Pe. Alfredo
J. Gonçalves, CS
São inúmeras as análises
de conjuntura: anuais, mensais, semanais e até diárias... Tão variadas quanto
os diferentes pontos de vista de quem as elabora e divulga. Nisso reside, ao
mesmo tempo, uma riqueza e um limite. Enquanto a riqueza está no pluralismo das
visões de mundo e dos enfoques adotados, o limite pode ser um relativismo onde
tudo se nivela pela mesma medida. As múltiplas análises que desfilam pelos seminários,
assembleias, encontros, cursos e reuniões, por um lado, ou que navegam
diariamente pelo espaço virtual da Internet, por outro, são permeadas por essa
ambiguidade. Querendo ou não, toda a tentativa de análise tem os pés no solo mutável
e movediço da história, trazendo nas solas dos sapatos suas marcas, sejam estas
pútridas ou sublimes. De fato, não é novidade que a história percorre seu curso
sempre dilacerada por novas perguntas e respostas, por dúvidas e incongruências,
por combates, contradições e jogos de interesse. Nem precisaria lembrar que a
cabeça pensa a partir do que pisam os pés. Ou a partir do “lugar social” em que
vivemos, trabalhamos e nos relacionamos.
Do parágrafo anterior
resulta a consciência de que a neutralidade é uma farsa ou um mito. No
substrato de toda forma de pensamento, ou de toda maneira de expressão,
esconde-se um ponto de vista, o qual, de acordo com Leonardo Boff, “não passa
da vista de um ponto”. O problema está justamente na fórmula esconde-se. Quando esse substrato se faz
consciente e auto-reconhecido, abrindo-se à transparência do conteúdo e dos
argumentos abordados, torna-se igualmente possível um diáogo entre as distintas
formas de ver o mundo, os acontecimentos e a história. Mas, inversamente,
quando prevalece a ideia da neutralidade, permanecendo ocultos o ponto de
partida e a posição social e política, desenvolve-se necessariamente a
pretensão da verdade absluta. Consciente ou inconscientemente, consolida-se a
base para a tirania do “pensamento único” (tanto à esquerda quanto á direita),
ou pior ainda, para o autoritarismo intelectual ou fundamentalismo que pode ser
de ordem política, religiosa ou étnico-cultural (às vezes, tudo isso misturado).
Além disso, a pressuposição da neutralidade, por ignorância ou má fé, presta-se
às mais diferentes manipulações, como ocorre com os “ingênuos úteis”.
1.
Binômio crise/encruzilhada
Diante de semelhante
ambiguidade no esforço de esclarecer a realidade dos fatos e boatos, tomo
emprestado de J. Moltman uma observação que pode contribuir para uma análise
mais real e menos ingênua dos acontecimentos (Cfr. Telogia da Esperança). Ou então, para balancear de forma mais
correta a dose de pessimismo e otimismo de qualquer forma de visão social ou
histórica. Diz o teólogo protestante alemão: “A palavra ‘crise’ mede o evento
novo e incompreendido sobre a base da ordem tradicional da vida humana, que
agora entrou em crise e encontra-se ameaçada, e por isso deve ser salva,
conservada ou renovada. A expressão ‘crise’ refere-se sempre à ordem. A ‘crise’
põe em questão a ordem e, portanto, pode ser dominada somente mediante uma nova
ordem”. Se entendemos bem as palavras do autor, no fundo implícito ou explícito
do conceito de “crise” pode esconder-se um medo que paralisa toda e qualquer
ação. Mais grave ainda, pode ativar uma reação retrógrada, no sentido de
recuperar a todo custo um status quo
perdido ou ameaçado. Entra em cena uma espécie de saudosismo do “paraíso perdido”
que bloqueia o movimento em vista de mudanças urgentes e necessárias. Ao invés
de um novo horizonte a ser conquistado, a concepção de crise pode desencadear
um passo atrás na tentativa de manter tudo como está.
