Pe.
Alfredo J. Gonçalves, CS
Nas últimas 48 horas, cerca de 4 mil imigrantes, refugiados e prófugos
desembarcaram no sul da Itália. Desde janeiro até agora, já são mais de 15 mil.
As autoridades italianas calculam que, na outra margem do Mediterrâneo,
especialmente na Líbia, entre 300 a 600 mil pessoas, aguardam uma oportunidade
para cruzar o mar. A Itália continua a recebê-los, mas o sistema de acolhida e
“primeiros socorros” encontra-se saturado, prestes a entrar em colapso. De
resto, o governo italiano não se cansa de afirmar que o Mediterrâneo é uma
fronteira de toda a Europa, não apenas dos países do sul. Mesmo na Itália, entretanto,
vários setores insistem no combate à “imigração clandestina”, como é o caso do
partido Lega Nord.
E a Comunidade Europeia, o que faz? Os representantes dos demais países
europeus seguem em geral a “política da avestruz”: enterrar a cabeça na areia
para não ver os problemas em redor. Ou seja a política de fechar os olhos e os
ouvidos, erguer os ombros e lavar as mãos, numa preocupante indiferença. Convém
reconhecer, por outro lado, que não são poucos os imigrantes que hoje percorrem
as ruas de Paris, Berlim, Londres, Madrid, Lisboa, Amsterdam... Os
“extra-comunitários”, como são pejorativamente denominados, pressionam de todos
os lados. Afinal de contas, como bem sabemos, a luta pela sobrevivência ou por
um destino menos perverso, faz parte do sonho, da dignidade e da superação de
toda pessoa humana.
Se, a esse quadro da zona europeia, acrescentamos o que ocorre atualmente
nas fronteiras da América do Norte, América Central e América do Sul; se, em
seguida, fazemos o retrato dos movimentos migratórios em toda a região
asiática, incluindo a Austrália e Nova Zelândia; se, ainda, tomamos nas mãos
uma fotografia do vaivém da imensa quantidade de migrantes no interior dos
países africanos, árabes ou do Médio Oriente; e se, por fim, assistimos ao
desfile interminável de fugitivos da pobreza e do desemprego, bem como os
refugiados da violência, da guerra ou das adversidades climáticas... As
previsões são alarmantes. Entre deslocamentos internos e internacionais,
estima-se que o número de migrantes poderá crescer dos atuais 232 milhões a 450
milhões em 2050.
A razão é que a economia mundial, em seu processo de globalização, está
enferma. Igualmente enfermas estão as relações internacionais, particularmente
no que diz respeito à política trabalhista, à política do meio ambiente e às
políticas migratórias. O núcleo da economia política de matriz neoliberal
concentra-se sobre dois objetivos hoje fortemente questionados: em primeiro
lugar, progresso tecnológico e crescimento da produção de bens ao lado do
consumo, o que leva ao acúmulo indiscriminado de renda, riqueza e poder nas
mãos de poucoas pessoas, grupos ou nações; em segundo lugar, e como
consequência do primeiro, exploração dos recursos naturais, das fontes de
energia e da força de trabalho humana até seus limites suportáveis (ou
insuportáveis!). O câncer instalou-se co coração mesmo do organismo!
O resultado não poderia ser diferente. Um sistema enfermo revela uma febre
progressiva que se faz presente em todo o organismo. Os sintomas são conhecidos
e notórios, visíveis mesmo a olho nu. Primeiramente, o planeta se desnuda. “Terra
nua” é uma expressão que remete ao terreno preparado para o plantio da nova
safra, tera pronta à fecundação. Nos dias atuais, porém, a mesma expressão
parece adquirir outro significado: a terra se desnuda de suas vestes naturais,
como que prostituida pelo avanço do domínio humano sobre seu corpo frágil.
