“Temos de entender esse ir e vir das
populações do mundo inteiro como sendo casos de pessoas que são dotadas de
igualdades e que todos nós temos direito à vida”, diz a historiadora.
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Um fenômeno global, os fluxos migratóriosdemonstram a
“dificuldade de olhar para o outro (...) porque a cultura do eu com a cultura
do outro sempre cria um choque, o qual gera um estranhamento”, diz Rosana
Schwartz à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida
por telefone.
Ao comentar as constantes migrações que
têm ocorrido no mundo todo, seja nos países da Europaou da América Latina, a pesquisadora
lembra que esse processo “não é novo”, mas para entender como e por que ele
acontece em grande escala, “temos de analisar quais são os fatores que têm
gerado tanto a expulsão quanto a atração de pessoas para os países x ou y”.
No caso dos haitianos que migram
para o Brasil, exemplifica, “por quais razões eles saíram de seu
país de origem e por que eles migram para o Brasil?”. Para ela, somente a
partir da “investigação” desse tipo de questão é que se poderá “criar” um
“diálogo entre a sociedade e os governos” para encontrar maneiras de evitar
conflitos e garantir a vida dos imigrantes nos novos destinos.
Na avaliação dela, um dos aspectos
que explica a intensificação das migrações é o fato de “não
existirem condições de as pessoas ficarem e sobreviverem em seus países de
origem; basta ver os problemas sociais, econômicos e políticos que o Haiti tem.
Então, as pessoas tentam a sorte em outros locais. No caso da Itália,
ocorre o mesmo: o país tem recebido inúmeras pessoas que não têm mais condições
de viver em seus países de origem”.
Rosana salienta
ainda que em momentos de crise, como é o caso da crise econômica,
que afeta vários países da Europa e mesmo o Brasil, as posições em relação aos
imigrantes “são mais radicais, porque as pessoas dos países que recebem esses
imigrantes pensam que eles irão tirar o lugar delas nos postos de trabalho, no
atendimento à saúde, etc. Então, quando abala os direitos sociais, o preconceito acaba surgindo”. Parte da resolução dos
conflitos que surgem, pontua, pode ser resolvida a partir de políticas
internacionais que evitem a “xenofobia e o nacionalismo exacerbado”.
Rosana Schwartz é doutora em
História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, mestre em
Educação, Artes e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie
– UPM e graduada em História pela PUC/SP. Atualmente leciona na Universidade
Presbiteriana Mackenzie.
Confira a entrevista.
Foto: redevida.com.br
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IHU On-Line - Em artigo recente a senhora chama atenção para o
preconceito velado e desvelado contra os haitianos. Como o preconceito tem se
manifestado no Brasil em relação aos imigrantes?
Rosana Schwartz – O preconceito é maior nas
regiões Sudeste e Sul, onde se teve uma integração maior do imigrante europeu
branco no processo civilizatório. A vinda desses imigrantes para o Brasil é
fruto de uma proposta do governo da época — embora fosse um absurdo —, para que
houvesse um processo de branqueamento da raça brasileira no século XIX e início
do século XX. Então, o imigrante veio não só para trabalhar
nos postos de trabalho existentes após a abolição da escravatura, mas também
por conta desse processo de branqueamento.
De modo geral temos aquela ideia de
que eles vieram para o país e fizeram riqueza, porque tinham mais capacidade de
trabalho, mas isso não é verdade; trata-se de mais um preconceito que existe em
relação aos imigrantes. Muitos deles viveram em situações de penúria e sofreram
muito com o preconceito à época: o italiano foi chamado de
carcamano, outros de galegos. A elite brasileira não aceitava
os imigrantes, porque eles não eram provenientes das classes abastadas da
Europa, mas, sim, eram os trabalhadores empobrecidos que, por causa de guerras
ou crises econômicas, migraram. Posteriormente, eles não puderam voltar para
seus países de origem, porque não tinham dinheiro.
Tudo isso é importante para mostrar
que o brasileiro não foi tão amistoso no seu passado, ao contrário do que
parece, já que fomos construindo uma imagem de que o brasileiro está sempre
confraternizando e de braços abertos para os imigrantes. Pelo contrário, nós os rejeitamos, e os colocamos à mercê, em condições de penúria e, somente depois
houve uma incorporação muito lenta das culturas dos imigrantes europeus e, por
fim, a aceitação.
