Há mais de uma década, a cidade de Riace encontrou um simbiose
perfeita com os imigrantes da
África e Ásia. Rechaçados e vistos como ameaça pelo resto da Europa, os “homens
vindos do mar” salvaram o povoado da extinção.
O sol mal se levantou, e a equipe de lixeiros
ecológico-tradicional já atravessa as ruas estreitas de Riace, na costa Sul da
Itália: dois homens e sua carroça puxada a jumento. Quebrando a tradição,
contudo, só um deles é italiano.
Cerca de mil anos atrás, os ancestrais de Romano fundaram o
lugarejo na Calábria nas colinas, a cerca de oito quilômetros do mar, para se
protegerem dos ataques dos piratas. O homem que acompanha Romano é um
imigrante, Daniel. Ele é , como se diz aqui na região, um “homem do mar” assim
como eram chamados os piratas antigamente.
Dupla sorte para refugiados
Para muitos italianos, gente como o auxiliar de lixeiro continua
representando uma ameaça. Numa outra aldeia calabresa, houve choques entre os
antigos moradores e os trabalhadores imigrados. Mas Riace é diferente: de seus
menos de 1.700 habitantes, 300 são “gente do mar”.
Na verdade, Daniel vem de Gana. Cinco anos atrás, ele
desembarcou em Lampedusa, a ilha mais meridional da Itália. “Três dias e três
noites nós ficamos num barco. Um risco tremendo, de que nós escapamos. Mas, o
que se podia fazer? A gente tinha que vir. E se você sobrevive, sobreviveu.”
O imigrante de 32 anos sabe que teve sorte de conseguir chegar
vivo a Lampedusa. E mais sorte ainda que exista um lugar como Riace. Enquanto o
resto da Europa se defende dos refugiados com cercas e polícia de fronteiras,
esta localidade os acolhe, quer apoiá-los. E hoje Daniel vive com mulher e dois
filhos na cidadezinha calabresa.
Salva do desaparecimento
Esta região da Itália é pobre; aqui, quem manda é a Máfia. Os
jovens abandonam a região assim que têm uma chance. O mesmo aconteceu em Riace:
15 anos atrás, sua população havia se reduzido de 3 mil para menos de 800.
Porém, no início dos anos 2000, o prefeito Domenico Lucano passou a acolher imigrantes, os
quais, segundo ele, substituíram todos os que abandonaram a cidade, evitando
assim sua extinção.
- Antes, estes prédios estavam vazios e acabados – diz Lucano,
apontando para as casas em redor. “Riace já era quase uma cidade fantasma. Mas
nós construímos novamente as casas. Agora, famílias moram aí, e graças a elas
pudemos manter a escola em funcionamento.”
Também do ponto de vista econômico, os imigrantes são
importantes, ressalta o prefeito: “Eles fazem os trabalhos que os italianos não
querem mais fazer”, cuidam dos idosos ou trabalham no olival para a sociedade
de produtores de azeite. Um somali abriu um restaurante, outros atuam como
tradutores ou mantêm pequenas lojas e firmas. Um deles, por exemplo, fabrica
cerâmica tradicional de Riace, decorada com finas listras coloridas.
Vantagem para todos
Quem indaga os clientes mais idosos do café sobre a convivência
com os imigrantes, não recebe resposta: eles apenas fazem um gesto de “deixa
pra lá”. Só um homem bem mais jovem, que não quer ser identificado se dispõe a
conversar.
“É uma coisa excelente! Riace está cheia de gente outra vez.
Antes, era tão vazio aqui.” Também há mais empregos, comenta o rapaz, pois os
moradores podem trabalhar para a organização que apoia os recém-chegados. “No
entanto, os empregos deveriam ir primeiro para os cidadãos italianos. No
momento, os imigrantes têm muito mais possibilidades do que nós”, ressalva.
Para a afegã Marie, o trabalho numa oficina de trabalhos em
vidro é um presente de Deus. “No Afeganistão, eu só ficava em casa e não podia
fazer nada, assim como as outras mulheres.” Mas ela deixou o país por outro
motivo: seus três filhos.
- Minha mais velha, a Mariana, começou a ter problema com os
talibãs. Eles queriam casá-la à força. Mas ela só tem 12 anos! A afegã e sua
família já estão há dez meses em Riace. No momento, ela trabalha no mosaico de
um jóquei a cavalo, que vai ser vendido na loja ao lado. Ela recebe 500 euros
por mês do município, além dos 200 euros do serviço de asilo.
O fator humano
Essa
ajuda financeira acaba revertendo também para a economia local, pois Marie,
Daniel e os demais gastam seu dinheiro principalmente no comércio de Riace.
Mas, como muitas vezes seu pagamento chega com atraso, Riace passou a imprimir
seu próprio dinheiro, com retratos inspiradores de Martin Luther King, Che
Guevara e Ghandi.
As
cédulas funcionam como moeda normal: os requerentes de asilo podem comprar
alimentos ou roupas com elas, e oportunamente os varejistas trocam seus Ghandis
por euros de verdade.
Essa
evolução positiva se deve, em grande parte, aos subsídios do governo italiano e
da União Europeia. Mas ela também depende muito de gente como o prefeito
Domenico Lucano. Nas últimas eleições, ele se candidatou com um slogan simples:
“As pessoas mais pobres do mundo vão salvar Riace – e nós as salvaremos.”
Simples, mas eficaz.
Correio do Brasil
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