Pe. Alfredo J. Gonçalcves, CS
Páscoa representa vida
nova. Eis um dos maiores desejos de todas as pessoas, expresso com frequência nas
mensagens pascais. O calendário, aliás, entre outras, tem essa função: abre
espaço e tempo para refazer laços entorpecidos e recomeçar a vida. Natal,
Páscoa, dia de ação de graças, festas cívicas, etc. oportunizam um renovação
mais ou menos generalizada. O desejo de vida
nova, porém, ao mesmo tempo pressupõe e esconde uma vida velha, existência em declínio, marcada pela rotina que paralisa.
De fato, o cotidiano costuma desgastar as relações que, com fios invisíveis e
frágeis, tentamos costurar no tecido social: família, amizade, vida
comunitária... A engrenagem dos relacionamentos se enferruja, destilando não
raro tédio desconfiança, asfixia e até veneno. Quantas vezes lhe falta o óleo
lubrificador que faz a máquina funcionar sem “ranger os dentes”. Como se o
outono estivese batendo à porta, anunciando o frio do inverno. Resignação,
comodismo e inércia costumam ser os sintomas desse processo de envelhecimento
precoce.
Disso resulta a
necessidade de uma injeção de ânimo, no sentido de rejuvenescer o corpo e o
espírito. Acomodar-se é ceder o terreno ao inimigo invisível mas inexorável. De
onde provém a energia que nos renova e nos faz retomar o caminho? A resposta é
simples e direta: só o amor pode reanimar um organismo em decadência. Só o amor
é capaz de conferir vitalidade a uma existência ferida pela necrose progressiva.
A necrose, como sabemos, mutila e mata as células de um membro ou de
determinada parte do organismo. Se não for diagnosticada a tempo, estende-se a
outras áreas e pode conduzir à sua total destruição. Uma a uma, lenta e
irremediavelmente, as céulas vão sendo devoradas pelo espectro silencioso e
avassalador da morte.
“Eu vim para que todos
tenham vida” – diz Jesus Cristo – “e a tenham em abundância” (Jo 10,10). Aí
está o mistério mais profundo da encarnação, vida, obra, morte e ressurreição
de Jesus. O tempo litúrgico da Páscoa relembra e celebra esse dom da vida em
plenitude. A presença do Filho que “se fez carne e armou sua tenda entre nós”
(Jo 1,1-18) revela o amor incondicional do Pai. Revela-o sobretudo no Mistério
Pascal. Primeiro, no alto da cruz, onde, em meio às dores e à tortura mais
atroz, Jesus é capaz de perdoar seus assassinos. Na contramão do “olho por
olho, dente por dente”, o crucificado mostra que, diante da violência humana
mais atroz, a vingança de Deus é o amor. Revela-o, em segundo lugar, na
ressurreição, arrancando o Filho das garras e das trevas da morte e conferindo-lhe
uma vida nova cujo brilho e cuja glória não terão fim.
Como uma espécie de descarga
elétrica, o amor sacode o organismo entorpecido e o chama novamente à ação. Num
olhar retrospectivo à história da salvação, desde o Antigo Testamento até a
Nova Aliança, constatamos que Deus irrompe na trajetória humana, quebra as
cadeias da tirania e o jugo da opressão, para abrir novas veredas no horizonte.
Da excravidão no Egito em direção à travessia do deserto e à liberdade na Terra
Prometida – eis o projeto de Deus. Em termos mais reduzidos, mas não menos importantes,
o mesmo pode ocorrer nas relações interpessoais, familiares, comunitárias,
sociais ou politico-culturais. O amor nos liberta da rotina e da mesmice, conferindo-nos
o milagre de descobrir-nos novos a cada manhã. Nada é mais vigoroso e vital
para a existência do que a novidade de uma pessoa que ama. Na intimidade do
próprio coração, no interior da família ou na tarefa da vida comunitária – tal
pessoa irradia um brilho que fascina e transforma. Verdadeiro óleo lubrificador
em meio a engrenagens bloqueadas pela ação do tempo.
Como o sol e a aurora,
os pássaros e as crianças, as flores e o céu azul, a música da brisa e das
águas – acordamos para o dia que nasce com uma alma nova, livre, aberta e
transparente. Uma alma que, antes curvada e oprimida sobre si mesma, ganha asas
para voar, pés para caminhar e mãos para saudar e abençoar a luz que renasce.
Por isso será capaz de assobiar e cantar, sorrir e distribuir um “bom dia” à
direita e à esquerda, mesmo com o risco de aparentar loucura. Seu semblante
reflete e transborda a energia que lhe enche o coração e a alma. O olhar de
quem ama confere, ao mesmo tempo, um colorido inédito às coisas e às pessoas e
um tempero novo à vida. Quem ama retira energias do mais íntimo de si mesmo
para recriar a natureza e as relações humanas, bem como para reorientar seus
projetos, seus caminhos e seus passos.
Mas vale repetir a
pergunta: qual a origem e a fonte de tais energias vitalizadoras? Não, o dom da
alegria e da bondade, da misericórdia e da entrega não provém da natueza
humana. Esta, ao contrário, é marcada por um egoísmo e egocentrismo de difícil
superação, chegando às vezes a um narcisismo exacerbado. Normalmente vivemos
concentrados sobre nossos desejos e paixões, nossos impulsos e interesses,
quando não doentiamente envenenados por mágoas, medos e ressentimentos. A
resposta deve ser procurada em outro lugar, outra instância ou em outro Ser. E
novamente aqui é simples e direta: a luz e o amor têm origem em Deus. Na
verdade, como lembra a Doutrna Social da Igreja, “no coração de cada pessoa e
no coração de cada cultura existem sementes do Verbo”. Fazendo-nos à sua imagem
e semelhança, o Criador dotou-nos de tais sementes, as quais, porém, em grande
parte dos casos, permanecem encobertas pelas cinzas ou asfixiadas pela cizânia
do pecado e da morte.
O amor compassivo do
“profeta itinerante de Nazaré”, e em especial o mistério de sua morte e ressurreição,
revela-nos a imensa misericórdia do Pai, mas revela-nos igualmente os dons e
talentos da pessoa humana. Jesus, humano-divino e divino-humano, é a revelação
simultânea de Deus e do Homem. Em seu ministério público e, com maior luz no
Mistério Pascal, desvenda a face oculta do Pai em seu infinito amor, e desvenda
igualmente as potencialidades encobertas do ser humano na sua capacidade de
doar-se, de “ser para o outro”. Se o amor de Deus pode ser comparado ao sol que
tudo ilumina e vivifica, o homem/mulher, a exemplo da lua, é chamado a refletir
e irradiar o seu brilho pela face da terra. A obtusidade e o individualismo da
condição humana, porém, em lugar de espelho lunar que reflete os raios solares,
pode provocar um eclipse, ofuscando a luz e o brilho da vida que nos é
oferecida como máximo dom.
Em conclusão, a vida,
morte e ressurreição de Jesus nos sacode do torpor e da inércia. Desperta-nos
para esse tesouro que carregamos “em vasos de argila”, como lembra o apóstolo
Paulo (2Cor 4,7). Se o colocamos a serviço dos outros, em especial dos pobres,
doentes, indefesos, marginalizados, excluídos – “os necessitados, os pequenos,
os últmos”, diria o Papa Francisco – então sim, a Páscoa terá sabor de vida
nova! Sabor de vida nova não só em termos pessoais, familiares e comunitários,
mas também em âmbito social, político e cultural. Isso porque, vale insistir,
nada é mais sedutor e contagiante, libertador e revolucionário do que uma
pessoa que ama. Por ser luz, ou reflexo da Luz divina, expande por onde passa
seus raios e seu brilho. Portadora natural da felicidade, aquece os corações
desesperançados, reanima as almas atribuladas e fecunda a terra estéril. A
liberdade toma o lugar da escravidão, as trevas detêm-se diante da luz, o
deserto torna-se fértil, a solidão se povoa e a cruz cede lugar á ressurreição.
É Páscoa, é vida nova!
Roma, Itália, 17 de abril de 2014
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