quarta-feira, 12 de outubro de 2011

MIGRAÇÃO COMO SINAL DOS TEMPOS



Migram as sementes nas asas do vento, migram as aves nas correntes sazonais, migram os peixes para se reproduzirem, migram os animais atrás de melhores ares e melhores pastagens... Enfim, migra o ser humano em busca de um futuro mais promissor. Assim se expressava o bispo de Piacenza, Itália, Dom João Batista Scalabrini, “pai e apóstolo dos migrantes” no final do século XIX. Tempo conturbado pela revolução industrial, marcado por grandes deslocamentos humanos, tanto do campo para a cidade quanto do velho continente europeu para as novas terras da América. Século do movimento, diz o historiador Peter Gay, que estima em 62 milhoes o número de emigrantes que deixam a Europa entre 1820 e 1920. Como o vento e as aves, que transportam o pólen para a geração de novas flores e frutos, também os seres humanos, em seus deslocamentos de massa, são portadores de sementes de vida nova. Diferentemente do vento e das aves, porém, os migranres, com os valores da própria trajetória histórica, fecundam terras, culturas e outros povos, ao mesmo tempo que recriam civilizações. Se é verdade que no coração de cada pessoa e no coração de cada cultura existem sementes do Verbo encarnado, o ato de migrar, por si só, constitui fator decisivo de evangelização. De maneira consciente ou inconsciente, o emigrante, individual ou coletivamente, leva consigo uma bagagem que servirá de intercâmbio para o enriquecimento dos povos. Daí a expressão do título, extraída de uma das mensagens do Papa Bento XVI para a Jornada Mundial das Migrações. A fome e a fuga Atualmente, por toda a extensão do planeta, milhões e milhões de pessoas estão em fuga. No Haiti, Somália, Bangladesh,Indonésia ou Tailândia, fogem de catástrofes naturais, tais como terremoto, inundações ou estiagens prolongadas. Nos países do norte da África ou Oriente Médio, onde se fala de uma primavera árabe, fogem da fúria de tiranias que, com unhas e dentes afiados, insistem em manter o poder a qualquer custo. Em outros países africanos, evitando serem trucidadas por ódios insanos, fogem de tensões, guerras fratricidas e genocídios. Em várias regiões da América Latina e da Ásia, fogem de situações socioeconômicas adversas, tais como a fome, a miséria e a falta de trabalho, ou de conflitos armados que colocam a população entre dois fogos: forças militares, de um lado, e guerrilheiros, de outro. Em não poucas partes do globo terrestre, fogem de enfrentamentos sangrentos, revestidos de uma roupagem ideológica, religiosa ou política. Há os que fogem, por uma parte, repelidos pela pobreza, de outra, atraídos pelas oportunidades do capital e das novas tecnologias, especialmente do hemisfério sul em direção ao hemisfério norte. E há, ainda, os que vivem e trabalham em constante deslocamento, tais como ciganos, marinheiros, caminhoneiros, aeroviários, técnicos, estudantes... São terremotos de toda ordem que geram tsunamis humanos em ondas cada vez mais expressivas e poderosas. Os rostos são muitos e muito variados: emigrantes/imigrantes, refugiados, itinerantes, deportados, exilados, prófugos, estrangeiros irregulares, migrantes temporários e/ou internos, trabalhadores de distintas categorias. Entrelaçadas são também as rotas que percorrem, cada vez mais complexas e diversificadas. Difícil hoje encontrar um país que não esteja envolvido com o fenômeno migratório, como lugar de origem, como lugar de destino, como lugar de trânsito, ou tudo isso ao mesmo tempo. As migrações tornam-se mais intensas em volume de pessoas e em diversidade de trajetórias. De acordo com estatísticas da ONU, estima-se em mais de 200 milhoes o número daqueles que não residem no país em que nasceram. Número subestimado, uma vez que, por um lado, não contabiliza os que se deslocam temporariamente ou dentro do próprio Estado e, por outro, não dá conta de abarcar a grande maré dos “sem papéis” ou indocumentados. No século XIX o êxodo rural ou os deslocamentos humanos tinham uma origem e um destino mais ou menos determinados. Também o movimento do nordeste para o sudeste industriazizado, no Brasil, a partir dos anos de 1930-40, obedecia a certo plano de mudar-se para “fazer o futuro”. Em ambos os casos, prevalecia uma desinstalação temporária com vistas a uma nova reinstalação. Como a uma árvore, arrancava-se a pessoa e/ou a família de suas raízes para replantá-la em outro terreno, em geral mais promissor. Muitos europeus e muitos nordestinos transplatavam-se, com o intuito de recomeçar a vida em um novo lugar. Estava mais ou menos implícita a idéia de migração definitiva. Sem dúvida, o sonho do retorno permanecia sempre muito vivo, mas podia ser adiando indefinidamente. Nas últimas décadas, porém, as migrações ocorrem de forma desordenada e repetitiva. Muitos migrantes empreendem sua trajetória