- Dimensão social do Evangelho
Tendo presente esse pano de fundo, vale tentar uma leitura mais atenta sobre o quarto capítulo do documento, intitulado A dimensão social da evangelização. O acento desta leitura recairá sobre a situação dos pobres em geral, e dos migrantes em particular, tendo presente o 126º de Fundação da Congregação dos Missionários de São Carlos (Scalabrinianos), cujo carisma é justamente o trabalho pastoral junto ao mundo da mobilidade humana. As migrações constituem hoje um fenómeno estrutural intenso, complexo e diversificado, comportando sérios desafios de ordem social, económica, política e religiosa – como lembra a Erga Migrantes Caritas Christi, documento do Pontifício Conselho para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes.
Convém, de início, sublinhar os temas desenvolvidos no referido capítulo quarto da Evangelii Gaudium: 1) As repercussões comunitárias e sociais do kerygma; 2) inclusão social dos pobres; 3) o bem comum e a paz social; 4) O diálogo social como contribuição para a paz. Como se pode notar, o Papa Francisco retoma as linhas mestras ou princípios fundamentais da Doutrina Social da Igreja (DSI) ao longo do tempo, bem como seu fio condutor, isto é, a defesa dos direitos e da dignidade da pessoa humana. Mas o atual Pontífice acrescenta-lhes um revestimento especial, uma característica própria de sua índole, uma espécie de olhar paterno/materno sobre os mais necessitados e os indefesos, como o Bom Pastor sobre a “ovelha perdida” ou “o homem caído à beira da estrada”. Vejamos isso de mais perto, transcrevendo, observando e comentando alguns subtítulos desse capítulo.
O primeiro deles revela a consonância intrínseca entre a Confissão da fé e o empenho social. “Esta indissolúvel ligação entre a acolhida do anúncio salvífico e um efetivo amor fraterno está expressa em alguns textos da Sagrada Escritura que vale a pena considerar e meditar atentamente, no sentido de extrair-lhes todas as consequências (...): ‘tudo aquilo que fizeste a um só destes meus irmãos mais pequenos, foi a mim que o fizeste’” – diz o texto citando Mt 25,40 (Cfr. EG, nº 179). Na verdade, nada de novo debaixo do sol! Trata-se de palavras já bem conhecidas, lidas e relidas vezes sem fim nos atos litúrgicos, momentos de oração e celebrações eucarísticas. Novo aqui é o fato de reler estas palavras à luz dos gestos, das atitudes e do comportamento do Papa Francisco desde que foi eleito para a cátedra petrina. O modo de tornar-se próximo à população que o busca por parte do atual pontífice confere e essas e a outras palavras do Evangelho uma tonalidade e um colorido todo especial quando. Bastaria um olhar retrovisor sobre suas audiências e o seu dia-a-dia, para dar-se conta de como o bispo de Roma privilegia precisamente “i più bisognosi e gli ultimi” (os mais necessitados e últimos).
Unidos a Deus escutemos um grito, nos convida um outro subtítulo. E o texto precisa: “A Igreja reconheceu que a exigência de escutar este grito deriva da própria obra libertadora da graça em cada um de nós, por isso não se trata de uma missão reservada somente a alguns (...). A solidariedade é uma reação espontânea de quem reconhece a função social da propriedade e a destinação universal dos bens como realidade anterior à propriedade privada” (Cfr. EG, nº 188-9). “Às vezes se trata de escutar o grito de povos inteiros, dos povos mais pobres da terra, porque ‘a paz fundamenta-se não só sobre o respeito dos direitos humanos, mas também sobre os direitos dos povos’ – DSI” (Cfr. EV, nº 190). Quantas vezes, no interior da Igreja, nos contentamos em acompanhar o fã clube dos fiéis que participam das práticas e atividades comus (o que, evidentemente, não deixa de ser importante), mas ignoramos quase por completo o lamento que vem do lado de fora dos muros eclesiais. Ignoramos ou nos tornamos indiferentes apelo das periferias e dos porões da sociedade, tanto mais eloquente quanto mais silencioso ou silenciado.
Mais adiante encontramos um subtítulo que, a bem da verdade, atravessa toda a trajetória judaico-cristã, desde a antiga até a nova aliança, desde o Antigo ao Novo Testamento – passando também pela trajetória da Igreja (não obstante seu lado obscurantista). Trata-se da expressão O rosto privilegiado dos pobres no Povo de Deus: “Para a Igreja a opção preferencial pelos pobres é uma categoria teológica, antes que cultural, sociológica, política ou filosófica. Deus concede a eles a sua primeira bem-aventurança. Esta preferência tem consequências na vida de fé de todos os cristãos, chamados a ter “os mesmos sentimentos de Jesus’” (Fil, 2,5). Inspirada nessa misericórdia divina, “a Igreja fez uma opção pelos pobres entendida como uma ‘forma especial de primazia no exercício da caridade cristã, da qual dá testemunho toda a tradição da Igreja’” (Cfr. EG, nº 198). O Papa retoma o horizonte largo, aberto e promissor não só do Concílio Ecuménico Vaticano II, mas de forma especial dos documentos das Assembleias dos bispos da América Latina e Caribe (Medellín, Puebla, Santo Domingo e Aparecida).
