quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Presos em trânsito

Para muitos emigrantes subsarianos que tentam entrar na União Europeia, a viagem para a Europa termina numa estadia semipermanente em Marrocos, onde a polícia, financiada por programas da União Europeia, viola os direitos humanos, relata um jornalista a trabalhar sob disfarce.

Ibrahim, da Gâmbia, remou para o que achava serem águas espanholas e ligou para a Guarda Costeira, a pedir para ser resgatado. Entregaram-no à guarda costeira marroquina e está agora em Tânger. Amadu, dos Camarões, tentou escalar a cerca da fronteira, no enclave espanhol deMelilha. “Os polícias marroquinos batem-nos com os cassetetes”, conta. Levaram-no com outros 35 através da fronteira com a Argélia, perto da cidade de Uída, a 120 quilómetros dali, e despejaram-nos lá. Agora, de regresso a Marrocos, a vida é muito dura, numa floresta, dependente da mesquita local para comer.
Reunir depoimentos destes homens e de outros como eles, não é fácil. Escondem-se em bairros miseráveis e nas florestas. Carregam as cicatrizes que já vi nos emigrantes carentes por todas as fronteiras da Europa: cicatrizes de agressões racistas, cicatrizes de correrem pelos escombros para fugir da polícia. Têm a roupa rasgada e a fadiga profunda que acompanham uma vida passada principalmente ao relento.
Marrocos tornou-se uma das principais rotas da emigração ilegal com origem na África subsariana e com destino à Europa
Marrocos tornou-se uma das principais rotas da emigração ilegal com origem na África subsariana e com destino à Europa. Segundo o último relatório do Frontex, o corpo da União Europeia que trata da imigração, cerca de 1000 pessoas nadaram, navegaram ou infiltraram-se com sucesso em Espanha, nos primeiros três meses deste ano. Mas há cerca de 20 mil que ficaram presas naquilo a que o relatório do Institute for Public Policy Research chama “mito da travessia”.
Direitos humanos dos emigrantes violados
A União Europeia está agora a pagar efetivamente dezenas de milhões de euros por ano a Marrocos para manter os emigrantes fora do seu território. Um porta-voz da Comissão Europeia recusou-se a especificar os montantes atuais, dizendo que o dinheiro é usado para “melhorar as condições das autoridades marroquinas... em diferentes domínios da emigração, incluindo a gestão de fronteiras”.
O problema é que a polícia marroquina está constantemente a violar os direitos humanos dos migrantes. Os emigrantes são levados por grupos organizados, seja atravessando a Mauritânia até à costa marroquina, seja através do sul da Argélia, atravessando o Níger ou o Mali. A rota mais cara é por barco a partir de Tânger. O preço é de 450 euros, pagos a comerciantes locais – o pacote inclui um colete salva-vidas e um remo – e implica uma jornada frenética na escuridão, com saída de uma praia logo a norte da cidade. Cada emigrante que conheci em Tânger conhecia alguém que tinha morrido afogado.
O exército estava envolvido numa gigantesca operação de limpeza da floresta montanhosa perto da fronteira
Para contar a história dos emigrantes, tive de trabalhar sob disfarce. Em Marrocos, é preciso ter uma licença para usar câmara de vídeo e, apesar de a ter solicitado em maio, as autoridades exigiram persistentemente “mais tempo para organizarem as coisas”. Quando cheguei à cidade de Nador, no nordeste de Marrocos, percebi o que estavam a organizar. O exército estava envolvido numa gigantesca operação de limpeza da floresta montanhosa perto da fronteira, onde os emigrantes tinham instalado acampamentos. Na estrada de montanha paralela à cerca da fronteira, vi soldados – com esquadrões estacionados de cem em cem metros –, a controlar cada curva da estrada e cada manilha de escorrências que lhe passa por baixo, com um soldado olhando sempre atentamente em redor. Mais acima, pelotões avançavam em linha, escrutinando por entre a vegetação.
Um relatório dos Médicos Sem Fronteiras, deste ano, especifica “um forte aumento de tratamentos degradantes e abusivos, e da violência” da polícia e de grupos de criminosos sobre os imigrantes, incluindo um nível “chocante” de violência sexual. Entre aqueles que conheci, isso apenas aumentou a sua determinação em escapar para Norte.
União Europeia financia a operação
Duas práticas específicas exigem uma resposta da União Europeia, que está a financiar esta operação. A primeira é o alegado regresso ao território marroquino de foragidos de barco, apanhados em águas espanholas, o que viola o direito de asilo. O segundo é o despejo de emigrantes detidos em Marrocos em terrenos baldios do outro lado da fronteira com a Argélia, o que é claramente ilegal. A ironia está em que Marrocos é uma fonte importante de imigração na União Europeia, tanto legal como ilegal. Os milhares de casas vazias que assinalam as zonas suburbanas das suas cidades atestam a saída de 4,5 milhões de cidadãos. Algumas dessas casas representam barracas prontas a habitar para os emigrantes de outras partes de África.
Em Tânger, num desses bairros miseráveis, com a chaleira ao lume e cerca de 12 homens a descansar sobre pedaços de almofada e cobertores, perguntam-me: “Porque estão os europeus tão determinados a manter-nos afastados?” Respondo-lhes com a brutal verdade: porque muitos brancos pobres acham que vocês lhes vão roubar os empregos, reduzir-lhes os salários e destruir a sua cultura.
Os homens olham intrigados. Ibrahim diz: “Mas eles foram para o meu país e apoiaram o Presidente, o bandido que está a destruí-lo e a tornar impossível vivermos lá.” Os homens estão ao corrente do racismo que vão ter de enfrentar, se chegarem à Europa, mas dizem que é pior ali.
Para a maioria, não é a perseguição política, mas a penúria que os arrasta para Norte
Para a maioria, não é a perseguição política, mas a penúria que os arrasta para Norte. É um móbil económico. Mustapha e Josui são pedreiros em Dacar. Têm um primo em Limoges, em França, e pensam que vão encontrar trabalho lá. Com 78 mil travessias ilegais de fronteira para a Europa no ano passado, têm razões para pensar que têm uma possibilidade não negligenciável de chegar lá.
Para a Europa, faz todo o sentido aumentar a capacidade de Marrocos para policiar o seu lado da fronteira. É um Estado semipolicial, sem princípios: há operações stop a poucos quilómetros umas das outras, cautelosamente afastadas dos entrepostos de contrabando de gasolina e dos consumidores de haxixe. Mas não faz sentido a Europa tolerar infrações aos direitos dos emigrantes. Salvo, evidentemente, narepressão ao exílio grego, tudo está projetado para desprezar maciçamente o compromisso oficial de tratamento legal e humano, e para travar a travessia. Quanto melhor o Frontex trabalhar, mais a pressão aumenta em países como Marrocos, que manifestam pouca consideração pelos direitos humanos e pelos enormes problemas de pobreza de outras populações. A diferença é que, desde que seja para lá das fronteiras físicas da Europa, desaparece a responsabilidade – e até mesmo a capacidade de relatar os factos.
Traduzido por Ana Cardoso Pires

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