terça-feira, 7 de julho de 2015

Brasil acolhe milhares de estrangeiros em fuga de guerras e catástrofes humanitárias, mas ainda tropeça em sua própria “burocracia”.

Há, atualmente, cerca de 60 milhões de pessoas que foram forçadas a deixar suas casas e seu país natal por causa de guerras ou perseguições. Foi perante esse cenário que o Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados) celebrou, no dia 20 de junho, mais um Dia Mundial do Refugiado, lembrado também pelo Brasil?—?o primeiro país do Cone Sul a ratificar a Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 (que consolida meios legais internacionais relativos aos refugiados). No Rio de Janeiro, por exemplo, dezenas de refugiados participaram de uma cerimônia no Cristo Redentor, que ainda ficou iluminado com a cor azul, a cor da ONU. Em São Paulo, também houve programação. (clique aqui e veja outros eventos realizados no Rio e em São Paulo)
O Brasil detém uma legislação sobre refúgio que é vista como uma das mais avançadas do mundo. Segundo Pitchou Luambo, advogado refugiado no Brasil há quatro anos e coordenador do Grists?—?Grupo de Refugiados e Imigrantes Sem-Teto de São Paulo, ela facilita a entrada do refugiado no país, algo que não acontece em outras nações. “Existe a lei 9.474/47 que estabelece uma definição clara do refugiado. Aqui, mesmo quem entra de forma ilegal ou sem documentos não pode ser deportado. É uma lei que protege e regulamenta. Na Itália, por exemplo, não existe essa regulamentação”.
Ainda assim, a morosidade na emissão de documentos continua sendo o principal obstáculo enfrentado por refugiados no Brasil e a porta de entrada para situações de vulnerabilidade social. “Imagina você chegando em uma imobiliária e apresentando um protocolo [como é conhecido o documento expedido pela Policia Federal aos refugiados]”, diz Pitchou. “Quem vai aceitar? Ninguém te aluga uma casa.”
Segundo Pitchou, a situação gera problemas gravíssimos. “Então, de repente, aparece uma empresa interessada na mão-de-obra do refugiado, sabendo da extrema fragilidade dele. Oferece-lhe um trabalho em troca de alimentação e moradia em um alojamento… E depois falam que é preciso resolver o problema do trabalho escravo”, afirma.
O Brasil criou um comitê nacional de refugiados (Conare) para acompanhar os casos dos refugiados, mas nos últimos cinco anos a estrutura do órgão não se expandiu para acompanhar a entrada desses estrangeiros no país. “Antes eram cinco pessoas para atender cada dez estrangeiros. Hoje estamos falando dos mesmos cinco para cada mil. O mesmo ocorre com a equipe da Polícia Federal e com as casas de acolhida”.
Por tudo isso, foi realizado, em maio, o 1º Fórum Morar no Refúgio. O espaço de debate reuniu imigrantes, refugiados, movimento de moradia, organizações e entidades especializadas, para levantar as dificuldades que os refugiados enfrentam e procurar soluções conjuntas. O evento foi acompanhado pelos Jornalistas Livres, que reproduziu em seu site uma matéria sobre o encontro.
Moradia em São Paulo
O incremento nos ingressos de refugiados no Brasil é real. De acordo com o Conare, em outubro de 2014, o Brasil possuía 7.289 refugiados reconhecidos, de 81 nacionalidades distintas?—?em sua maioria síria, colombiana, angolana e congolesa. O número total de pedidos de refúgio aumentou mais de 930% entre 2010 e 2013 (de 566 para 5.882 pedidos). Até outubro de 2014, já foram contabilizadas outras 8.302 solicitações.

Em 2014, a maioria das solicitações de refúgio no Brasil foi apresentada em São Paulo (26% do total de solicitações no período), no Acre (22%), no Rio Grande do Sul (17%) e no Paraná (12%). Na capital paulista é bem comum se deparar com um refugiado que passa por dificuldades, como é o caso de Marie, que veio há 11 meses do Haiti, passou pelo Equador e Peru antes de chegar ao Acre e, já em São Paulo, recorreu aos movimentos de moradia para não ter de viver na rua.
“Os meus amigos foram para outros estados. Até que, por intermédio de um amigo, comecei a comparecer aos encontros de refugiados da FLM (Frente de Luta por Moradia), na ocupação do antigo hotel Cambridge, no Centro. Ali fui informada que não estava em uma imobiliária, mas em um lugar de lutas onde seria necessário batalhar pela minha moradia. Hoje moro na Ocupação da Rua Rio Branco”.
Marie teve de deixar no Haiti dois netos. O pai deles morreu. Atualmente, não está trabalhando e, por não ter trazido o diploma da sua profissão (manicure), fica mais difícil conseguir um emprego. Além disso, foi explorada no último trabalho que conseguiu, situação comum quando não se fala a língua local. Emocionada, ela conta o seu sonho: “Gosto muito deste país, mais do que o Haiti. Não tenho possibilidade de trazer meus netos pra cá, mas quero muito isso. Em nome de Deus vou conseguir um dia”, diz, entre lágrimas.


As ocupações têm sido um destino muito procurado por refugiados que “desembarcam” em São Paulo. Na FLM, por exemplo, são mais de 20 pessoas entre refugiados e imigrantes morando em diferentes edifícios ocupados pelo Centro e outros 15 que participam frequentemente das reuniões de base, exclusivas para este tipo de público, realizadas aos domingos no Cambridge.
O grande problema é que a falta de documentação dos refugiados, novamente, esbarra na possibilidade de lutar por um lar. Isso porque, para ser inserido em programas habitacionais do governo, é necessário ser cadastrado no NIS (Número de Inscrição Social). “Como eles tem essa real burocracia para tirar a documentação, a situação fica difícil. Porque se houver um atendimento que vai gerar cadastramento habitacional eles ficam de fora. É uma ‘burrocracia’”, explica Carmen Silva, liderança da FLM e do MSTC (Movimento dos Sem-Teto do Centro).
Além disso, existem ocupações na cidade que não são de movimentos ligados a políticas públicas de moradia. “Tem algumas por aí em que a maioria dos moradores são refugiados. Mas o objetivo único é pegar dinheiro deles… Entre essas estão a do Marrocos (Cine Marrocos) e da Praça da Sé. Trata-se de um grupo de exploradores que não visa políticas públicas, mas que ocupa para poder negociar. Para eles não interessa a condição do refugiado contanto que pague”, complementa.
Carmen sonha em construir uma estrutura que tenha paridade com as necessidades dos refugiados, um projeto de moradia provisória dedicado a eles. “São famílias, não vão se adequar a morar em situação de rua ou abrigos de moradores de rua em que você entra à noite, toma banho, janta e sai de manhã. Tem que ser uma moradia digna, até que ele se estabeleça e tenha a capacidade de financiar a casa própria”, ressalta.
Mas, a líder dos sem-teto já antecipa as dificuldades: “A ala mais reacionária da sociedade diria que estamos tomando o lugar dos brasileiros.”
Obstáculos do preconceito
Outro desafio enfrentado por alguns refugiados no Brasil é o preconceito. Muitos que vêm ao país reclamam de racismo, de dificuldades em se relacionar ou conseguir um emprego. É o caso de Francin Francoeur, que também veio do Haiti em 2014.
“A maior dificuldade que encontrei no Brasil foi a discriminação racial. Sofri muito com isso e sofro até hoje. Em qualquer lugar, no Metrô, tem gente que não senta do meu lado porque sou negro. Tenho amigos que não conseguem emprego, quando dizem que são estrangeiros”, diz.


A situação é vista por órgãos que defendem os direitos dos refugiados como fruto de pura falta de informação. Por isso, alguns desses refugiados com o apoio da Cáritas Brasileira, organismo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), participaram da criação do projeto Refugees in Brazil (Refugiados no Brasil, em português), que visa “esclarecer, sensibilizar e conscientizar sobre refúgio e refugiado, assuntos ignorados ou mal compreendidos pela sociedade brasileira”.
O preconceito e a discriminação oprimem estas pessoas que, longe de suas casas e imersos numa realidade completamente confusa, têm dificuldades de sentirem-se tranquilos no dia a dia.
O Brasil que tenta
Mesmo enfrentando tantas adversidades, muitos dos que procuram o Brasil enxergam nele um oásis de receptividade, quando comparado ao que se verifica em outros países. Alguns números mostram que houve avanços na questão durante os últimos anos. Com base em dados do Conare referentes ao período entre janeiro de 2010 e outubro de 2014, o Acnur elaborou uma análise que mostra o fortalecimento da proteção aos refugiados e solicitantes de refúgio no Brasil. Foram 2.032 deferimentos em 2014 (até outubro) expedidos pelo Conare, 1.240% a mais do que os 150 registrados em 2010.

Centro de Estudos das Relações 
de Trabalho e Desigualdades

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