- O cuidado paterno/materno com os mais frágeis
Com o subtítulo O ensinamernto da Igreja sobre a questão social, o Papa retoma uma preocupação que nasce no decorrer do século XX, em pleno contexto da Revolução Industrial, com seus avanços tecnológicos e suas consequências de ordem socioeconómica. De fato, a chamada “questão social”, particularmente sob a forma de “condição dos operários”, é tema não somente de um estudo de Frederic Engels sobre os trabalhadores nas cidades da Inglaterra (1944) e do Manifesto Comunista de Marx e Engels (1948), como também subtítulo da Rerum Novarum do Papa Leão XIII (1991), encíclica que inaugura a Doutrina Social da Igreja, tendo no coração a situação concreta das condições de trabalho e moradia dos operários da indústria nascente.
“Em consequência” – afirma a exortação pontifícia – “ninguém pode dizer que nós ligamos a religião à secreta intimidade das pessoas, sem alguma influência sobre a vida social e nacional, sem preocupar-se pela saúde das instituições da sociedade civil, sem exprimir-se sobre os acontecimentos que interessam os cidadãos. Quem ousaria fechar-se no tempo e fazer calar a mensagem de São Francisco de Assis e da bem-aventurada Teresa de Calcutá. Esses não poderiam aceitar. Uma fé autêntica – que jamais será cómoda e individualista – implica sempre um profundo desejo de transformar o mundo, de transmitir valores, de deixar algo de melhor depois de nossa passagem sobre a terra” (Cfr. EG, nº 183).
Cabe aqui um rápido recuo no documento, detendo-nos por um pouco no tema que desenvolve Alguns desafios do mundo atual, especificamente no subtítulo do primeiro capítulo, denominado Não a uma economia da exclusão. Escreve textualmente o Papa: “Assim como o mandamento “não matar” coloca um limite claro para assegurar o valor da vida humana, hoje devemos dizer ‘não a uma economia da exclusão e da iniquidade’. Esta economia mata (...). Isto é exclusão. Não se pode mais tolerar o fato que se jogue fora a comida, quando há gente que sore de fome. Isto é iniquidade. Hoje tudo entra no jogo da competividade e da lei do mais forte, onde o poderoso come o mais débil. Como consequência desta situação, grandes massas de população se vêm excluídas e marginalizadas: sem trabalho, sem perspectiva, sem via de saída. Considera-se o ser humano em si mesmo como bem de consumo, que se pode usar e depois jogar fora. Demos início à cultura do ‘descartável’, a qual, além do mais, acaba sendo promovida” (Cfr. EG, nº 53).
Em perfeita sintonia com o Documento de Aparecida, utilizando não o conceito sociológico de exploração, mas de exclusão social, prossegue o texto: “Não se trata mais simplesmente da exploração e da opressão, mas de algo novo: com a exclusão, torna-se atingida na sua própria raiz, a pertença à sociedade na qual se vive, desde o o momento em que nessa não se está nem nos porões, nem na periferia, ou sem poder, mas se está fora. Os excluídos não são ‘explorados’, mas recusados, ‘descartados’” (Cfr, EG, nº 53).
- Migrantes, refugiados, exilados, sem pátria
Retomando a linha do capítulo quarto, o Pontífice nos convida a Tomar cuidado da fragilidade: “É indispensável prestar atenção para estar vizinhos às novas formas de pobreza e de fragilidade, onde somos chamados a reconhecer Cristo sofredor, mesmo se isso aparentemente não nos traz vantagens imediatas: os sem teto, os toxicodependentes, os refugiados, os povos indígenas, os anciãos cada vez mais sós e abandonados, etc. Os migrantes me colocam um desafio particular porque sou Pastor de uma Igreja sem fronteiras que se sente mãe de todos. Por isso exorto os países a uma generosa abertura, que em vez de temer a destruição da identidade local, seja capaz de criar novas sínteses culturais. Como são belas as cidades” – continua o Papa Francisco, com forte acento sobre um desejo que o domina – “que superam a desconfiança maligna e integram os diferentes, e que fazem de tal integração um novo fator de desenvolvimento! Como são belas as cidades que, mesmo no seu desenho arquitetónico, estão cheias de espaços que entrelaçam, põem em relação, favorecem o reconhecimento do outro” (Cfr. EG, nº 210).