É importante também mencionar que
existia, no século XIX, a ideia de que o europeu, o homem branco, era superior.
Esse discurso foi adotado no Brasil e, apesar da situação dos
imigrantes, eles não deixaram de ser europeus e eram considerados
superiores.
IHU On-Line - Quais as causas do
preconceito?
Rosana Schwartz – As principais
causas estão ligadas a essas teorias do século XIX, as quais diziam que o homem
europeu e branco era superior tanto em relação à mulher quanto num sentido
cívico, intelectual e no processo de civilização. São teorias extremamente
complicadas, que foram trazidas para o Brasil antes do período da República,
especialmente pelos positivistas, quando se acreditava que a sociedade
brasileira poderia chegar ao progresso a partir de uma ordem, de um progresso e
de um olhar europeu. É por conta dessa influência que até hoje continuamos
olhando a história com o olhar europeu e estudamos muito mais a história de
países como França, Inglaterra, Itália, do que a do nosso próprio país, porque
há esse deslocamento para o eurocentrismo.
A outra causa é o próprio processo
de escravidão. O Brasil teve o processo de escravidão mais longo, já que aabolição no
país data de 1888, mas mesmo assim demorou muito tempo para que ela fosse
efetivada de fato. Quando ocorreu a abolição, os donos de escravos receberam
indenizações do Estado, porque estavam perdendo ferramentas de trabalho — um
absurdo — e, durante muito tempo, esses ex-escravos viveram à margem da sociedade,
porque não existia nenhum projeto de inclusão social pós-abolição
e, de outro lado, existia a proibição de ex-escravos comprarem propriedades e
terras. É por conta disso que muitos ex-escravos, africanos libertos e
descendentes de africanos libertos, vão viver em regiões periféricas das
grandes cidades.
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Então, durante muito tempo eles
viveram nessa posição e nenhum projeto ou programa foi feito antes da Constituição
de 1988, visando à inclusão social desses grupos sociais. É por isso que se
tem um olhar excludente, de desqualificação e preconceito, que o próprio Brasil
não considera que tem, mas tem. Basta analisar ocomportamento da polícia, os relatos cotidianos dos negros, o
número reduzido de negros nas universidades, em cargos de tomada de decisão;
tudo isso é decorrente desse preconceito.
IHU On-Line – Em tempos de crise
econômica, por exemplo, ouve-se o discurso de que o ingresso de imigrantes em
alguns países gera conflitos por conta da redução de postos de trabalho ou por
conta de mais pessoas necessitarem de atendimento social, por exemplo. Nesses
casos, trata-se de preconceito, preconceito velado ou é outra situação?
Rosana Schwartz – Em todo período de crise econômica, esses argumentos aparecem, como estamos vendo nos países europeus, e no Brasil. Mas se você reparar, esse tipo de argumentação não é tão frequente em relação aosimigrantes alemães, como é em relação aos haitianos, por exemplo, porque em relação aos haitianos, os comentários e preconceitos são em relação ao país de origem deles e à cor da pele. Então, a justificativa que a sociedade cria, em primeiro lugar, é essa de que os imigrantes irão ocupar os postos de trabalho numa época de crise econômica, esquecendo que durante muito tempo o brasileiro migrou para a América do Norte e para a Europa em busca de melhores posições de vida.
Rosana Schwartz – Em todo período de crise econômica, esses argumentos aparecem, como estamos vendo nos países europeus, e no Brasil. Mas se você reparar, esse tipo de argumentação não é tão frequente em relação aosimigrantes alemães, como é em relação aos haitianos, por exemplo, porque em relação aos haitianos, os comentários e preconceitos são em relação ao país de origem deles e à cor da pele. Então, a justificativa que a sociedade cria, em primeiro lugar, é essa de que os imigrantes irão ocupar os postos de trabalho numa época de crise econômica, esquecendo que durante muito tempo o brasileiro migrou para a América do Norte e para a Europa em busca de melhores posições de vida.
Nesse sentido, esse tipo de
argumentação que menciona os postos de trabalho mostra como estamos sendo
incoerentes com nós mesmos, porque agora que existe crise na Europa,
os imigrantes da África, do Haiti, da Bolívia e da América Latina vêm para
o Brasil em busca de melhores condições de vida.
