O fenômeno migratório tornou-se uma realidade amplamente conhecida e notória. No contexto da economia globalizada, da revolução dos transportes e das telecomunicações, cresceu substancialmente o número de pessoas em mobilidade, ao mesmo tempo em que se diversificaram os lugares de origem, trânsito e destino, como também se complexificaram suas rotas, raízes e consequências. Para usar uma expressão do Erga Migrantes Caritas Christi, Instrução do Pontifício Conselho da Pastoral para os migrantes e os itinerantes, com frequência hoje nos deparamos com “os mil rostos do outro”. As migrações e a mobilidade do trabalho passaram a fazer parte de qualquer análise da conjuntura nacional e mundial. Unanimemente, converteram-se num dado indispensável no xadrez intricado e dinâmico do mapa mundial.
“As migrações hodiernas” – afirma o documento em sua apresentação – “constituem o maior movimento de pessoas de todos os tempos. Nessas últimas décadas tal fenômeno, que envolve cerca de duzentos milhões de pessoas, transformou-se em realidade estrutural da sociedade contemporânea e constitui um problema cada vez mais complexo do ponto de vista social, cultural, político, religioso, econômico e pastoral”. Na cifra de duzentos milhões, citada pelo texto, estão contabilizados somente os que ultrapassaram as fronteiras de uma ou mais nações, ou seja, que residem fora do país em que nasceram. Some-se a isso o sem número de trabalhadores temporários e/ou sazonais; dos migrantes internos, especialmente no êxodo do campo para a cidade; dos vivem ou trabalham em situação de mobilidade (nômades, ciganos, marítimos, aeroviários, caminhoneiros, etc.), dos prófugos, refugiados ou “desplazados” pela violência, muitas vezes confinados seja em campos dentro do próprio território nacional, seja em países limítrofes, e assim por diante.
Menos unânime é a forma com que se recebe ou se convive com a presença do “outro, estranho, diferente”. Aqui se mesclam, se confundem e se alternam acolhida e rechaço, agregação e segregação, abertura e discriminação. Tanto as políticas migratórias em geral quanto os agentes que lidam diretamente com os imigrantes/migrantes sofrem no coração e na alma as tensões, conflitos e contradições inerentes ao crescimento do vaivém global e em todas as direções. Exemplo concreto dessas inquietações muitas vezes insolúveis têm sido os Fóruns Internacional sobre Migração e Paz, promovidos pelo SIMN (Scalabrini International Migration Network).
No primeiro deles, por exemplo, realizado em Antígua, Guatemala, de 29 a 30 de janeiro de 2009, a dialética entre uma a visão das migrações como problema ou como oportunidade está explícita do próprio slogan: Fronteiras, muros ou pontes? A abordagem do Fórum e de suas edições posteriores, por si só, desloca o foco da atenção para o binômio migração e paz, diferente de outros pontos de vista, onde os deslocamentos humanos registram-se, antes de tudo, com a categoria de uma problemática a exigir soluções das autoridades públicas e civis. Bem sabemos que o olhar sobre os migrantes, em praticamente todos os países e regiões, costuma oscilar de acordo com a falta ou excesso de mão-de-obra fácil e barata, para os serviços mais pesados, sujos, perigosos e mal remunerados
Cabe a essa altura tomar de emprestado algumas intuições de Antonietta Potente, uma religiosa e teóloga italiana que vive e leciona em Cochabamba, Bolívia. É bem verdade que a atmosfera de sua argumentação relaciona-se mais com a espiritualidade e a ética do que com a sociologia, a análise e a pastoral das migrações (Cfr. POTENTE, Antonietta. Um bene fragile – Riflessioni sull’etica, Ed. Oscar Mondadori, Roma, Itália). Mas suas observações revelam-se muito pertinentes para quem lida com os deslocamentos humanos de massa e com os indivíduos neles implicados. Também vale alertar que no capítulo em questão, as reflexões giram em torno do ambiente da biblioteca, “lugar de circulação de ideias, se saberes; encruzilhada de perspectivas e de experiências de fé, de soluções e de buscas para repensar a história”. A teóloga aproveita o movimento invisível entre os personagens que se encontram por trás dos livros para ampliar o leque de suas observações ao fenômeno migratório. Todo o livro, de resto, caminha entre os diversos ambientes de uma casa, procurando, em casa um deles, tecer considerações entre mística, moral e ética.
Num primeiro momento, a autora põe a nu as “constantes hemorragias migratórias” que costumam convergir para onde se acumula o capital e as oportunidades de trabalho, comprometendo com isso os países de origem. Estes ao fortalecerem os centros nevrálgicos de uma economia sem fronteiras, enfraquecem ainda mais seus próprios territórios com a chamada “fuga de cérebros”. “O curso da história contemporânea é caracterizado por longas e intermináveis migrações através de territórios infinitos e de distâncias líquidas do nosso planeta”, diz Potente. E lembra que não se pode negar aos pobres dos países subdesenvolvidos o direito de “procurar espaços de dignidade socioeconômica, êxodos insistentes para buscar respiro e liberdade”.
