sexta-feira, 18 de abril de 2014

PÁSCOA: FONTE DE VIDA NOVA


Pe. Alfredo J. Gonçalcves, CS

Páscoa representa vida nova. Eis um dos maiores desejos de todas as pessoas, expresso com frequência nas mensagens pascais. O calendário, aliás, entre outras, tem essa função: abre espaço e tempo para refazer laços entorpecidos e recomeçar a vida. Natal, Páscoa, dia de ação de graças, festas cívicas, etc. oportunizam um renovação mais ou menos generalizada. O desejo de vida nova, porém, ao mesmo tempo pressupõe e esconde uma vida velha, existência em declínio, marcada pela rotina que paralisa. De fato, o cotidiano costuma desgastar as relações que, com fios invisíveis e frágeis, tentamos costurar no tecido social: família, amizade, vida comunitária... A engrenagem dos relacionamentos se enferruja, destilando não raro tédio desconfiança, asfixia e até veneno. Quantas vezes lhe falta o óleo lubrificador que faz a máquina funcionar sem “ranger os dentes”. Como se o outono estivese batendo à porta, anunciando o frio do inverno. Resignação, comodismo e inércia costumam ser os sintomas desse processo de envelhecimento precoce.
Disso resulta a necessidade de uma injeção de ânimo, no sentido de rejuvenescer o corpo e o espírito. Acomodar-se é ceder o terreno ao inimigo invisível mas inexorável. De onde provém a energia que nos renova e nos faz retomar o caminho? A resposta é simples e direta: só o amor pode reanimar um organismo em decadência. Só o amor é capaz de conferir vitalidade a uma existência ferida pela necrose progressiva. A necrose, como sabemos, mutila e mata as células de um membro ou de determinada parte do organismo. Se não for diagnosticada a tempo, estende-se a outras áreas e pode conduzir à sua total destruição. Uma a uma, lenta e irremediavelmente, as céulas vão sendo devoradas pelo espectro silencioso e avassalador da morte.
“Eu vim para que todos tenham vida” – diz Jesus Cristo – “e a tenham em abundância” (Jo 10,10). Aí está o mistério mais profundo da encarnação, vida, obra, morte e ressurreição de Jesus. O tempo litúrgico da Páscoa relembra e celebra esse dom da vida em plenitude. A presença do Filho que “se fez carne e armou sua tenda entre nós” (Jo 1,1-18) revela o amor incondicional do Pai. Revela-o sobretudo no Mistério Pascal. Primeiro, no alto da cruz, onde, em meio às dores e à tortura mais atroz, Jesus é capaz de perdoar seus assassinos. Na contramão do “olho por olho, dente por dente”, o crucificado mostra que, diante da violência humana mais atroz, a vingança de Deus é o amor. Revela-o, em segundo lugar, na ressurreição, arrancando o Filho das garras e das trevas da morte e conferindo-lhe uma vida nova cujo brilho e cuja glória não terão fim.
Como uma espécie de descarga elétrica, o amor sacode o organismo entorpecido e o chama novamente à ação. Num olhar retrospectivo à história da salvação, desde o Antigo Testamento até a Nova Aliança, constatamos que Deus irrompe na trajetória humana, quebra as cadeias da tirania e o jugo da opressão, para abrir novas veredas no horizonte. Da excravidão no Egito em direção à travessia do deserto e à liberdade na Terra Prometida – eis o projeto de Deus. Em termos mais reduzidos, mas não menos importantes, o mesmo pode ocorrer nas relações interpessoais, familiares, comunitárias, sociais ou politico-culturais. O amor nos liberta da rotina e da mesmice, conferindo-nos o milagre de descobrir-nos novos a cada manhã. Nada é mais vigoroso e vital para a existência do que a novidade de uma pessoa que ama. Na intimidade do próprio coração, no interior da família ou na tarefa da vida comunitária – tal pessoa irradia um brilho que fascina e transforma. Verdadeiro óleo lubrificador em meio a engrenagens bloqueadas pela ação do tempo.
