terça-feira, 10 de maio de 2011
Privilégios e intolerância
Por mais de um século após a Independência do Brasil, os imigrantes portugueses viveram uma condição singular no país. Por um lado, eram institucionalmente beneficiados, já que a legislação brasileira sempre lhes concedeu privilégios políticos, diplomáticos e jurídicos. Por outro lado, foram vítimas de perseguições violentas motivadas por um forte sentimento antilusitano.
Essas são algumas das conclusões do livro Laços de Sangue – Privilégios e Intolerância à Imigração Portuguesa no Brasil (1822-1945), de José Sacchetta Ramos Mendes, professor do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências (IHAC) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que será lançado hoje dia 10 de maio.
De acordo com Mendes, a pesquisa teve início nos arquivos do Centro de Estudos Brasileiros da Universidade Columbia, em Nova York (Estados Unidos), onde atuou como pesquisador visitante. Posteriormente, dedicou-se a estudar as leis brasileiras entre 1822 e 1945 e a analisar a correspondência diplomática do Itamaraty durante aquele período. Na etapa final, conseguiu também auxílio do Instituto Camões, em Lisboa, para realizar pesquisas no Arquivo Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros e no Arquivo da Torre do Tombo.
Segundo ele, o campo de estudos imigratórios no Brasil tem foco principal nos italianos, japoneses, alemães e judeus. Curiosamente, a história do imigrante português nunca foi contada. Por outro lado, suas pesquisas mostraram que, pelo menos desde a Independência, os portugueses eram tratados institucionalmente de maneira diferenciada em relação aos outros estrangeiros.
“Como venho do campo do Direito, tinha em mente as inúmeras leis brasileiras que mencionam expressamente os portugueses – essa etnicidade da legislação é algo inusitado, que não acontece com nenhuma outra nacionalidade no Brasil”, disse à Agência FAPESP.
Mendes conta que ainda hoje a Constituição brasileira trata os portugueses de maneira diferenciada. Qualquer cidadão estrangeiro pode solicitar a naturalização depois de 15 anos ininterruptos de residência no Brasil. No caso dos portugueses e de outros povos lusófonos, um ano de residência comprovada já é o bastante para a naturalização.
“Essa característica vem desde a Constituição de 1946, mas desde a primeira Constituição do país, em 1824, já havia diversas menções expressas aos portugueses”, afirmou. Fontes brasileiras e portuguesas apontam que, entre 1822 e 1950, cerca de 1,9 milhão de portugueses imigraram para o Brasil.
“Na Assembleia Constituinte de 1823, os portugueses já não eram considerados estrangeiros. Qualquer pessoa nascida em Portugal que morasse no Brasil era considerada brasileira caso concordasse com a Independência”, afirmou.
Intolerância e ataques
Se os portugueses eram considerados “quase brasileiros” para a legislação, por outro lado representaram por muitos anos a própria encarnação da condição de estrangeiros.
“Durante um longo tempo havia pouca imigração de outras nacionalidades para o Brasil. O português era o estrangeiro por excelência. Por outro lado, era um estrangeiro que falava a mesma língua, tinha a mesma religião, era fisicamente familiar e tinha costumes parecidos”, disse.
Durante o governo de Getúlio Vargas (1930-1945), segundo Mendes, foram criadas várias restrições à entrada de estrangeiros no Brasil. Mas os portugueses continuaram a ser beneficiados.
“A Constituição de 1934 limitou as cotas de entrada para estrangeiros de todas as nacionalidades. Em 1938, essa Lei foi suspensa apenas para portugueses. Entre 1939 e 1945, com a Segunda Guerra Mundial, Vargas comunicou aos serviços diplomáticos do exterior que os portugueses poderiam entrar no Brasil, embora impedisse a entrada de judeus, por exemplo”, disse.
Apesar de toda a familiaridade e dos privilégios da lei, segundo a pesquisa de Mendes, o português seguia sendo um estrangeiro e era identificado com o processo de colonização. Com isso, a intolerância irrompia frequentemente.
“Há inúmeros episódios de ataques contra portugueses em todas as províncias. Seria natural que a intolerância ocorresse durante o processo de independência, mas os ataques, embora não de forma contínua, seguiram ocorrendo pelo menos até o fim da década de 1920”, disse.
Os ataques tomavam várias formas e o antilusitanismo se refletia até no campo da cultura e da arte, segundo Mendes. O movimento modernista, na década de 1920, por exemplo, refutava a presença portuguesa.
“Mas, algumas vezes, os ataques tomavam uma dimensão realmente violenta. No fim do século 19, por exemplo, houve na província do Mato Grosso uma chacina articulada simultaneamente em uma série de vilas e cidades. Em uma única noite, centenas de portugueses foram assassinados. A documentação sobre esses ataques foi destruída deliberadamente e só conhecemos esses fatos a partir dos relatos de terceiros”, disse.
As manifestações antilusitanas vinham de diversas frentes, muitas vezes por motivações contraditórias. “Muitos portugueses tinham participação no movimento operário e no anarquismo sindical. Outros eram proprietários de imóveis e pensões. Nos dois casos motivavam a intolerância por razões completamente diferentes”, explicou.
Um dos fatores que levaram à pesquisa foi a ausência de fontes e dados confiáveis a respeito da imigração portuguesa. No entanto, o campo de pesquisas sobre imigração portuguesa, segundo Mendes, vem crescendo, em especial na USP e em instituições como a Universidade Federal do Rio de Janeiro, Universidade Estadual do Rio de Janeiro e Universidade Federal Fluminense.
“Antes, a maior parte dos trabalhos existentes eram os textos de memorialistas. Na minha pesquisa procurei fugir dessa perspectiva e buscar o rigor científico na pesquisa sobre a imigração portuguesa, como estão fazendo agora os pesquisadores desses centros de São Paulo e do Rio de Janeiro”, disse.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário