terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Haitianos têm igrejas, bares e lan house em bairros de Cuiabá

Annous Saint-Fleur, dono do bar Même Amour, frequentado pela comunidade haitiana em Cuiabá: “Aqui todos estão recebendo seguro-desemprego e esperando alguém contratá-los para alguma diária" (Foto: André Souza/G1)


Pelo menos seis bairros de Cuiabá se transformaram com a chegada das aproximadamente duas mil pessoas da comunidade haitiana vivendo na capital mato-grossense. A maioria chegou durante os preparativos para a Copa do Mundo de 2014 em busca de oportunidades de trabalho e de um recomeço na vida após o terremoto que devastou o país caribenho em 2010.
Bairros como Planalto, Jardim Eldorado, Carumbé, Bela Vista, Pedregal e Sol Nascente concentram casas e condomínios residenciais ocupados pelos imigrantes, bem como estabelecimentos e espaços de convivência frequentados majoritariamente por eles, como bares, igrejas e até lan house.

 Avenida dos Trabalhadores: haitianos se
concentraram na região (Foto: André Souza/G1)


O que esses bairros têm em comum é a proximidade com a sede da Pastoral do Migrante, entidade filantrópica de referência para os estrangeiros que aportam em Cuiabá, e o fato de estarem todos no entorno da Avenida Dante Martins de Oliveira (Avenida dos Trabalhadores), responsável pela ligação entre a parte leste da cidade – com conjuntos residenciais de aluguel mais acessível - e o centro.

Há pelo menos três anos, os imigrantes haitianos fazem parte da paisagem para quem passa pela Avenida dos Trabalhadores: estão presentes nos pontos de ônibus, caminhando pelas calçadas, em bares e lanchonetes, fazendo compras nos mercados e trabalhando nos estabelecimentos da região, integrando-se aos poucos à população local e constituindo a própria comunidade fora do Haiti.
 Imigrantes haitianos fazem fila para serem atendidos na Pastoral do Migrante, em Cuiabá. Local serve de apoio para os estrangeiros em suas primeiras necessidades ao chegar à capital (Foto: André Souza/G1)

Estudo por amostragem realizado em 2014 pela Secretaria estadual de Educação (Seduc) revelou que 77% dos haitianos em Cuiabá escolheram a região da Avenida dos Trabalhadores para viver.
A maioria – 36% - optou pelo bairro Planalto; outros 16% escolheram o Carumbé; 11% foram para o Bela Vista; 7%, para o Pedregal; 5%, para o Jardim Eldorado; e 2% optaram por residir no Sol Nascente.

De olho nas necessidades dos imigrantes, lan house oferece serviços específicos para eles, como ligações telefônicas internacionais (Foto: André Souza/G1)Da Pastoral ate Lan House Até chegar a esses bairros, parte significativa desses haitianos passou – e ainda passa – pela sede da Pastoral do Migrante, entidade não-governamental que oferece auxílio a estrangeiros.
Localizada no bairro Carumbé, a unidade já recebeu mais de 2,5 mil haitianos desde os preparativos para a Copa do Mundo em Cuiabá.
Isso porque, entre as primeiras necessidades desses imigrantes na capital, está a obtenção de um emprego. A Pastoral ajuda os estrangeiros a conseguirem a documentação necessária, como a Carteira de Trabalho, e divulga vagas disponíveis em Mato Grosso. "Eles vêm em busca de orientação todos os dias, eles batem aqui para ver se tem vaga [de emprego]. Se você disser 'olha, tem uma vaga de emprego', chove gente aqui", relata Marilete Mulinari Girardi, auditora do Trabalho.
O contato com a família que ficou no Haiti também é fundamental - e é aí que entram estabelecimentos como a lan house Degaule El Muya, na Avenida das Trabalhadores.
Além de computadores com acesso à internet, o local oferece ligações telefônicas internacionais para o Haiti e outros países, como França, Canadá, Estados Unidos, Guiana, Peru, Venezuela, Equador, Chile e Senegal.
Cartaz em parede de lan house convida haitianos a se matricularem em curso gratuito de alfabetização de jovens e adultos (Ceja) (Foto: André Souza/G1) Nas adjacências da Avenida dos Trabalhadores, o cruzamento das ruas 15 e 21 - no bairro Jardim Eldorado - é mais um produto da concentração da comunidade haitiana na região. Ali está um dos pontos de encontro diário dos estrangeiros, o bar Même Amour, mantido pelo haitiano Annous Saint-Fleur, há três anos em Cuiabá.