Como o sol e a aurora, os pássaros e as crianças, as flores e o céu azul, a música da brisa e das águas – acordamos para o dia que nasce com uma alma nova, livre, aberta e transparente. Uma alma que, antes curvada e oprimida sobre si mesma, ganha asas para voar, pés para caminhar e mãos para saudar e abençoar a luz que renasce. Por isso será capaz de assobiar e cantar, sorrir e distribuir um “bom dia” à direita e à esquerda, mesmo com o risco de aparentar loucura. Seu semblante reflete e transborda a energia que lhe enche o coração e a alma. O olhar de quem ama confere, ao mesmo tempo, um colorido inédito às coisas e às pessoas e um tempero novo à vida. Quem ama retira energias do mais íntimo de si mesmo para recriar a natureza e as relações humanas, bem como para reorientar seus projetos, seus caminhos e seus passos.
Mas vale repetir a pergunta: qual a origem e a fonte de tais energias vitalizadoras? Não, o dom da alegria e da bondade, da misericórdia e da entrega não provém da natueza humana. Esta, ao contrário, é marcada por um egoísmo e egocentrismo de difícil superação, chegando às vezes a um narcisismo exacerbado. Normalmente vivemos concentrados sobre nossos desejos e paixões, nossos impulsos e interesses, quando não doentiamente envenenados por mágoas, medos e ressentimentos. A resposta deve ser procurada em outro lugar, outra instância ou em outro Ser. E novamente aqui é simples e direta: a luz e o amor têm origem em Deus. Na verdade, como lembra a Doutrna Social da Igreja, “no coração de cada pessoa e no coração de cada cultura existem sementes do Verbo”. Fazendo-nos à sua imagem e semelhança, o Criador dotou-nos de tais sementes, as quais, porém, em grande parte dos casos, permanecem encobertas pelas cinzas ou asfixiadas pela cizânia do pecado e da morte.
O amor compassivo do “profeta itinerante de Nazaré”, e em especial o mistério de sua morte e ressurreição, revela-nos a imensa misericórdia do Pai, mas revela-nos igualmente os dons e talentos da pessoa humana. Jesus, humano-divino e divino-humano, é a revelação simultânea de Deus e do Homem. Em seu ministério público e, com maior luz no Mistério Pascal, desvenda a face oculta do Pai em seu infinito amor, e desvenda igualmente as potencialidades encobertas do ser humano na sua capacidade de doar-se, de “ser para o outro”. Se o amor de Deus pode ser comparado ao sol que tudo ilumina e vivifica, o homem/mulher, a exemplo da lua, é chamado a refletir e irradiar o seu brilho pela face da terra. A obtusidade e o individualismo da condição humana, porém, em lugar de espelho lunar que reflete os raios solares, pode provocar um eclipse, ofuscando a luz e o brilho da vida que nos é oferecida como máximo dom.
Em conclusão, a vida, morte e ressurreição de Jesus nos sacode do torpor e da inércia. Desperta-nos para esse tesouro que carregamos “em vasos de argila”, como lembra o apóstolo Paulo (2Cor 4,7). Se o colocamos a serviço dos outros, em especial dos pobres, doentes, indefesos, marginalizados, excluídos – “os necessitados, os pequenos, os últmos”, diria o Papa Francisco – então sim, a Páscoa terá sabor de vida nova! Sabor de vida nova não só em termos pessoais, familiares e comunitários, mas também em âmbito social, político e cultural. Isso porque, vale insistir, nada é mais sedutor e contagiante, libertador e revolucionário do que uma pessoa que ama. Por ser luz, ou reflexo da Luz divina, expande por onde passa seus raios e seu brilho. Portadora natural da felicidade, aquece os corações desesperançados, reanima as almas atribuladas e fecunda a terra estéril. A liberdade toma o lugar da escravidão, as trevas detêm-se diante da luz, o deserto torna-se fértil, a solidão se povoa e a cruz cede lugar á ressurreição. É Páscoa, é vida nova!


Roma, Itália, 17 de abril de 2014

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