Neste perído de festas e
de passagem de ano (2013-2014), quando as análises costumam tornar-se simultaneamente
mais ambrangentes e mais numerosas, talvez seja útil introduzir aqui o binômio
crise/encruzilhada, tendo presente a tensão dinâmica e dialética entre os dois
termos. Reporto-me, evidentemente, a citação anterior de Moltman. Enquanto o
conceito de crise supõe o rompimento de uma ordem e a necessidade de
restabelecê-la o mais rápido possível, ou um esdtado de coisas a ser conservado
custe o que custar, o conceito de encruzilhada
pressupõe a existência de vários caminhos e, portanto, a possibilidade de
escolha em vista de uma ação renovada, libertadora, transformadora. No primeiro
caso, a história tende a fechar-se sobre si mesma, numa compreensão cíclica e
repetitiva (círculo vicioso); no segundo, seu horizonte permanece aberto às
novas potencialidades que estão em jogo. Exige uma tomada de posição, uma opção
que sempre pode acolher novas perspectivas direcionadas a um fim.
Na concepção de história
como crise, o “novo” é sempre um perigo a ser exorcizado, ao passo que na
concepção de história como encruzilhada o “novo” traz embutida uma oportunidade
de avanço, rompendo com os padrões tirânicos e catastróficos da mesmice. Esta
mesmice compõe-se, não raro, de injustiça e desigualdade, opressão e exploração.
Numa palavra, concentração de renda, riqueza e poder e, ao mesmo tempo,
pobreza, misérie, fome e exclusão social. Por isso, enquanto a visão que tem
como pano de fundo a noção de crise tende a ser conservadora, o conceito de
encruzilhada tem como perspectiva desencadear ações revolucionárias, abrindo
novas veredas no grande sertão da história – parafraseando a obra de Guimarães
Rosa.
Deixemos, uma vez mas, a
papalvra a Moltman: “O fato que este evento visto como ‘crise’ possua, por
outro lado, também o ‘novo’ é um fato que permanece ignorado. A filosofia da
história que assume o aspecto de filosofia da crise tem, portanto, um caráter
sempre conservador”. A crise, pessoal, social ou macro-histórica, é o momento do
pranto e do lamento. A dor e as lágrimas nos deixam cegos, mudos e surdos a
tudo e a todos. Instala-se uma forte tendência ao isolamento, ao fechamento
sobre si mesmo. Tornamo-nos como caramujos que, ameaçados e sem forças para
reagir, nos escondemos no próprio casulo; ou como a avestruz que, segundo a
lenda, na hora do perigo enterra a cabeça na areia. Em ambos os casos, o risco
desperta a reação de proteger-se naquilo que já é familiar, conhecido. Nada de
aventuras.
2.
“Levanta-te, come e anda porque o caminho é longo”
Mas, como bem o sabemos,
toda crise é ambígua, cheia de labirintos ignotos, entrelaçados e
inextrincáveis. Por uma parte, devido ao temor do desconhecido, pode levar ao
colo da mãe, ao berço aconchegante da infância, ao saudosismo do status quo, ao choro inconsolável e,
portanto, ao conservadorismo – comportamento que representa o lado negativo da
crise. Por outra parte, porém, a mesma crise é capaz de nos desafiar,
levando-nos a encarar novidades da fronteira, justamente na linha da auto-superação,
nma atitude de reação inovadora e não reacionária – o que significa o lado
positivo da mesma. Se é verdade que toda crise pode nos conduzir ao berço e, no
limite extremo, ao anulamento e à vontade de retornar ao seio materno, como nos
exemplos dos profetas Geremias e Jonas (neste último, simbolizado pelo retorno
ao ventre o peixe), também é certo que ela conduz boa parte das pessoas aos
desafios da encruzilhada, como o profeta Elias que, após uma crise, “sentou-se
debaixo de uma árvore e desejou a morte (...). Mas o anjo do Senhor o tocou e
disse: ‘levanta-te, come e anda porque o caminho é longo” (1Rs 19, 4-8).
O “anjo do Senhor” pode
ser um familiar, um amigo do peito, um companheiro de caminhada, uma pessoa com
mais experiência ou, pura e simplesmente, o impacto da realidade nua e crua,
onde milhões de pessoas continuam desfiguradas e crucificadas, à margem da vida
e da história. Quantas vezes, à beira do abismo, sós e isolados, ou às vésperas
de abandonar tudo e desistir da luta, sentimos um toque no ombro e uma voz que
nos sussurra: “Força e coragem, levanta a cabeça! Muita gente espera por você,
em frente!”. Faz lembrar a canção do grupo Noite Ilustrada: “Levanta, sacode a
poeira e dá a volta por cima”. Nos dias de hoje, em que os deslocamentos
humanos de massa se tornaram um fenômeno estrutural, não seria difícil imaginar
semelhante reviravolta, de natureza positiva, na tragetória turbulenta e
adversa dos migrantes, prófugos, refugiados, exilados, perseguidos, itinerantes
– quando o pesadelo da fuga se converte numa peregrinação em busca de cidadania
e pátria.
Num resumo um pouco
simplista, podemos afirmar que toda a crise costuma levar-nos ao berço,
deixando aí os fracos e desafiando os fortes a tomar novas decisões. Neste
caso, a crise torna-se fecunda; fértil, o árido deserto; o tronco ressequido,
engendra brotos vocejantes; a brasa, antes apagada, ressurge viva das cinzas; sobre
as ruínas e escombros, ergue-se um novo edifício... Surge uma luz inesperada no
fim do túnel. Retornando ao nosso binômio, a
crise pode sim converter-se em encruzilhada! Isso ocorre quanto cessa o
lamento, saímos à rua, enxugamos as lágrimas, levantamos a cabeça e... nos
defrontamos com um cruzamento múltiplo e variado de caminhos e oportunidades.
Então damo-nos conta que o momento crítico não representou o “fim do mundo”, mas
apenas uma fase difícil da travessia. E damo-nos conta, sobretudo, que várias outras
potencialidades estão em jogo.
“Deus fecha uma porta e
abre uma janela”, diz com razão o ditado popular.Temos a possibilidade de
escolha. As estradas se bifurcam e, diante de nossos olhos, apresenta-se a extraordináia
capacidade de optar. Antes tudo parecia escuro, o choro tolhia nossa vista;
agora o sol volta a brilhar e a nova aurora aponta uma série de horizontes. De
cabeça erguida, analisando as novas circunstâncias posteriores à crise, somos
capazes de tomar a vereda que nos parece mais adequada. O pranto, a mágoa e o
lamento impediam o raciocínio, agora podemos ver claro e fazer a escolha histórica
mais correta. Longe de atemorizar, o “novo” desperta novas energias, pesa e
avalia potencialidades até então ocultas e inéditas.
Por isso é que, para
finalizar, qualquer análise em meio a uma devastadora tempestade tende a
carregar as tintas do pessimismo, da mesma forma que a euforia desenfreada
acentua o lado otimista. Diante das turbulência do terremoto e das ondas
gigantes, nossa frágil embarcação se debate como casca de noz. Nada vemos, nada
ouvimos, não sabemos o que falar, inteiramente tomados pelo perigo do
naufrágio. Toda e qualquer tentativa não passa de braçadas de náufragos em meio
ao desespero. A escuridão e o mar bravio escondem a visão do porto e do farol,
as estrelas se apagaram no céu. A crise se faz viva e ameaçadora: não é o
momento adequado para decidir o rumo a ser tomado. Passada a tempestade, porém,
acalmadas as águas, com espírito mais sereno e sem a euforia de um entusiasmo
fácil e descabido... apresenta-se a encruzilhada. Agora, sim, é possível
enxergar mais longe. O farol e o porto podem ser vislumbrados à distãncia. O
tempo se faz maduro para uma decisão.
Roma, Itália, 26 de dezembro de 2013
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