IHU On-Line - Além dos haitianos,
imigrantes de outras nações, como os bolivianos, angolanos, senegaleses,
ganenses, portugueses e espanhóis, que vieram para o país nos últimos dez anos,
também sofrem o mesmo tipo de preconceito?
Rosana Schwartz – Sim, também
sofrem, mas menos. Tem um número muito grande de bolivianos no Brasil,
que estão em algumas regiões como em Bom Retiro, em São Paulo, e trabalham com
costura. Mas eles têm um processo de inclusão um pouco melhor, porque estão
vindo para trabalhar para outros imigrantes, que já chegaram anteriormente,
como os coreanos e chineses. Então, eles têm uma colocação e, mesmo que seja
análoga à escravidão, as famílias se mantêm próximas, num agrupamento. O olhar
em relação a eles não aparenta tanto preconceito como se percebe em relação aos
africanos ou haitianos.
Em geral as pessoas têm medo de
passar nas regiões onde vivem os africanos e têm um olhar de que eles são
perigosos. É esse olhar que temos de desconstruir: não se pode olhar as pessoas
como sendo perigosas, ou como pessoas que estão vindo para ocupar cargos que
não são delas de direito, enquanto outros imigrantes, outrora, vieram para
garantir o crescimento do país no século XIX e XX, para civilizarem e fazer com
que o Brasil se tornasse grandioso. Veja a diferença: todos sofreram preconceito,
porque a cultura do eu com a cultura do outro sempre cria um choque, o qual
gera um estranhamento, mas uns foram incorporados mais facilmente por serem
europeus e brancos, e outros estão sendo incorporados mais lentamente, porque
estão trabalhando em regiões para as quais não se dá muita importância, como é
o caso dos bolivianos. Em relação aos africanos e haitianos, há um preconceito
velado, porque aparece um preconceito que o Brasil tem em relação à cor da
pele.
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IHU On-Line - Há diferenças nas
imigrações de hoje das que já ocorreram no passado?
Rosana Schwartz – O fenômeno
migratório acontece hoje por não existirem condições de as pessoas
ficarem e sobreviverem em seus países de origem; basta ver os problemas
sociais, econômicos e políticos que o Haiti tem. Então,
as pessoas tentam a sorte em outros locais. No caso da Itália, ocorre o mesmo: o
país tem recebido inúmeras pessoas que não têm mais condições de viver em seus
países de origem. O que temos de evidenciar com isso? Que são seres humanos
dotados de direitos, que os direitos humanos devem ser assegurados para todos,
que devemos viver numa cultura de paz, que temos de ter uma cultura de tolerância e
aceitar as condições dessas pessoas e promover a inclusão social, porque no
passado outros imigrantes também saíram de seus países de origem em grandes
levas. Temos de entender esse ir e vir das populações do mundo inteiro como
sendo casos de pessoas que são dotadas de igualdades e que
todos nós temos direito à vida.
Também temos de exigir que os
governos criem possibilidades de soluções sobre essa questão que está
acontecendo no mundo hoje, para evitar que esse movimento migratório crie xenofobia e
nacionalismo exacerbado. Como se tem uma crise muito grande, e várias regiões
do mundo estão recebendo grandes fluxos de pessoas que não são da sua cultura e
da sua nacionalidade, isso desperta momentos de xenofobia, nacionalismo e
radicalismo. Não podemos permitir isso num país como o nosso, que é um país
miscigenado, multicultural, porque temos todos os tipos de etnias convivendo.
Não podemos, de forma alguma, que qualquer forma negativa em relação aos
imigrantes possa despontar algo radical.
IHU On-Line - Como o Estado
brasileiro tem lidado com as imigrações no país?
Rosana Schwartz – Ainda não tem
agido de forma boa nem com a própria movimentação dentro do seu próprio país,
porque sempre ocorreram fluxos migratórios no Brasil. Em algumas regiões há
ainda preconceitos com pessoas de outras regiões, como o caso do preconceito
do Sul e Sudeste com o Norte e Nordeste. O país tem de tratar essas
questões na educação, porque é o único meio para mudar esse
preconceito, com novos livros didáticos, e discutir essas questões a partir de
um entendimento dos direitos humanos. Nesse sentido, políticas públicas,
parâmetros curriculares e a implementação dessa discussão na mídia são
importantes para que as pessoas possam, nas universidades, escolas e canais de
comunicação, desconstruir o preconceito.
