A presidente Dilma Rousseff deve aproveitar seu discurso na ONU nesta
segunda-feira para abordar o tema dos refugiados sírios, que ganhou projeção
com a comoção causada pela morte do menino Alan Kurdi, de três anos, afogado
quando sua família tentava atravessar o Mar Mediterrâneo para chegar à Europa.
Dilma provavelmente lembrará que o Brasil é o país que mais recebeu
sírios na América Latina. Segundo o Conare (Comitê Nacional para os
Refugiados), foram 2.077 de 2011 até agosto. Para o professor de Relações
Internacionais da FGV Oliver Stuenkel, porém, o país poderia receber muito
mais.
Em um artigo recente para o jornal
norte-americano The New York Times, ele defendeu
que o Brasil deveria acolher 50 mil refugiados sírios. "Depois disso,
recebi emails que me acusavam de querer importar o terrorismo para o Brasil.
Mas essa acusação é fruto de ignorância e desconhecimento", diz.
Stuenkel coordena a Escola de Ciências Sociais da FGV e o MBA em
Relações Internacionais da instituição, além de ser membro do Global Public
Policy Institute, em Berlim.
Em entrevista à BBC Brasil, ele explicou por que acredita que receber
dezenas de milhares de sírios poderia trazer benefícios políticos e econômicos
para o Brasil e sugeriu que a conta do apoio aos refugiados poderia ser paga
por países que mantém suas portas fechadas.
BBC Brasil - O Brasil é o país que
mais recebeu refugiados sírios na América Latina. Segundo o Conare, foram 2.077
até agosto. Em um artigo recente noNew York Times o sr. defendeu
que poderíamos receber 50 mil. Por quê?
Stuenkel - Aceitar refugiados
é contribuir na provisão de um bem público global. Essa crise de refugiados é
provavelmente a mais severa desde a Segunda Guerra Mundial. Além disso, haveria
vantagens para o Brasil. Para começar, assumir um papel de liderança nessa área
daria destaque ao país no cenário global.
Quando a economia brasileira ia bem, o país ganhou destaque negociando
até acordos de paz no Oriente Médio. Com a crise interna, praticamente sumiu.
Isso deixou na comunidade internacional a impressão de que o Brasil pode ser um
ator global quando as coisas vão bem internamente, mas desaparece quando vão
mal.
Uma atuação clara na crise dos refugiados poderia ajudar a reverter
isso. E a um custo relativamente pequeno. Sendo um país de 200 milhões de
habitantes, seria fácil absorver essas 50 mil pessoas. Também há algo que nem
sempre é considerado nesse debate: receber esses refugiados poderia gerar um
impacto positivo no médio longo prazo na economia do país.
BBC Brasil - Como assim?
Stuenkel - A Síria era uma
economia relativamente bem desenvolvida antes der ser arrasada por esse
conflito. E os refugiados do país são pessoas bem qualificadas, que podem
contribuir em um momento em que a economia brasileira precisa de gente
empreendedora e com capacidade de inovar.
O Brasil é um dos países mais fechados do mundo quando o tema é
imigração. Só 0,3% das pessoas que vivem aqui nasceram em outros países. E
desse contingente, metade está aposentado.
Em países da Europa os estrangeiros representam entre 7% e 20% da
população. Nos EUA, o percentual é de mais de 10%. No Canadá e Austrália, 20%.
Em todos esses países, os imigrantes e seus descendentes têm ajudado a
impulsionar a inovação, o empreendedorismo e o crescimento econômico.
BBC Brasil - Há quem argumente que,
se precisamos de trabalhadores qualificados, seria interessante educar mais os
brasileiros em vez de trazer gente de fora…
Stuenkel - Investir em
educação é crucial. Mas para se aumentar a qualificação e capacidade de
inovação das pessoas precisaremos de mais de uma década. Os dois processos
podem correr em paralelo. Até porque só aumentar a imigração não resolve o
problema, dada a dimensão do país. No caso dos sírios, então, 50 mil seria uma
gota no oceano.
Mas é preciso lembrar que os imigrantes também podem criar empregos.
Eles chegam no país dispostos a arriscar e empreender. E não tem acesso ao
setor público, onde o índice de inovação é baixo. Nos EUA, há muitos exemplos
de grandes empresas fundadas por imigrantes ou seus filhos: Apple, Google,
Budweiser, Colgate, eBay, McDonald's, Walt Disney, Oracle, entre outras.
BBC Brasil - O governo brasileiro não
impõe nenhum limite a vinda de sírios. Por que os números não são maiores?
Stuenkel - Não estou
"cutucando" o governo brasileiro. De fato, esse limite não existe. A
presidente deu um passo importante ao publicar, recentemente, um texto sobre o
tema no jornal Folha de S.Paulo (em que
defendeu a necessidade de medidas urgentes de solidariedade para ajudar os
sírios e prometeu ampliar os esforços do Brasil para acolher refugiados).
Mas se ela se dirigir à imprensa e ao público internacional o impacto
será maior. Dilma pode, inclusive, cobrar países ricos para que também recebam
mais sírios.