Apesar dos gritos silenciosos e mutilados que se espalham pelos caminhos do “êxodo e diáspora”, insiste a religiosa, “o fenômeno migratório paradoxalmente é um retorno à casa, um fenômeno de re-colocação da humanidade”. Ou seja, enquanto a concorrência alucinada por lucros e capital desenraiza e desloca milhões de trabalhadores, estes procuram com desespero um novo ambiente, uma “nova casa”, onde cultivar as raízes da dignidade humana. Nesta perspectiva, a mobilidade humana amplia o conceito de pátria. O que coincide com o pensamento de J. B. Scalabrini (bispo de Piacenza, Itália – 1835-1905), considerado o “pai e apóstolo dos migrantes”. De acordo com o prelado, “para o migrante, a pátria é a terra que dá o pão”.
Mas o texto que vimos citando vai mais além: o fenômeno migratório contribui para romper os muros e legislações (visíveis ou invisíveis) que nos separam. “não se trata então de estabelecer o que fazer com esta multidão em movimento” – diz a autora – “mas de perguntar-se quem são e de onde vêem. E é justamente aqui que aflora outro aspecto: a diversidade e a identidade. A busca de melhores condições de vida e novas oportunidades é o ponto de partida de uma busca muito mais intensa e profunda: descoberta das identidades e descolonizações dos mundos. Descolonizações não só territoriais, mas também intelectual, cultural, econômica de um mundo pensado à luz de modelos de poder, de conquista, monocultural e monoreligioso”.
A autora associa ao deslocamento maciço das pessoas a possibilidade de “emigrar em direção a um pensamento trans-disciplinar, trans-cultural, trans-religioso, superando as múltiplas dicotomias da vida”. E explica que o prefixo “trans”, diferentemente do prefixo “inter” (em latim ‘em meio a’), indica um movimento, um passar através, um percurso, um deslocamento de um lugar a outro, um superar limites, fronteiras, barreiras, um vaivém no espaço próprio e do outro”. Migrar, acolher quem chega e estudar os fenômenos humanos, enfim, abre a consciência a “éticas alternativas, desloca a atenção de nós mesmos à realidade que nos circunda, fazendo-nos descobrir novos horizontes”.
Por fim, Antonietta Potente contrasta, uma frente à outra, duas compreensões do fenômeno migratório. Parte da pergunta: “Quem é o outro?”. E responde: “o outro não é mão-de-obra, nem um potencial prosélito religioso, nem mercadoria sexual, nem um simples necessitado”. Em outras palavras, não é aquele estranho e exótico que levou não poucos colonizadores (Estados, religiosos, pesquisadores...) a vê-lo como um objeto de exploração e conversão, de museu e de observação, objeto de estudo. “O outro tem alma” – prossegue a autora – “capacidade de iniciativa, consciência de si e do mundo; sabe mover-se na história, sabe como interagir com o ambiente e aproveitar das oportunidades que se lhes oferecem”.
Nunca é apenas vítima do sistema econômico mundial, concentrador e excludente a um tempo, mas também sujeito, protagonista de alternativas, profeta de um futuro renovado. Ao pôr-se a caminho, faz mover a própria história, denunciando condições adversas no lugar em que nasceu e buscando condições propícias numa nova pátria. “O outro” – conclui Potente – “não é só um ‘bisognoso’ e não será mais estrangeiro se reconhecermos a diversidade como uma nova riqueza; a diversidade e a identidade ganham grande relevância na atual fase histórica”.
Das intuições de Potente, conclui-se que o (i)migrante, refugiado, itinerante, prófugo, marítimo, enfim, todo aquele que caminha, nos interpela enquanto “outro”. Outro que, longe de ser uma mercadoria a ser explorada (ponto de vista do capital) ou um incomodo problema (ponto de vista da legislação migratória), é alguém que nos inquieta e interroga como oportunidade de intercâmbio (ponto de vista evangélico). Traz consigo valores e contravalores, os quais, se e quando confrontado com os nossos, abre uma espiral dinâmica e dialética de mútuo enriquecimento.
Como ponto final, podemos recorrer às palavras do “apóstolo dos gentios”, ou seja, o missionário itinerante de todos os povos: “Vocês, portanto, já não são estrangeiros nem hóspedes, mas concidadãos do povo de Deus e membros da família de Deus. Vocês pertencem ao edifício que tem como alicerce os apóstolos e profetas. E o próprio Jesus Cristo é a pedra fundamental dessa construção” (Ef 2,19-20).
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
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