O preconceito é um conceito
estabelecido sem nenhuma fundamentação teórica. Então, para desconstruí-lo,
temos de falar mais sobre isso. Um meio que tem sido efetivo para isso são
as redes sociais para replicar e compartilhar essas questões,
porque aos poucos as pessoas vão criando entendimento sobre o preconceito.
IHU On-Line - A senhora tem
acompanhado a situação dos imigrantes em outras partes do mundo, como os que
migram para a Europa, por exemplo, ou mesmo os conflitos que existem na América
Latina, em que colombianos foram expulsos da Venezuela? Como tem avaliado esse
fenômeno migratório global?
Rosana Schwartz – Tenho
acompanhado porque faço parte de um grupo de pesquisa sobre migrações no mundo
inteiro. O que estamos vendo é um momento de crise tanto na Europa, quanto nos EUA e mesmo no Brasil e,
quando isso acontece, os radicalismos ficam mais aflorados. Nesses períodos de
crise, as posições são mais radicais, porque as pessoas dos países que recebem
esses imigrantes pensam que eles irão tirar o lugar delas nos postos de
trabalho, no atendimento à saúde, etc. Então, quando abala os direitos sociais,
o preconceito acaba surgindo. O que temos de fazer é discutir e colocar a
questão em pauta.
IHU On-Line - Como resolver os
conflitos que surgem por conta das migrações? Qual tem de ser o papel das
diferentes nações, tanto das nações de origem dos imigrantes, quanto das dos
países para os quais eles mudam?
Rosana Schwartz – Quando
existem essas saídas de diversos fluxos, e por razões diversas, temos de
analisar quais são os fatores que têm gerado tanto a expulsão quanto a atração
de pessoas para os países x ou y. Então, não dá para se falar de uma maneira
geral, mas temos de analisar região por região. Por exemplo, por quais razões
os haitianossaíram de seu país de origem e por que eles migram para
o Brasil? A partir dessas investigações, podemos criar diálogo
entre a sociedade e os governos, porque estamos num contexto em que a comunicação
é muito fácil e temos como saber o que acontece do outro lado do mundo. Então,
é preciso que sejam desenvolvidas ações e políticas internacionais fortalecidas
e um entendimento da sociedade civil acerca do que está acontecendo e motivando
as migrações, ou seja, é preciso conhecer os fatores de expulsão e de atração
para determinado país e também acompanhar o período de adaptação dos imigrantes
nos países, no sentido de verificar se eles estão tendo acesso a trabalho, como
estão vivendo, etc.
É uma colcha de retalho que tem de ser construída parte a parte, com muito cuidado, porque o conhecimento nesse caso não pode ser superficial. Temos de entender as questões que dão origem às migrações e promover ações de políticas públicas com relação aos imigrantes.
É uma colcha de retalho que tem de ser construída parte a parte, com muito cuidado, porque o conhecimento nesse caso não pode ser superficial. Temos de entender as questões que dão origem às migrações e promover ações de políticas públicas com relação aos imigrantes.
Existe, no Conselho
Participativo em São Paulo, um grupo de imigrantes que
está acompanhando as políticas públicas para imigrantes na cidade, mas muitas
pessoas não têm conhecimento desse tipo de ação. Por isso, temos de dar
visibilidade para que elas saibam onde podem encontrar apoio e diálogo e depois
discutirem com as prefeituras, subprefeituras e governos.
IHU On-Line - Deseja acrescentar
algo?
Rosana Schwartz – O ponto
principal é entender que esse processo de migrações não acontece
somente no Brasil; eles estão acontecendo no mundo inteiro. Outro ponto a ser
observado é que esse fenômeno não é novo; ele sempre existiu ao longo da
história e sempre houve dificuldade de olhar para o outro. Só que o homem foi
aprendendo e conquistando direitos e compreendendo o outro como um ser humano
e, portanto, o radicalismo que se tinha no passado, não cabe mais nos dias
contemporâneos.
Patrícia Fachin e Leslie Chaves
UNISINOS
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