Disso resultam provas que a “política da avestruz” (também neste caso) não pode
mais ignorar, sob pena de perecer junto com sua mãe-terra: devastação crescente
e incontrolável das florestas e extinção de não poucas espécies de fauna e
flora, comprometendo irreversivelmente o equilíbrio dos ecossistemas; contaminação
do solo e do subsolo por sunstâncias químicas de alta periculosidade; desertificação
de enormes áreas geográficas, até então agricultáveis; poluição dos oceanos,
das águas e do ar, com danos irreparáveis à qualidade de vida; aquecimento
global, seguido do recrudescimento de calamidades ditas “naturais” (furacões,
nevascas, inundações...); opção pelo agrocombustível, com consequências imprevisíveis
para a produção de alimentos e a conservação do meio ambiente; desperdício e
falta de reciclagem de numerosos bens/produtos... Enfim, uma série de sintomas
que leva os estudiosos, entidades ambientalistas e a opinião pública a
propugnar por “uma economia social e ecologicamente sustentável”.
Ao lado dos sintomas ecológicos, digamos, a febre se revela também no
intenso deslocamento de seres humanos. Movimentos cada vez mais complexos e
diversificados cobrem praticamente todos os países do planeta. Os migrantes
pressionam as fronteiras, e as rompem, não por curiosidade, mas sobretudo pelas
precárias condições de vida e trabalho nos lugares em que nasceram; infringem
as leis, e as superam, não porque são criminosos e violentos, mas para fugir a
tantas formas de violência que golpeiam suas famílias; constroem pontes entre o
pólo de origem e os países de destino, e as transitam, não porque lhes agrade
esse vaivém sem fim, mas porque teimam em viver, mais que sobreviver; põem-se a
caminho, e nele enfrentam marchas forçadas, não porque abandonam a resistência,
mas ao contrário, porque são movidos pela fé e pela esperança de horizontes
mais largos.
A “política da avestruz”, no caso da mobilidade humana, não raro veste a
roupagem da ideologia de segurança nacional ou, pior ainda, do protecionismo
aos “nossos trabalhadores, ameaçados pela onda de estrangeiros”. Aqui vale
lembrar que a própria linguagem nunca é neutra. Quando se refere à migração em
termos de “onda”, “invasão” (e palavras smilares), a impressão é de que
esse modo de falar simultaneamente vela
e revela um medo oculto, do qual é necessário proteger-se. De fato a onda,
quando intensa, pode representar um tsunami que devasta tudo que encontra pela
frente. Vale perguntar-se pela possibilidade de substituir a visão negativa de
migrante como probema por uma
concepção positiva de encontro com o
outro. Encontro que pode representar intercâmbio de valores no
enriquecimento recíproco e na construção da paz.
O grande desafio é como gestir a mobilidade humana planetária e
progressiva, sem contradizer o direito de ir e vir, por um lado, e sem forçar
multidões de seres humanos ao desterro e à diáspora, por outro. Uma coisa
parece óbvia: a “goverrnabilidade” das migrações, se é possível falar assim,
está suborninada a uma correspondente “governabilidade” do movimento de
capital, mercadorias, tecnologia e serviços em geral. Impossível facilitar o
processo de globalização econômica e, ao mesmo tempo, erguer muros, leis e
barreiras à circulação dos trabalhadores. Estes tendem, e sempre tenderão, a
acompanhar as oportunidades que a política econômica mundial cria e recria. A
desregulação do capital financeiro (virtual, andorinha, volátil) e o
deslocamento centrífugo da produção mundial, por exemplo, não podem conviver com
a restrição ao movimento dos trabalhadores. Capital e trabalho continuam sendo
duas faces da mesma moeda, uma vez que o primeiro depende do segundo para se
multiplicar. E como ponto final, talvez não seja exagero afirmar que a força e
o valor dos migrantes, entre tantas outras medidas, constituem um remédio para
a economia enferma.
Roma,
Itália, 10 de abril de 2014
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