quarta-feira, 2 de maio de 2012

A libertação da alma negra


Com fim da escravidão em 1888, a ideia de “branquear” a população brasileira marcou o fim do século 19 e a primeira metade do século 20. O africano, negro e escravo seriam substituídos pelo europeu, livre e branco. Com essa estratégia das cabeças “pensantes” da época, entraram no Brasil cerca de 5,5 milhões de imigrantes, na sua maioria italianos e alemães. Começa assim o delírio bizarro de se criar uma Europa austral nos trópicos. Mas, por ironia, hoje a maioria da população brasileira deixou de ser branca, tornando-se negra e mestiça. Caiu por terra a tese da nascente sociologia brasileira, intérprete do evolucionismo darwinista que chamava a mestiçagem de “depravação” e os mulatos de “a ralé do gênero humano”. À época da abolição, o Estado e a igreja, assim como os senhores ou já ex-senhores, entregaram os libertos à própria sorte. No campo, eles não tinham terras para cultivar. Na cidade, não recebiam educação, nem instrução técnica para se engajar no novo mundo produtivo. Foi assim que ex-escravos e descendentes de escravos chegaram ao século 20. Não apenas em estado de pobreza ou de miséria, mas, sobretudo, sem os instrumentos indispensáveis à superação de tal situação. Vale dizer, condenados ao subproletariado urbano. Hoje, ninguém mais, neste país, acha que vive numa democracia racial. As histórias românticas de Gilberto Freyre, o mito Xica da Silva, dos negros que se enriqueceram graças as oportunidade dadas a todos, como Chico Rei nas minas de Ouro Preto, tudo isso serviu para dissimular um hipotético ingresso dos descendentes de escravos na “ordem social competitiva”. Na verdade, o que vimos, foi crescer a subcidadania, formando uma ralé e um intenso processo de afastamento das massas negromestiças da moderna sociedade brasileira.

Não somos uma democracia racial, mas podemos vir a ser. A histórica decisão do Supremo Tribunal Federal de reconhecer o uso de cotas raciais, ou de bônus, em algumas universidades, pode ser um fator de democratização do acesso à riqueza, à cultura e ao poder. Uma das mais graves discriminações ocorre quando o direito de ser educado de uma pessoa é atingido. No país temos 1,2 milhões de estudantes nas escolas públicas de ensino superior e três milhões nas particulares. Seria necessário triplicar os recursos para o atendimento de toda a demanda. Os vestibulares são altamente seletivos. Quem faz o ensino elementar e médio em boas escolas pagas e passa por um ranqueado “cursinho”; o bem-nascido que não precisa trabalhar para se dedicar somente aos estudos, e foi bem alimentado desde criancinha, esse cara tem privilégios. Desde a primeira Constituição Brasileira é assegurado desde o preâmbulo que “todos são iguais perante a lei”. Talvez por isso o Estado e a sociedade brasileira demoraram a perceber que o princípio de igualdade de todos perante a lei não é suficiente para defender uma ordem social justa e democrática. As desigualdades foram acumuladas no processo histórico. “Aliás, quando afirmamos que todos são iguais perante a lei, é preciso responder a duas perguntas: a) a igualdade entre quem: e b) igualdade em quê? Todos são iguais, porém alguns são mais iguais do que outros.” (Norberto Bobbio, Igualdade e Liberdade). A Constituição contempla várias ações afirmativas, ou seja, discriminações positivas, pela finalidade de inclusão social dos segmentos historicamente excluídos. A Carta protege o portador de deficiências, o idoso, a mulher, o homossexual, a criança e o adolescente. Mais uma forma de ação afirmativa é a Lei 10.173/01, na qual se deu prioridade de tramitação aos procedimentos judiciais onde figure como parte, pessoas com idade igual ou superior a 65 anos. É verdade que os indígenas, os deficientes, os pobres, enfim, todos os vulneráveis também merecem ingressar em universidades. Também é verdade que seria apocalíptico um tribunal racial para decidir quem é negro. É fundamental que a sociedade reconheça a existência das desigualdades sociais e exija medidas do poder público por ações compensatórias.

O autor, Zarcillo Barbosa, é jornalista e colaborador do JC


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