Segundo ele, que abre o bar todos os dias e fecha geralmente à meia-noite, cerca de 90% dos frequentadores são seus conterrâneos.
“Aqui todos estão recebendo seguro-desemprego e esperando alguém contratá-los para alguma diária”, revela o comerciante, que atende toda a freguesia pelo nome. E Annous é uma referência para eles: estabilizado e há mais tempo em Cuiabá que a maioria, ajuda-os com informações e contatos para encontrarem um lugar para morar e outro para trabalhar.
 “A maioria dos haitianos que eu conheço está aqui [no Jardim Eldorado]. Mas, se você sair daqui e falar meu nome, todos me conhecem”, aposta. Ao redor do bar de Annous estão condomínios e quitinetes divididos por brasileiros e haitianos, que relatam preços de aluguel na ordem de R$ 300.
A poucos metros do bar, também se encontra a Igreja Presbiteriana do Jardim Eldorado, dedicada à comunidade haitiana.
A igreja estava fechada até janeiro de 2014, quando foi reaberta pelos presbiterianos na capital graças à chegada do missionário haitiano Beethoven Charleston. Hoje, os cultos de domingo chegam a reunir cerca de 120 pessoas.

Occen Saint-Fleur passa em frente à igreja presbiteriana da comunidade haitiana, no bairro Jardim Eldorado, em Cuiabá: ele se casou ali e, hoje, mora de aluguel em um imóvel logo ao lado (Foto: André Souza/G1)

Segundo o pastor Charleston, o público é 100% haitiano e assiste às celebrações em francês e crioulo. Quando algum pastor visitante comparece, Charleston entra em ação para traduzir o sermão aos fiéis.
E este não é o único templo cristão dedicado aos imigrantes em Cuiabá. Paralela à Avenida dos Trabalhadores, a Avenida Gonçalo Antunes de Barros abriga uma unidade da Assembléia de Deus que não deixa dúvidas sobre seu público-alvo: logo na entrada um cartaz dá detalhes sobre o "pwogram" da igreja, com horários de escola dominical, cultos e outras atividades. O templo foi fundado em março de 2015 para atender aos fiéis haitianos que vivem nas proximidades. Os cultos são realizados em português e traduzidos para o idioma crioulo.

Moradores do 'reduto'

E também é nesse "microcosmo" haitiano que se encontram relatos das dificuldades que grande parte desses imigrantes têm vivido em Cuiabá. Histórias como as de Occen Saint-Fleur, de 32 anos, e Ralph Françoise, de 25, refletem a realidade atual da imigração na capital.
Vivendo a poucos metros do bar mora o irmão do proprietário do bar Même Amour, Occen. Atualmente desempregado, ele chegou a Cuiabá em 2012 e tem cumprido uma trajetória similar à dos conterrâneos na capital. "No Haiti sobrou pouco trabalho depois do terremoto. Então eu vim para cá procurar uma vida melhor”, conta.
Assim como a maioria dos haitianos, o primeiro passo de Occen em Cuiabá foi procurar a Pastoral do Imigrante, que recebe grande parte dos estrangeiros. Lá, ele chegou a se hospedar por cerca de um mês até conseguir o primeiro emprego, de pedreiro.

 Occen Saint-Fleur, desempregado, hoje vive com aesposa, auxiliar de limpeza (Foto: André Souza/G1)

“Quando eu cheguei, não tinha amigo, não conhecia ninguém. Eles me ajudaram muito”, lembra. Na construção civil, Occen recebia salário de R$ 800, pagava o aluguel de R$ 300 em uma quitinete no bairro, pagava outras contas e, com o que sobrava – cerca de R$ 400 – ajudava os familiares no Haiti, onde também deixou uma namorada.
Após um tempo no Brasil, Occen custeou a viagem da namorada, com quem se casou em 2013 na igreja presbiteriana da comunidade haitiana. Hoje, o casal reside em uma casa alugada por R$ 400 por mês logo ao lado da igreja em que se uniu.
O imóvel, de quatro cômodos, foi todo mobiliado pelos dois, mas atualmente é a esposa de Occen, que trabalha como auxiliar de limpeza, a responsável pela renda do casal - com seu salário de R$ 700. “Tem dois meses que eu estou sem emprego. Já deixei vários currículos, mas, até agora, nada”, lamenta Occen, desempregado e sem conseguir enviar mais dinheiro aos familiares em seu país.


É também no Jardim Eldorado que vive Ralph Françoise, de 25 anos. Desde 2012, quando chegou em Cuiabá ele divide uma quitinete de dois cômodos com dois primos – um deles já residia no Jardim Eldorado antes de Ralph chegar.
Em junho ele se envolveu em um acidente de trabalho em uma fábrica onde trabalhava e perdeu parte de dois dedos da mão direita. Agora, vive na incerteza da indenização. “Aqui eu não tenho ninguém para me ajudar nessas questões, para dizer se eu tenho direito à indenização", reclama.
Ralph Françoise já tem um advogado para tentar resolver o problema da indenização, mas, até lá, enfrenta dificuldades para se manter. Antes do acidente, ele trabalhou na obra de reforma do Aeroporto Marechal Rondon, em Várzea Grande, região metropolitana de Cuiabá.
A maior parte da renda foi para os familiares no Haiti, onde deixou um filho de quatro anos. Dos R$ 900 que ganhava na época, cerca de R$ 400 iam para pagar o aluguel e a conta de energia. Hoje, ele mal tem dinheiro para manter ouvir a voz dos familiares pelo telefone. “Um crédito de R$ 25 no celular dura só seis minutos. Pela internet é mais fácil mesmo”.


G1 Matto Grosso 

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