por etapas, passando por vários países, com a meta sempre aberta e retomada de chegar a algum lugar definitivo, notadamente os Estados Unidos ou a Europa. Esse horizonte, porém, esbarra em numerosos entraves, tais como leis cada vez mais rígidas, particularmente depois dos atentados de 11 de setembro/2001, economias fragilizadas e instáveis, criminalização dos migrantes, barreiras aduaneiras... De tal forma que, mais do que uma migração simples, com saída e chegada previsíveis, prevalece hoje um vaivém contínuo e complexo, em todas as direçoes, que pode durar uma vida inteira. Cada ponto de chegada se converte em novo ponto de partida. Não raro, em lugar de meio para chegar a determinado lugar como fim, a migração se converte em um fim em si mesma. Vira uma espécie de modus vivendi. Crise da modernidade A fome e a fuga que caracterizam o contexto globalizado da mobilidade humana constituem o maior ponto de interrogação à chamada civilização ocidental. Filha dos “tempos modernos”, esta apontava positiva e euforicamente para as grandes utopias do século XIX. Em nome da razão, da ciência, da tecnologia, do progresso e da democracia (cinco conceitos que formam uma espécie de credo da modernidade), todos os ploblemas seriam resolvidos. O ser humano se emamcipa da tutela divina (Deus é uma hipótese descartável) e se lança à aventura de recriar um mundo sem injustiça, nem desigualdade ou violência. O ser humano desvenda os mistérios do universo, da naturaza, da história e do próprio corpo. Nas palabras de Weber, “o mundo se desencanta” e avança para conquistas inimagináveis. Mas esse ufanismo dos tempos modernos derrete-se no decorrer do século XX. “Tudo que é sólido se desmacha no ar”, profetizava já em 1948 o Manifesto Comunista. Inicia-se, ainda no final do século XIX, a “crise da modernidade” (Alain Touraine) com os filósofos da suspeita: Marx. Freud e Nietzsche. Inicia-se também a desconstrução do credo moderno e positivista. A barbárie retorna com toda a força: duas guerras mundiais, impérios e formas de colonização, conflitos localizados, a insanidade do holocausto, asimetrias cada vez mais profundas entre ricos e pobres, individualismo exacerbado… O que traz de volta o sagrado em uma multiplicidade de deuses no plural. As verdades se convertem em dúvidas, as respostas em novas interrogações. As perguntas são maiores que nossa capacidade humana de responder, o que caracteriza a crise. Parafraseando Simone Beauvoir, as estrelas se apagam no céu, os marcos desaparecem da estrada e o chão foge debaixo dos pés. A razão e a ciência engendram um mundo irracional, seja do ponto de vista socioeconômico, seja do ponto de vista político, cultural e ecológico. Razão, ciência e tecnologia, por sua vez, ao mesmo tempo que desenvolvem procedimentos medicinais de ponta, capazes de salvar e prolongar a vida humana e até animal, combinam-se para a criação das grandes máquinas de matar, verdadeiros monstros, com artefatos cada vez mais letais e sofisticados. As referências sólidas da modernidade se liquefazem juntamento com o contrato social, para usar os adjetivos de Zygmunt Bauman. Migração como “sinal dos tempos” Nesse cenário, as granes ondas migratórias, quais verdadeiros tsunamis causados pelos terremotos econômicos, políticos, sociais, culturais e naturais, aparecem como um “sinal dos tempos”, em dupla perspectiva. De um ponto de vista negativo, interpelam e denunciam uma civilização que sequer conseguiu oferecer, na terra natal, uma sobrevivência mínima a milhões de seres humanos. Desterrados do solo pátrio, erram pelas estradas do êxodo. Nem cidadãos deste ou daquele país, nem cidadãos do mundo. Trabalhadores para os serviços sujos e pesados, mas sem direito ao status de cidadania. Errantes que nos dirigem olhares e gestos silenciosos, mas nem por isso menos questionadores. O grito dos mutilados da história, dos sem voz e sem vez, justamente por seu silenciado, costuma vir carregado de apelos mais elocuentes. Em termos positivos, as migrações são um “sinal dos tempos” na medida em que clamam por mudanças. Mudanças urgentes, profundas, substanciais, seja em nível interno de cada nação, seja nas relações internacionais da economia mundializada. Neste caso, os migrantes entram em cena como profetas e protagonistas, às vezes sem o saber, da busca de alternativas. O simples fato de pôr-se a caminho, faz marchar a história. Movem-se e movem as engrenagens da sociedade em permanente mutação. Podem, com isso, apontar veredas novas para horizontes mais largos e abertos, plurais e democráticos, solidários e sustentáveis. Através do processo migratório, como uma entre as várias alternativas de sobrevivência, superam a fome e a fuga, caminhando em busca em de uma nova sociedade e, quem sabe, de uma nova civilização.

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