Para muitos emigrantes subsarianos
que tentam entrar na União Europeia, a viagem para a Europa termina numa
estadia semipermanente em Marrocos, onde a polícia, financiada por programas da
União Europeia, viola os direitos humanos, relata um jornalista a trabalhar sob
disfarce.
Ibrahim, da Gâmbia, remou para o que
achava serem águas espanholas e ligou para a Guarda Costeira, a pedir para ser
resgatado. Entregaram-no à guarda costeira marroquina e está agora em Tânger.
Amadu, dos Camarões, tentou escalar a cerca da fronteira, no enclave espanhol
deMelilha.
“Os polícias marroquinos batem-nos com os cassetetes”, conta. Levaram-no com
outros 35 através da fronteira com a Argélia, perto da cidade de Uída, a 120
quilómetros dali, e despejaram-nos lá. Agora, de regresso a Marrocos, a vida é
muito dura, numa floresta, dependente da mesquita local para comer.
Reunir depoimentos destes homens e de outros como eles, não é fácil.
Escondem-se em bairros miseráveis e nas florestas. Carregam as cicatrizes que
já vi nos emigrantes carentes por todas as fronteiras da Europa: cicatrizes de
agressões racistas, cicatrizes de correrem pelos escombros para fugir da
polícia. Têm a roupa rasgada e a fadiga profunda que acompanham uma vida
passada principalmente ao relento.
Marrocos tornou-se uma das principais rotas da emigração ilegal com
origem na África subsariana e com destino à Europa
Marrocos tornou-se uma das principais
rotas da emigração ilegal com origem na África subsariana e com destino à
Europa. Segundo o último relatório do Frontex,
o corpo da União Europeia que trata da imigração, cerca de 1000 pessoas
nadaram, navegaram ou infiltraram-se com sucesso em Espanha, nos primeiros três
meses deste ano. Mas há cerca de 20 mil que ficaram presas naquilo a que o
relatório do Institute for Public Policy Research chama “mito da travessia”.
Direitos humanos dos emigrantes
violados
A União Europeia está agora a pagar efetivamente dezenas de milhões de
euros por ano a Marrocos para manter os emigrantes fora do seu território. Um
porta-voz da Comissão Europeia recusou-se a especificar os montantes atuais,
dizendo que o dinheiro é usado para “melhorar as condições das autoridades
marroquinas... em diferentes domínios da emigração, incluindo a gestão de
fronteiras”.
O problema é que a polícia marroquina está constantemente a violar os
direitos humanos dos migrantes. Os emigrantes são levados por grupos
organizados, seja atravessando a Mauritânia até à costa marroquina, seja
através do sul da Argélia, atravessando o Níger ou o Mali. A rota mais cara é
por barco a partir de Tânger. O preço é de 450 euros, pagos a comerciantes
locais – o pacote inclui um colete salva-vidas e um remo – e implica uma
jornada frenética na escuridão, com saída de uma praia logo a norte da cidade.
Cada emigrante que conheci em Tânger conhecia alguém que tinha morrido afogado.
O exército estava envolvido numa gigantesca operação de limpeza da
floresta montanhosa perto da fronteira
Para contar a história dos emigrantes, tive de trabalhar sob disfarce.
Em Marrocos, é preciso ter uma licença para usar câmara de vídeo e, apesar de a
ter solicitado em maio, as autoridades exigiram persistentemente “mais tempo
para organizarem as coisas”. Quando cheguei à cidade de Nador, no nordeste de
Marrocos, percebi o que estavam a organizar. O exército estava envolvido numa
gigantesca operação de limpeza da floresta montanhosa perto da fronteira, onde
os emigrantes tinham instalado acampamentos. Na estrada de montanha paralela à
cerca da fronteira, vi soldados – com esquadrões estacionados de cem em cem
metros –, a controlar cada curva da estrada e cada manilha de escorrências que
lhe passa por baixo, com um soldado olhando sempre atentamente em redor. Mais
acima, pelotões avançavam em linha, escrutinando por entre a vegetação.
Um relatório dos Médicos
Sem Fronteiras, deste ano, especifica “um forte aumento de tratamentos
degradantes e abusivos, e da violência” da polícia e de grupos de criminosos
sobre os imigrantes, incluindo um nível “chocante” de violência sexual. Entre
aqueles que conheci, isso apenas aumentou a sua determinação em escapar para
Norte.
União Europeia financia a operação
Duas práticas específicas exigem uma resposta da União Europeia, que
está a financiar esta operação. A primeira é o alegado regresso ao território
marroquino de foragidos de barco, apanhados em águas espanholas, o que viola o
direito de asilo. O segundo é o despejo de emigrantes detidos em Marrocos em
terrenos baldios do outro lado da fronteira com a Argélia, o que é claramente
ilegal. A ironia está em que Marrocos é uma fonte importante de imigração na
União Europeia, tanto legal como ilegal. Os milhares de casas vazias que
assinalam as zonas suburbanas das suas cidades atestam a saída de 4,5 milhões
de cidadãos. Algumas dessas casas representam barracas prontas a habitar para
os emigrantes de outras partes de África.
Em Tânger, num desses bairros miseráveis, com a chaleira ao lume e cerca
de 12 homens a descansar sobre pedaços de almofada e cobertores, perguntam-me:
“Porque estão os europeus tão determinados a manter-nos afastados?”
Respondo-lhes com a brutal verdade: porque muitos brancos pobres acham que
vocês lhes vão roubar os empregos, reduzir-lhes os salários e destruir a sua
cultura.
Os homens olham intrigados. Ibrahim diz: “Mas eles foram para o meu país
e apoiaram o Presidente, o bandido que está a destruí-lo e a tornar impossível
vivermos lá.” Os homens estão ao corrente do racismo que vão ter de enfrentar,
se chegarem à Europa, mas dizem que é pior ali.
Para a maioria, não é a perseguição política, mas a penúria que os
arrasta para Norte
Para a maioria, não é a perseguição política, mas a penúria que os
arrasta para Norte. É um móbil económico. Mustapha e Josui são pedreiros em
Dacar. Têm um primo em Limoges, em França, e pensam que vão encontrar trabalho
lá. Com 78 mil travessias ilegais de fronteira para a Europa no ano passado,
têm razões para pensar que têm uma possibilidade não negligenciável de chegar
lá.
Para a Europa, faz todo o sentido
aumentar a capacidade de Marrocos para policiar o seu lado da fronteira. É um
Estado semipolicial, sem princípios: há operações stop a poucos quilómetros
umas das outras, cautelosamente afastadas dos entrepostos de contrabando de
gasolina e dos consumidores de haxixe. Mas não faz sentido a Europa tolerar
infrações aos direitos dos emigrantes. Salvo, evidentemente, narepressão ao
exílio grego, tudo está projetado para desprezar maciçamente o compromisso
oficial de tratamento legal e humano, e para travar a travessia. Quanto melhor
o Frontex trabalhar, mais a pressão aumenta em países como Marrocos, que
manifestam pouca consideração pelos direitos humanos e pelos enormes problemas
de pobreza de outras populações. A diferença é que, desde que seja para lá das fronteiras
físicas da Europa, desaparece a responsabilidade – e até mesmo a capacidade de
relatar os factos.
Traduzido por Ana
Cardoso Pires
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