terça-feira, 31 de dezembro de 2013

PREMISSA À ANÁLISE DE CONJUNTURA

Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS

São inúmeras as análises de conjuntura: anuais, mensais, semanais e até diárias... Tão variadas quanto os diferentes pontos de vista de quem as elabora e divulga. Nisso reside, ao mesmo tempo, uma riqueza e um limite. Enquanto a riqueza está no pluralismo das visões de mundo e dos enfoques adotados, o limite pode ser um relativismo onde tudo se nivela pela mesma medida. As múltiplas análises que desfilam pelos seminários, assembleias, encontros, cursos e reuniões, por um lado, ou que navegam diariamente pelo espaço virtual da Internet, por outro, são permeadas por essa ambiguidade. Querendo ou não, toda a tentativa de análise tem os pés no solo mutável e movediço da história, trazendo nas solas dos sapatos suas marcas, sejam estas pútridas ou sublimes. De fato, não é novidade que a história percorre seu curso sempre dilacerada por novas perguntas e respostas, por dúvidas e incongruências, por combates, contradições e jogos de interesse. Nem precisaria lembrar que a cabeça pensa a partir do que pisam os pés. Ou a partir do “lugar social” em que vivemos, trabalhamos e nos relacionamos.
Do parágrafo anterior resulta a consciência de que a neutralidade é uma farsa ou um mito. No substrato de toda forma de pensamento, ou de toda maneira de expressão, esconde-se um ponto de vista, o qual, de acordo com Leonardo Boff, “não passa da vista de um ponto”. O problema está justamente na fórmula esconde-se. Quando esse substrato se faz consciente e auto-reconhecido, abrindo-se à transparência do conteúdo e dos argumentos abordados, torna-se igualmente possível um diáogo entre as distintas formas de ver o mundo, os acontecimentos e a história. Mas, inversamente, quando prevalece a ideia da neutralidade, permanecendo ocultos o ponto de partida e a posição social e política, desenvolve-se necessariamente a pretensão da verdade absluta. Consciente ou inconscientemente, consolida-se a base para a tirania do “pensamento único” (tanto à esquerda quanto á direita), ou pior ainda, para o autoritarismo intelectual ou fundamentalismo que pode ser de ordem política, religiosa ou étnico-cultural (às vezes, tudo isso misturado). Além disso, a pressuposição da neutralidade, por ignorância ou má fé, presta-se às mais diferentes manipulações, como ocorre com os “ingênuos úteis”.
1.    Binômio crise/encruzilhada
Diante de semelhante ambiguidade no esforço de esclarecer a realidade dos fatos e boatos, tomo emprestado de J. Moltman uma observação que pode contribuir para uma análise mais real e menos ingênua dos acontecimentos (Cfr. Telogia da Esperança). Ou então, para balancear de forma mais correta a dose de pessimismo e otimismo de qualquer forma de visão social ou histórica. Diz o teólogo protestante alemão: “A palavra ‘crise’ mede o evento novo e incompreendido sobre a base da ordem tradicional da vida humana, que agora entrou em crise e encontra-se ameaçada, e por isso deve ser salva, conservada ou renovada. A expressão ‘crise’ refere-se sempre à ordem. A ‘crise’ põe em questão a ordem e, portanto, pode ser dominada somente mediante uma nova ordem”. Se entendemos bem as palavras do autor, no fundo implícito ou explícito do conceito de “crise” pode esconder-se um medo que paralisa toda e qualquer ação. Mais grave ainda, pode ativar uma reação retrógrada, no sentido de recuperar a todo custo um status quo perdido ou ameaçado. Entra em cena uma espécie de saudosismo do “paraíso perdido” que bloqueia o movimento em vista de mudanças urgentes e necessárias. Ao invés de um novo horizonte a ser conquistado, a concepção de crise pode desencadear um passo atrás na tentativa de manter tudo como está.
Neste perído de festas e de passagem de ano (2013-2014), quando as análises costumam tornar-se simultaneamente mais ambrangentes e mais numerosas, talvez seja útil introduzir aqui o binômio crise/encruzilhada, tendo presente a tensão dinâmica e dialética entre os dois termos. Reporto-me, evidentemente, a citação anterior de Moltman. Enquanto o conceito de crise supõe o rompimento de uma ordem e a necessidade de restabelecê-la o mais rápido possível, ou um esdtado de coisas a ser conservado custe o que custar, o conceito de encruzilhada pressupõe a existência de vários caminhos e, portanto, a possibilidade de escolha em vista de uma ação renovada, libertadora, transformadora. No primeiro caso, a história tende a fechar-se sobre si mesma, numa compreensão cíclica e repetitiva (círculo vicioso); no segundo, seu horizonte permanece aberto às novas potencialidades que estão em jogo. Exige uma tomada de posição, uma opção que sempre pode acolher novas perspectivas direcionadas a um fim.
Na concepção de história como crise, o “novo” é sempre um perigo a ser exorcizado, ao passo que na concepção de história como encruzilhada o “novo” traz embutida uma oportunidade de avanço, rompendo com os padrões tirânicos e catastróficos da mesmice. Esta mesmice compõe-se, não raro, de injustiça e desigualdade, opressão e exploração. Numa palavra, concentração de renda, riqueza e poder e, ao mesmo tempo, pobreza, misérie, fome e exclusão social. Por isso, enquanto a visão que tem como pano de fundo a noção de crise tende a ser conservadora, o conceito de encruzilhada tem como perspectiva desencadear ações revolucionárias, abrindo novas veredas no grande sertão da história – parafraseando a obra de Guimarães Rosa.
Deixemos, uma vez mas, a papalvra a Moltman: “O fato que este evento visto como ‘crise’ possua, por outro lado, também o ‘novo’ é um fato que permanece ignorado. A filosofia da história que assume o aspecto de filosofia da crise tem, portanto, um caráter sempre conservador”. A crise, pessoal, social ou macro-histórica, é o momento do pranto e do lamento. A dor e as lágrimas nos deixam cegos, mudos e surdos a tudo e a todos. Instala-se uma forte tendência ao isolamento, ao fechamento sobre si mesmo. Tornamo-nos como caramujos que, ameaçados e sem forças para reagir, nos escondemos no próprio casulo; ou como a avestruz que, segundo a lenda, na hora do perigo enterra a cabeça na areia. Em ambos os casos, o risco desperta a reação de proteger-se naquilo que já é familiar, conhecido. Nada de aventuras.
2.    “Levanta-te, come e anda porque o caminho é longo”
Mas, como bem o sabemos, toda crise é ambígua, cheia de labirintos ignotos, entrelaçados e inextrincáveis. Por uma parte, devido ao temor do desconhecido, pode levar ao colo da mãe, ao berço aconchegante da infância, ao saudosismo do status quo, ao choro inconsolável e, portanto, ao conservadorismo – comportamento que representa o lado negativo da crise. Por outra parte, porém, a mesma crise é capaz de nos desafiar, levando-nos a encarar novidades da fronteira, justamente na linha da auto-superação, nma atitude de reação inovadora e não reacionária – o que significa o lado positivo da mesma. Se é verdade que toda crise pode nos conduzir ao berço e, no limite extremo, ao anulamento e à vontade de retornar ao seio materno, como nos exemplos dos profetas Geremias e Jonas (neste último, simbolizado pelo retorno ao ventre o peixe), também é certo que ela conduz boa parte das pessoas aos desafios da encruzilhada, como o profeta Elias que, após uma crise, “sentou-se debaixo de uma árvore e desejou a morte (...). Mas o anjo do Senhor o tocou e disse: ‘levanta-te, come e anda porque o caminho é longo” (1Rs 19, 4-8).
O “anjo do Senhor” pode ser um familiar, um amigo do peito, um companheiro de caminhada, uma pessoa com mais experiência ou, pura e simplesmente, o impacto da realidade nua e crua, onde milhões de pessoas continuam desfiguradas e crucificadas, à margem da vida e da história. Quantas vezes, à beira do abismo, sós e isolados, ou às vésperas de abandonar tudo e desistir da luta, sentimos um toque no ombro e uma voz que nos sussurra: “Força e coragem, levanta a cabeça! Muita gente espera por você, em frente!”. Faz lembrar a canção do grupo Noite Ilustrada: “Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima”. Nos dias de hoje, em que os deslocamentos humanos de massa se tornaram um fenômeno estrutural, não seria difícil imaginar semelhante reviravolta, de natureza positiva, na tragetória turbulenta e adversa dos migrantes, prófugos, refugiados, exilados, perseguidos, itinerantes – quando o pesadelo da fuga se converte numa peregrinação em busca de cidadania e pátria.
Num resumo um pouco simplista, podemos afirmar que toda a crise costuma levar-nos ao berço, deixando aí os fracos e desafiando os fortes a tomar novas decisões. Neste caso, a crise torna-se fecunda; fértil, o árido deserto; o tronco ressequido, engendra brotos vocejantes; a brasa, antes apagada, ressurge viva das cinzas; sobre as ruínas e escombros, ergue-se um novo edifício... Surge uma luz inesperada no fim do túnel. Retornando ao nosso binômio, a crise pode sim converter-se em encruzilhada! Isso ocorre quanto cessa o lamento, saímos à rua, enxugamos as lágrimas, levantamos a cabeça e... nos defrontamos com um cruzamento múltiplo e variado de caminhos e oportunidades. Então damo-nos conta que o momento crítico não representou o “fim do mundo”, mas apenas uma fase difícil da travessia. E damo-nos conta, sobretudo, que várias outras potencialidades estão em jogo.
“Deus fecha uma porta e abre uma janela”, diz com razão o ditado popular.Temos a possibilidade de escolha. As estradas se bifurcam e, diante de nossos olhos, apresenta-se a extraordináia capacidade de optar. Antes tudo parecia escuro, o choro tolhia nossa vista; agora o sol volta a brilhar e a nova aurora aponta uma série de horizontes. De cabeça erguida, analisando as novas circunstâncias posteriores à crise, somos capazes de tomar a vereda que nos parece mais adequada. O pranto, a mágoa e o lamento impediam o raciocínio, agora podemos ver claro e fazer a escolha histórica mais correta. Longe de atemorizar, o “novo” desperta novas energias, pesa e avalia potencialidades até então ocultas e inéditas.
Por isso é que, para finalizar, qualquer análise em meio a uma devastadora tempestade tende a carregar as tintas do pessimismo, da mesma forma que a euforia desenfreada acentua o lado otimista. Diante das turbulência do terremoto e das ondas gigantes, nossa frágil embarcação se debate como casca de noz. Nada vemos, nada ouvimos, não sabemos o que falar, inteiramente tomados pelo perigo do naufrágio. Toda e qualquer tentativa não passa de braçadas de náufragos em meio ao desespero. A escuridão e o mar bravio escondem a visão do porto e do farol, as estrelas se apagaram no céu. A crise se faz viva e ameaçadora: não é o momento adequado para decidir o rumo a ser tomado. Passada a tempestade, porém, acalmadas as águas, com espírito mais sereno e sem a euforia de um entusiasmo fácil e descabido... apresenta-se a encruzilhada. Agora, sim, é possível enxergar mais longe. O farol e o porto podem ser vislumbrados à distãncia. O tempo se faz maduro para uma decisão.

Roma, Itália, 26 de dezembro de 2013

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