No caso do Brasil, sabemos que o problema não é o preço da viagem, que
muitas vezes custa metade do que as redes criminosas cobram para levar os
sírios para a Europa. É claro que o fato de a Europa ser mais rica e oferecer
mais apoio aos recém-chegados influencia a decisão dos refugiados.
Mas acho que também falta uma comunicação mais clara para informar aos
sírios que eles podem vir ao Brasil. A maioria não sabe disso, segundo relatos
que ouvimos dos que chegaram aqui. E também é necessário melhorar as estruturas
para receber e apoiar essas pessoas no Brasil.
BBC Brasil - O que ainda precisa ser
feito?
Stuenkel - Os lugares
oferecidos pelo governo para abrigar os sírios são os mesmo usados pelos
moradores de rua. Não acho que o governo deveria necessariamente custear algo
melhor para os refugiados, especificamente, isso é complicado.
Mas eles precisam que haja uma maior agilidade na provisão de documentos
para trabalhar, por exemplo, porque muitos chegam ao país com pouco recursos.
Deixam tudo para trás e tem de trabalhar o mais rápido possível para
sobreviver.
BBC Brasil - Os lugares nos abrigos
públicos não seriam suficientes. Quem pagaria a conta do apoio aos 50 mil
refugiados? Em um momento em que o país faz um ajuste fiscal, isso não seria
complicado?
Stuenkel - Sim. Por isso
o governo brasileiro poderia propor um projeto de cooperação trilateral com
países com meios financeiros que não querem receber refugiados. China, Japão,
e, sobretudo, os países do Oriente Médio que se recusam a receber refugiados,
como Arábia Saudita e Catar, poderiam criar um fundo para financiar esse apoio.
Já temos exemplos de esquemas de cooperação trilateral desse tipo. Em
Moçambique, por exemplo há projetos que recebem financiamento do governo
japonês e aproveitam o conhecimento de especialistas brasileiros em agricultura
e saúde pública, já que os moçambicanos enfrentam desafios semelhantes aos
nossos.
BBC Brasil - Qual o risco do
crescimento da xenofobia no Brasil?
Stuenkel - Tivemos o
ataque aos haitianos (um motorista atirou contra um grupo de haitianos no
Glicério, região central de São Paulo), mas esse foi um caso isolado. Não acho
que haja o risco de uma onda de xenofobia no Brasil. Aqui não há xenofobia
institucionalizada. Não temos partidos contra imigrantes, por exemplo.
Temos um problema grave de desigualdade e racismo, que pode afetar
refugiados do Haiti e África, mas também temos um histórico interessante de
integração de grupos diferentes em nossa sociedade. Até os anos 30, por
exemplo, o italiano era amplamente falado em muitas regiões de São Paulo.
No caso dos sírios, também acho que o fato de termos muitos descendentes
de imigrantes do Oriente Médio no país – e em todos os níveis da sociedade –
facilita a integração. Em São Paulo, prefeito e governador são descendentes de
árabes. Alguns refugiados sírios que eu conheci já estão falando português em
três ou quatro meses.
Após publicar meu artigo no NYT, recebi emails que me acusavam de querer
importar o terrorismo para o Brasil. Mas essa acusação é fruto de ignorância e
desconhecimento. Na realidade, esses refugiados estão fugindo dos grupos
radicais. E a integração e inclusão dos refugiados é o que ajuda a impedir a
radicalização.
Hoje temos uma concentração dos refugiados em poucos países que não
conseguem lidar com o problema. Turquia, Iraque, Jordânia e Líbano têm 3,6
milhões de refugiados que, muitas vezes, vivem em péssimas condições. Nesses
lugares há, de fato, o risco de que se forme uma "geração perdida",
jovens que passem por exemplo, dos 20 aos 30 anos sem trabalhar. E é isso que
pode aumentar a chance de radicalização.
BBC Brasil - Qual a possibilidade de
uma ação internacional coordenada na Síria?
Stuenkel - O problema é
que lado apoiar. No conflito sírio não há um lado "bom". De um lado
temos o presidente Bashar al-Assad, responsável por um número grande de mortes
de civis. Do outro, o Estado Islâmico. Nesse contexto, receber refugiados é a
única coisa a se fazer. Não resolverá o conflito, mas ajudará a melhorar a
situação de milhares de civis.
BBC Brasil - Dilma foi acusada de se
omitir em grandes temas internacionais e reduzir o perfil do país no cenário
global. Houve mudança no segundo mandato?
Stuenkel - O Brasil
continua com pouca visibilidade e expressão. Só que agora o problema já não é
mais a inércia da presidente para temas internacionais, e sim a dúvida sobre
ela conseguir se manter no cargo.
Isso pode afetar a capacidade de Dilma mediar o conflito interno da
Venezuela, por exemplo, ou assumir a liderança em temas internacionais mais
complexos. Como ela vai iniciar uma conversa global sobre qualquer assunto mais
espinhoso se há dúvidas sobre se estará no poder em um ano para acompanhar esse
processo?
BBC BRASIL
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