedade
que recebe.
Marília vê avanços na Lei de Migração, mas pondera sobre
a necessidade de estender direitos àqueles que não estão com a documentação
regular.
— O caminho não é o da criminalização, e sim o do debate
público para ampliar o conhecimento sobre a experiência migratória e seu papel
na construção da sociedade brasileira. É preciso mostrar que as migrações de
hoje são importantes e parecidas com a de avós e bisavós de muitos brasileiros
e que cabe a nós receber bem — conclui.
Cenario Mt
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