Depois de sublinhar a situação generalizada de milhões de sem pátria, o texto se detém sobre uma temática bem específica, tema da Campanha da Fraternidade de 2013, promovida pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) durante o temo da Quaresma. “Faz-me sofrer a situação daqueles que são objeto das diversas formas de tráfico de pessoas. Gostaria que se escutasse o grito de Deus que pergunta a todos nós ‘Onde está o teu irmão?’ (Gn 4,9). Onde está o teu irmão escravo? Onde está aquele que você está matando cada dia na pequena fábrica clandestina, na rede da prostituição, nas crianças que você alicia para exploração, naqueles que devem trabalhar escondidos porque não encontram-se em situação irregular? Não façamos de conta que nada existe. Existem muitas complicações. A pergunta se impõe para todos! Nas nossas cidades está implantado este crime mafioso e aberrante, e muitos têm as mãos que gotejam sangue por causa de uma cumplicidade cómoda e muda” (Cfr. EG, nº 211).
Retomando um tema caro à Populorum Progressio de Paulo VI (1967) e à Solicitudo Rei Socialis de João Paulo II (1987), o Papa Francisco diz “que a paz social não pode ser entendida como inércia ou como uma mera ausência de violência, obtida mediante a imposição de uma parte sobre a outra. Seria igualmente uma falsa paz aquela que servisse como desculpa para justificar uma organização social que tenha como meta fazer calar ou tranquilizar os mais pobres, de modo que aqueles que gozam de maiores benefícios possam manter o seu estilo de vida sem abalos, enquanto os outros sobrevivem como podem” (Cfr. EG, nº 218). Vem à tona, como nas encíclicas precedentes acima citadas, o contraste flagrante entre o progresso tecnológico e o crescimento económico, nos países e regiões centrais ou desenvolvidas, de um lado, e, de outro, os países ou regiões periféricas e subdesenvolvidas. Contraste que se agrava com a concentração de renda e riqueza ao lado da exclusão social, o desperdício e a “idolatria do consumo” ao lado da pobreza e da fome, o luxo ao lado da miséria – todos fatores de deslocamento de massa, especialmente do sul pobre do planeta em direção ao norte rico.
“As reivindicações sociais” – continua o Santo Padre – “que têm a ver com a distribuição das entradas, a inclusão social dos pobres e os direitos humanos, não podem ser sufocados com o pretexto de construir um consenso sobre a mesa ou uma efémera paz para uma minoria feliz. A dignidade da pessoa humana e o bem comum estão acima da tranquilidade de alguns que não querem renunciar a seus privilégios. Quando estes valores são sacrificados, faz-se necessária uma voz profética” (Cfr. EG, nº 218). Voz que, no caso do atual pontífice, se faz “carne”: gesto, presença, solidariedade, como por exemplo, na visita à ilha de Lampedusa, ponto de chegada dos refugiados e prófugos da África e Oriente Médio, numa tentativa de chegar à Europa.
Citando literalmente a Populorum Progressio (PP), conclui o Papa Francisco: “A paz ‘não se reduz a uma ausência de guerra, fruto do equilíbrio sempre precário das forças. Ela se constrói dia a dia, perseguindo uma ordem que está na vontade de Deus, a qual comporta uma justiça mais perfeita entre os homens’. Definitivamente, uma paz que não emerge como fruto do desenvolvimento integral de todos, sequer terá futuro e será sempre causa de novos conflitos e de várias formas de violência” (Cfr. nº 219). Conflitos e violência que, como sabemos, constituem frequentemente a causa imediata de tantos deslocamentos humanos.
Evidente que o desenvolvimento entendido como “novo nome da paz”, para usar uma expressão basilar da encíclica PP, evitaria a migração desesperada de tantos jovens, de ambos os sexos, boa parte de nível superior, em busca de melhores condições de vida fora do país em que nasceram. Fuga, hemorragia ou circulação de cérebros, o fato é que esse movimento de massa tende a aprofundar o desequilíbrio entre as nações, tornando os fortes mais fortes e os fracos mais fracos. É a lei da seleção natural, de Darwin, aplicada no contexto socioeconómico da globalização. Ao “direito de ir e vir” assegurado a todo cidadão, corresponde o “direito de ficar” – de construir o próprio futuro e o da família na pátria de nascimento. Um e outro, de qualquer forma, devem estar subordinados a uma cidadania mais ampla e sem fronteiras que inclui o mundo como pátria universal, como lugar de passagem e antecipação do Reino definitivo e eterno.
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs
Roma, Itália, 28 de novembro de 2014, 126º aniversário de fundação
da Congregação dos Missionários dos Migrantes (Scalabrinianos)
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